Impeachment de Dilma foi ou não golpe?
Mariana Llanos
Investigadora do GIGA - Instituto de Estudos Latino-Americanos (Alemanha)
"Temer tem de ter consciência de que está ali por acaso histórico"
Em todo o processo de impeachment, Dilma Rousseff alegou que estava a ser alvo de um golpe. Afinal, foi golpe ou não?
Não foi um processo linear, mas não é um golpe no sentido tradicional que conhecemos na América Latina. Quando no passado havia choques de poder, havia um incentivo para grupos como os militares intervirem. Os militares não estão neste jogo. Este é um jogo de pugna de poderes institucionais que tem momentos mais claros e mais escuros. Mas não há rutura constitucional.
Então Dilma estava errada e Temer certo?
Não podemos falar em branco e preto. Esta é uma situação muito complicada, traumática, que polarizou a sociedade, e é muito difícil falar deste tema sem sermos catalogados de um lado ou de outro. Parece-me que é preciso ver as coisas de forma cuidadosa. Houve coisas muito bem feitas, comparando até com outros exemplos na região, como as várias votações, a transparência, a intervenção do Supremo Tribunal... Mas também existiram incentivos pessoais, egoístas, de diferentes atores que utilizam as instituições. É claro que tudo começou por causa da pressão sobre Eduardo Cunha, mas no final foram duas Câmaras e distintas comissões que decidiram.
As pessoas já aceitaram o que se passou?
Penso que o impeachment é uma ferida aberta. É muito difícil dialogar com colegas e amigos brasileiros sobre este tema, porque foi muito traumático. Penso que irá levar muito tempo para superá-lo.
E acha que Temer está seguro?
Nenhum presidente deveria sentir-se seguro, nunca. Penso que Temer tem de ter consciência de que está ali por um acaso histórico e tem de ter noção de duas coisas. Uma é como fazer para manter uma coligação de governo unida, porque só assim conseguirá a aprovação do congresso para as políticas necessárias para superar a crise económica. Depois, precisa do apoio popular, e é através das políticas que o pode ganhar. Mas a crise é profunda e não se vai resolver de um dia para o outro e as medidas que Temer tem de tomar podem ser impopulares.
O Congresso é muito dividido e a porta parece aberta para mais impeachments...
As ameaças de impeachment estão sempre presentes. Todos os presidentes as sofreram, mas são precisas condições para avançar. Mas sim, é difícil uma coordenação política com o Congresso mais fragmentado do mundo, com mais de 20 partidos.
Acha que é possível uma reforma política?
Falava-se muito que isto tinha de resultar numa reforma política para resolver a fragmentação partidária, mas não sei se vão discutir isso agora. Seria ideal, mas imaginemos que não o fazem, todos os presidentes têm de lidar com esta situação.
O presidencialismo está em risco?
O presidencialismo tem inerente o conflito. É preciso muita atividade política para criar pontes de comunicação entre o Congresso e o presidente e para que ambas as instituições funcionem de forma cooperativa e não competitiva. Há muito esforço de construção política. Sem ele, os conflitos e o risco de paralisação existem sempre, mas nem sempre têm de ter resultados traumáticos, terminar no impeachment. Os presidentes que mais estiveram em risco, e houve muitos, foram os que tiveram a ideia imperial de que estão por cima de tudo e podem agir sozinhos.
Aí estamos na Venezuela...
Na origem do problema está também uma questão de separação de poderes e um congresso que tem outra maioria que não a do presidente. Este presidente não aceita a legitimidade dessa oposição no Congresso, então vai cada vez mais pela via unilateral. Parece-me que é uma saída complicada.
É interessante ver como dois sistemas presidencialistas geram situações tão diferentes...
O impeachment, com todos os problemas, é uma saída parlamentar e constitucional para a crise. A saída presidencial que ignora o Congresso é uma saída à beira do autoritarismo.
Aníbal Pérez-Liñán
Professor de Ciência Política da Universidade de Pittsburgh (EUA)
"Há razões para argumentar que foi ilegítimo sem falar num golpe"
O impeachment de Dilma foi diferente de outros que estudou na América Latina?
Em muitos sentidos, foi muito semelhante. É uma situação na qual se combina um escândalo de corrupção com uma situação económica muito negativa para o governo e um Congresso no qual a presidente perde a maioria. Quando se combinam esses fatores, o impeachment é fácil. Mas há dois aspetos relativamente novos. O primeiro é que a presidente é de esquerda, como Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012. Até aí, os impeachments tinham envolvido sempre presidentes de direita ou que tiveram de empreender programas neoliberais.
E o segundo aspeto diferente?
Sai um pouco do julgamento político clássico inspirado no modelo do Watergate, que implicava uma investigação dos media de um escândalo de corrupção, indignação social pela corrupção do presidente e, a partir daí, uma investigação do Congresso. Esse foi mais ou menos o mesmo de Collor de Mello [1992]. Neste caso, a história é um pouco diferente, porque o grande escândalo não afeta diretamente Dilma. A Lava-Jato afeta toda a classe política, exceto ela. Dilma é uma vítima colateral do processo da Lava-Jato, na medida em que o Congresso, e o PMDB sobretudo, tentaram conter a crise sacrificando-a no altar da opinião pública. Mas a estratégia claramente fracassou.
Porque com o escândalo não parou...
Exato, no Watergate, com a renúncia de Nixon acaba a crise. Igual com Collor. Mas este processo segue aberto e as consequências para a classe política ainda estão por vir.
Acha que vamos ter mais impeachments, que se abriu uma caixa de Pandora?
A caixa de Pandora abriu-se com Collor. Após ele ter sido indiciado, houve uma onda de impeachments na América Latina. Já no período entre 2003 e 2013, o risco para os presidentes baixou porque a economia era tão próspera que eles eram populares. Mas o risco sempre existiu e continua a existir.
Houve quem alegasse que as razões para o impeachment não eram suficientes...
Na minha opinião, as acusações contra Dilma possivelmente não constituíam crime de responsabilidade, mas o problema central é que quem decide se é ou não é o Congresso. Logo, acaba por ser uma decisão política dizer se houve ou não crime. O impeachment é uma instituição híbrida. Não é um julgamento puramente político, um voto de censura como há no sistema parlamentar, nem puramente judicial. Mas tem um elemento judicial, porque requer, em teoria, prova do crime, e um forte componente político porque em todos os modelos de impeachment a decisão parte do Congresso. E em períodos de crise este elemento político tende a prevalecer.
Michel Temer está seguro no cargo?
Acho que o governo de Temer é débil e vai estar sempre em risco, porque nasceu sem legitimidade eleitoral, está contaminado pelo escândalo de corrupção e tem uma taxa de popularidade parecida à de Dilma. Isso cria uma debilidade estrutural. Contudo, às vezes esta debilidade pode ser a sua principal força. Desde logo porque Temer tem consciência dela e preocupou-se em articular uma coligação no Congresso. Nesse sentido, percebe melhor de política legislativa do que Dilma. Além disso, como não pode aspirar a um futuro como presidente, o seu governo é, sob qualquer perspetiva, interino, não representando uma ameaça para outros políticos.
E afinal foi um golpe, como diz Dilma?
Para muitos essa questão continua em aberto. Há muitas razões para criticar o processo e há muitas razões para poder argumentar que o julgamento político foi ilegítimo, mas sem necessidade de falar que foi um golpe. Porque isso significa igualá-lo ao golpe de 1964 e as vítimas, como Dilma, deviam saber que a situação é muito distinta. Quando dizemos que é um golpe, dizemos que o impeachment é tão mau como um golpe, mas a opinião pública pode ouvir que um golpe é equivalente a um impeachment.