Imigração ilegal: os dreamers entre o muro e o congresso

Trump quer resolver o problema dos ilegais que chegaram à América ainda crianças. Mas nenhuma das soluções lhe é favorável
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Crissel Rodriguez foi levada para os Estados Unidos pouco depois de aprender a falar. Tinha 2 anos quando a família deixou o México, em 1989, rumo à promessa de uma vida melhor na Califórnia. Não tinha papéis, mas em 2000 visitou a terra natal porque o pai obteve uma autorização temporária de trabalho. Nunca mais conseguiu lá voltar.

"É difícil para mim dizer que sou americana, porque sei que não sou. Não tenho estatuto reconhecido nesta nação", conta ao DN, falando abertamente da sua situação instável. É uma imigrante ilegal que conseguiu proteção através do DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals), um programa criado pelo ex-presidente Barack Obama em 2012 para proteger pessoas como ela. "Considero-me uma pessoa indocumentada, uma imigrante." Tem uma vida americanizada, com privilégios que não teria no país de origem. "Apesar disso, é difícil dizer que me sinto completamente americana, porque não sinto. Ainda há políticas que me ostracizam." Crissel candidatou-se ao programa assim que foi lançado e a sua vida melhorou a partir daí. Tinha 25 anos e até então não conseguia arranjar trabalho em condições normais.

"O DACA permitiu-me candidatar a um mestrado na Chapman University, onde tirei Estudos Internacionais, e pedir um empréstimo para pagar os estudos. Também me permitiu trabalhar no campus da universidade, que é algo que eu antes não tinha", diz. O programa, renovável a cada dois anos, inclui autorização de trabalho, acesso a educação superior e proteção contra deportação. É tudo isto que pode desaparecer dentro de seis meses, quando expirar o prazo imposto pelo presidente Donald Trump para que o Congresso aprove legislação definitiva. O líder americano fez tremer os sonhos dos jovens abrangidos pelo DACA, conhecidos como dreamers (sonhadores), quando anunciou o fim do programa em março de 2018. As renovações deixam de ser aceites a 5 de outubro.

"Quero trabalhar com democratas e republicanos no Congresso para endereçar uma reforma da imigração que ponha os cidadãos trabalhadores do nosso país primeiro", escreveu o presidente no Twitter. A sua base de apoiantes aplaudiu, entendendo a medida como o endurecimento prometido contra imigrantes ilegais, mas o resto das reações foram muito negativas, incluindo manifestações de rua. A questão que os opositores do DACA colocam é esta: se são imigrantes ilegais, porque é que hão de merecer uma amnistia? Porque não têm culpa da sua situação ilegal, respondem os defensores.

Portugueses entre os dreamers

O DACA foi a resposta de Obama ao limbo legal em que se encontravam 780 mil imigrantes ilegais trazidos para a América quando eram crianças e não tinham noção do que estava a acontecer. Entre eles há portugueses, embora ninguém saiba quantos: serão algumas centenas, da Califórnia à Nova Inglaterra e Nova Jérsia. Em San José, onde há uma comunidade expressiva, a Portuguese Organization for Social Services and Opportunities (POSSO) ainda não recebeu pedidos de ajuda por parte de imigrantes com DACA. Mas sabe-se que existem. "Conheço dois casos, um rapaz com vinte e poucos anos e uma rapariga que tem 19 anos", revela ao DN Mary Bettencourt, coordenadora da POSSO. "A rapariga está na universidade, na cidade de Hanford. Conheci-a quando ela chegou aqui, andava sempre muito caladinha. Agora tem trabalho e vejo-a por aí sempre com vida." Veio com uma tia, quando tinha 13 anos, e o DACA permitiu-lhe ir para a escola e arranjar trabalho. É um caso pouco comum, já que as comunidades portuguesas estão bem integradas há várias gerações.

O consulado português de São Francisco explica ao DN que os portugueses não têm o hábito de o informar sobre este tipo de pedidos. "Até ao momento não fomos contactados a esse respeito", indica o gabinete da nova cônsul-geral, Maria João Lopes Cardoso.

Pode ser um caso de vergonha, explica Zulma Maciel, assistente do gabinete de gestão da cidade de San José. "Há pessoas que vêm e ficam para lá do prazo legal dos vistos, e quando isso acontece ficam ilegais, mas há muita vergonha associada a isso e não pedem ajuda", revela. "Preocupa-me que se passe alguma coisa assim com os portugueses, que se calhar vieram visitar as famílias e ficaram para lá do prazo do visto e agora estão na sombra." Até agora não se deparou com casos destes, numa cidade onde há registo de 12 600 pessoas com ascendência portuguesa.

Entre o medo e o desafio

Dos 780 mil imigrantes ilegais abrangidos originalmente pelo DACA, 40 mil conseguiram arranjar uma forma permanente de legalização, outros não renovaram e 21 mil viram o estatuto revogado. Há hoje 690 mil no programa que podem perder tudo.

"As pessoas, obviamente, estão preocupadas com as deportações, mas a outra questão é: o que fazem quando a autorização de trabalho expirar? Têm empregos, hipotecas para pagar, carros, filhos para alimentar", nota Jessica Jenkins, advogada supervisora do Centro de Serviços de Imigração do CET - Center for Employment Training. Os dados mostram sucesso económico e social entre os imigrantes DACA - 91% estão empregados, com salários acima da média entre imigrantes, e muitos abriram os próprios negócios. Há 500 grandes empresas com trabalhadores DACA, incluindo gigantes como o Facebook, Amazon e Microsoft. Só a Apple tem 250.

"Eles construíram as suas vidas à volta deste pedaço de papel que diz que podem ficar aqui", adianta Jenkins. "Muitos receberam o estatuto quando ainda estavam no ensino secundário e eram adolescentes. Ou seja, nunca souberam o que era viver como um adulto ilegal. E isso é muito assustador."

Crissel Rodriguez, que tem agora 30 anos, não vai baixar os braços. Assumiu na semana passada a posição de coordenadora para a região sul do CIYJA - California Immigrant Youth Justice Alliance - e está a trabalhar com várias organizações.

"Sabemos que as coisas podem não correr bem a nível federal, mas temos de ver o que podemos fazer a nível estatal para garantir que há políticas que não criminalizam ainda mais as comunidades, e patrocinar eventos de informação sobre os direitos dos membros", explica. Um dos focos é organizar "clínicas" de defesa contra deportação e manter a pressão.

A origem do DACA

A ideia era levar o Congresso a aprovar legislação definitiva para legalizar os dreamers. Este nome vem da legislação conhecida como Dream Act - Development, Relief, and Education for Alien Minors Act, que foi introduzida um mês antes dos ataques do 11 de Setembro. Era um esforço bipartidário que falhou repetidamente a aprovação ao longo dos anos.

Obama tentou forçar a mão dos legisladores com o DACA, sublinhando que se tratava de uma proteção temporária. Nas sessões legislativas que se seguiram nada aconteceu. Os republicanos clamaram que o DACA era inconstitucional - algo que foi desmontado em duas instâncias, com o programa a sobreviver em tribunal.

Agora, o cenário é diferente. Os republicanos não só controlam a Câmara dos Representantes e o Senado, dominando o Congresso, mas também a presidência. O problema é que passar legislação que legaliza centenas de milhares de imigrantes bate de frente com a linha política do partido, a retórica usada por Trump durante a campanha e os primeiros nove meses de presidência. O outro lado da moeda é que Trump ainda não conseguiu nenhuma vitória legislativa, depois de falhar a substituição do Obamacare. Aprovar o Dream Act seria a primeira, embora não a que os seus apoiantes querem.

Futuro incógnito

Na verdade, ninguém sabe bem o que o próprio presidente quer. Depois de anunciar o fim do DACA, Trump pareceu dar um passo atrás. Prometeu aos dreamers que ninguém seria deportado durante o prazo de seis meses e depois jantou com os líderes da minoria democrata, Nancy Pelosi e Chuck Schumer, que saíram do repasto a comunicar que tinham chegado a um acordo para legalizar o DACA. A base de apoiantes de Trump ficou furiosa com o que consideram ser traição e amnistia. Alguns queimaram os bonés com o slogan Make America Great Again.

À esquerda, ativistas como Crissel levantam o sobrolho. "Uma coisa que estamos a antecipar é que se eles aprovarem o Dream Act, isso poderá vir com mecanismos de contrapartida. Ou seja, a militarização da fronteira, o aumento do orçamento para as patrulhas e agentes de imigração ICE, por isso queremos avisar a comunidade que é importante assegurar que a legislação que for aprovada a nível federal não prejudica os outros imigrantes."

Ao contrário do que se poderia esperar, os dreamers não querem salvar-se a todo o custo. "Queremos desafiar a narrativa dos dreamers como uma ideia de minoria", refere Crissel. "De que, por termos educação universitária, merecemos proteção." A ideia, defende, é que a América deve ser um sonho ao alcance de todos.

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