Igreja em transe. Crimes de Flordelis e pastor Everaldo envergonham evangélicos
A pastora Flordelis não apenas matou o marido; ele era ex-namorado de uma filha. Não lhe bastou liderar uma organização criminosa familiar com mais sete filhos, que planeou e executou o crime; testemunhas garantem que ela mantinha relações sexuais com a prole. Soube-se também que o choro compulsivo no velório de Anderson do Carmo não foi o único embuste da deputada; por trás da aparência de mãe e mulher modelo, frequentava casas de swing e oferecia filhas como objetos sexuais a outras autoridades evangélicas.
O escândalo em torno da pastora da Comunidade Evangélica Ministério Flordelis, da intérprete do sucesso gospel "Questiona ou Adora", da inspiração de um filme laudatório em 2009, da deputada federal mais votada do Rio de Janeiro em 2018, da amiga da ministra Damares Alves e da primeira-dama Michelle Bolsonaro, atingiu a família evangélica na medula: a moralidade.
E os 31% de brasileiros de evangélicos no Brasil ainda não se tinham recuperado do choque e já eram confrontados dias depois com a prisão do pastor Everaldo. O quinto classificado na eleição presidencial de 2014, líder do ultraconservador Partido Social Cristão (PSC) e autor do batismo do presidente Jair Bolsonaro nas águas sagradas do Rio Jordão, faz parte, segundo o Ministério Público, "de um grupo criminoso que desviou e lavou recursos em plena pandemia, sacrificando a saúde e a vida de milhares de pessoas num total desprezo com o senso mínimo de humanidade e dignidade".
A luta contra a corrupção, outro pilar do neopentecostalismo brasileiro e norte das eleições de 2018, foi alvejado em cheio.
Como a comunidade que em 2032 deve ultrapassar em número de fiéis a igreja católica no ainda "país mais católico do mundo", lidou com estes golpes? E logo em plena era de alegrias por ter, finalmente, chegado aos corredores do poder em Brasília graças ao bolsonarismo?
"Envergonhada", disse ao DN, Christina Vital, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense e autora de Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições de 2014, livro que já previa a tomada do Planalto pelos evangélicos.
"Esses escândalos envergonham os evangélicos e os simpáticos aos evangélicos, principalmente o caso da Flordelis porque expõe questões de ordem moral, questões que no ambiente evangélico são mais sensíveis até do que a própria questão da corrupção que atingiu o pastor Everaldo".
Segundo a académica, "embora a corrupção seja vista no Brasil também como questão moral, Flordelis envolveu-se com uma pessoa casada com uma filha adotiva, houve relatos de encontros sexuais entre ela, o marido e filhos, e tudo isso gera muita discussão, mesmo entre evangélicos, e autocrítica, mas vamos ver o que tudo isso vai render daqui para a frente".
Christina Vital recorda que, por outro lado, os escândalos reforçam a narrativa da faixa da população que sente repulsa pelos evangélicos. "Como são escândalos que ganharam a agenda nacional, serviram para reforçar a antipatia em relação aos evangélicos daqueles grupos que já os condenavam pela atuação contra os direitos humanos e as minorias".
Silas Malafaia, pastor que celebrou o casamento entre Jair e Michelle Bolsonaro e é visita habitual ao Palácio do Planalto para fazer pedidos de isenções fiscais e liderar orações logo a seguir, demorou dias a reagir aos escândalos. Mas, quando o fez, partiu para o contra-ataque. "O ódio e o preconceito contra os evangélicos daqueles que dizem ser contra o preconceito!", desabafou na rede social Twitter.
"O Brasil tem mais de 60 milhões de evangélicos, há dois casos dignos de repúdio de todos nós, as ações do pastor Everaldo e da Flordelis, e os colunistas de O Globo e Folha de S. Paulo já estão falando asneiras sobre evangélicos", continuou.
Na imprensa, com efeito, colunistas atacaram as lideranças neopentecostais. "Estes casos não são exceção, e sim regra entre os evangélicos", escreveu Kiko Nogueira, no Diário do Centro do Mundo, jornal online conotado com a esquerda.
"Cidadãos de bem, moralistas, contra o "homossexualismo" (sic), o "abortismo" (sic), o comunismo, a corrupção, a favor da família, dos valores cristãos - e de Bolsonaro".
"Essa turma ascendeu ao poder com o fascista Jair e gostou. Sejamos justos: todos os governos, de Lula para cá, agasalharam lideranças como [o bispo] Edir Macedo e Silas Malafaia. Agora, porém, eles ocupam o centro do poder com um presidente que frequenta cultos com a mulher, embora seja católico. Um presidente que quer no STF, para a vaga de Celso de Mello, um ministro 'terrivelmente evangélico'".
Para Paulo José Cunha, do site Congresso em Foco, veículo que acompanha a par e passo o poder legislativo no Brasil, "a atuação ostensiva e eficaz no Congresso da 'Bancada da Bíblia' [grupo conservador suprapartidário de deputados], que reúne católicos e evangélicos, contribuiu decisivamente para a eleição de Bolsonaro. O apoio foi-lhe dado dos próprios púlpitos, facto até então inédito".
"Enquanto a igreja católica tem uma atuação mais crítica e por vezes incisiva em relação ao governo Bolsonaro, através de organizações como a CNBB [Conferência Nacional de Bispos do Brasil], grupos evangélicos, de mãos dadas com um governante francamente populista, não se envergonham em atuar descaradamente em sentido contrário e em oposição até mesmo ao que preceituam os princípios bíblicos".
Segundo o colunista, "atualmente a relação entre religião e governo é praticada em bases abertamente oportunistas e sem qualquer pudor de natureza ética".
A relação entre religião e governo pode ter dado um condimento extra à prisão do pastor Everaldo, líder do partido em que Bolsonaro militou mas pelo qual não lhe foi permitido concorrer às eleições, optando então pelo Partido Social Liberal.
"Dependendo do desenrolar do caso que envolve o pastor Everaldo, as investigações e a sua prisão podem ser vistas como perseguição do presidente Jair Bolsonaro. O PSC, partido presidido por Everaldo, não seguiu com a candidatura de Bolsonaro e há ressentimentos em relação a isso", lembra Christina Vital.
O PSC é, por outro lado, o partido de Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro que passou de aliado íntimo do clã Bolsonaro na campanha a seu inimigo no último ano por causa das investigações sobre a execução de Marielle Franco, e foi afastado do cargo na mesma operação que prendeu o pastor Everaldo. "Os embates públicos entre Witzel e Bolsonaro amplificaram-se na pandemia e, não à toa, o presidente, que não tem nenhum decoro, riu do afastamento do governador e da prisão do pastor", continua a pesquisadora.
Além de Flordelis e do pastor Everaldo, outros evangélicos foram notícia nos últimos dias. Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, bispo da IURD, sobrinho de Edir Macedo e aliado de Bolsonaro, lidera um esquema insólito de distribuição de duplas de funcionários públicos à porta de cada hospital municipal.
O objetivo, conforme reportagem da TV Globo, é impedir denúncias da imprensa sobre o mau funcionamento da saúde na cidade sobretudo durante a pandemia: as duplas de funcionários públicos, logo que uma reportagem começa a ser exibida, interrompem os jornalistas, os repórteres de imagem e os utentes entrevistados sob gritos "Bolsonaro, Bolsonaro".
As duplas têm horários rígidos e escalas diárias enviadas pelo Whatsapp para um grupo chamado "Guardiões de Crivella". A emissora mostrou que o prefeito chegou a comemorar com os funcionários a interrupção de reportagens; uma outra, por ter sido efetuada antes de os funcionários de Crivella chegarem ao hospital que lhes cabia, foi ao ar sem ruídos nem tumultos, o que gerou irritação nos líderes, generosamente bem pagos, do "Guardiões de Crivella".
Noutro caso, o Ministério Público enviou pareceres à Justiça a defender a suspensão dos passaportes diplomáticos do apóstolo Valdemiro Santiago, fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, e do missionário R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça, líderes evangélicos presenteados por Bolsonaro com os documentos.
A defesa de R.R. Soares argumentou que o missionário não é um simples turista internacional, mas um líder religioso de renome. "Carrega consigo, nas suas viagens missionárias, interesses coletivos e difusos que transcendem os seus interesses individuais, autorizando a interpretação de que, dentro destes interesses, há também interesse do país", disse o advogado Alexandre Dias, citado pelo portal UOL.