Golpe falhado "não pode ser cheque em branco" a Erdogan
Europeus avisam para as consequências da purga empreendida pelo presidente. EUA negam envolvimento no golpe
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, prometeu ontem continuar a "eliminar o vírus" das instituições estatais, depois de mais de seis mil pessoas já terem sido detidas por alegada ligação ao falhado golpe de sexta-feira. Vários países europeus já avisaram que este acontecimento não significa "um cheque em branco" para Erdogan e que o "Estado de direito" deve prevalecer. Isto sob pena de Ancara ver complicadas as negociações para a adesão à União Europeia (UE). Por seu lado os EUA consideram "totalmente falsas" as acusações de que Washington estaria por detrás do golpe.
"Queremos que o primado do direito funcione plenamente na Turquia. A tentativa de golpe não é um cheque em branco para Erdogan. Não pode haver purgas, o Estado de direito deve prevalecer", disse ontem o chefe da diplomacia francesa, Jean-Marc Ayrault, à estação de televisão France 3. Segundo este responsável, os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE vão repetir hoje, na sua reunião em Bruxelas, que se Ancara quer continuar no processo de adesão (as negociações começaram em 2005) tem que respeitar os princípios democráticos da união.
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E Ayrault não foi o único. Com os relatos de mais de seis mil militares e membros do sistema judiciário detidos e indicações de que a Turquia poderia reinstaurar a pena de morte para os golpistas, os políticos europeus avisaram o presidente turco que arriscava isolar o país internacionalmente. "Uma coisa deve ser clara para o presidente Erdogan: não vai haver um desconto para a Turquia" por causa do golpe, disse o ministro da justiça alemão, Heiko Maas, a vários jornais. "Aquele que restringe os direitos fundamentais e a independência dos poderes executivo, legislativo e judicial está a empurrar o país para longe dos valores básicos da UE", afirmou.
Já o aliado bávaro da chanceler Angela Merkel, Horst Seehofer, lembrou que a perseguição dos opositores após o falhado golpe levanta mais problemas em relação à decisão de liberalizar os vistos para os cidadãos turcos, acordada em março em troca do apoio de Ancara para travar o fluxo de imigrantes. "Este é também um teste para o governo turco, para o estado turco", indicou.
Funerais dos mártires
Erdogan esteve ontem nas cerimónias fúnebres das vítimas do golpe falhado - há registo da morte de 190 "mártires", além de 104 golpistas. "Vamos continuar a eliminar o vírus de todas as instituições estatais", disse o presidente à multidão que se reuniu frente à mesquita Fatih de Istambul. "Infelizmente este vírus, como um cancro, propagou-se a todo o Estado", acrescentou. As autoridades pediram aos apoiantes de Erdogan que continuem nas ruas, havendo ainda alguns focos de tensão com rebeldes junto ao segundo aeroporto de Istambul.
Mais tarde, junto à casa do presidente, quando os apoiantes reclamaram a aplicação da pena de morte, Erdogan respondeu: "Não podemos ignorar este pedido." A Turquia aboliu a pena de morte em 2004, para cumprir os critérios de adesão à UE, e não executa ninguém desde 1984. Na véspera, o primeiro-ministro turco, Binali Yildirim, disse que o tema seria debatido no Parlamento.
As autoridades já detiveram quase três mil militares, desde comandantes a simples soldados, suspeitos de estar por detrás da falhada tentativa de golpe. Entre os presos está o adjunto militar do próprio Erdogan, coronel Ali Yazici, de acordo com a CNN Türk. Outro detido é o general Bekir Ercan Vande, comandante das base aérea de Incirlik, de onde partem os aviões norte-americanos e da coligação internacional que estão a bombardear as posições do Estado Islâmico na Síria e no Iraque. A base terá sido usada pelos caças golpistas para reabastecer.
Segundo informações divulgadas ontem por uma fonte à Reuters, pelo menos dois caças rebeldes terão perseguido o avião privado de Erdogan - que estava de férias em Marmaris, no sul da Turquia, e que regressou a Istambul na madrugada de sábado. "Pelo menos dois F-16 assediaram o avião de Erdogan quando este estava no ar, a caminho de Istambul. Eles fixaram os seus radares sobre o aparelho e outros dois F-16 que o protegiam", indicou a fonte, sob anonimato. "É um mistério porque é que não dispararam."
Gülen e EUA negam participação
"A tentativa de golpe foi realizada, obviamente, pela Organização Terrorista Fethullah Gülen" (FETO), lia-se ontem num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, utilizando a designação com que o Ministério Público se refere, desde o ano passado, à rede de seguidores do clérigo Fethullah Gülen, ex-aliado de Erdogan que vive autoexilado nos EUA desde 1999 e que se tornou num dos principais críticos e adversários do presidente. Este acusa-o de ter criado um "Estado paralelo" na Turquia, graças à influência em setores dos media, polícia e judicial.
Gülen já negou qualquer envolvimento na tentativa de golpe, dizendo que esse pode até ter sido "encenado" por Erdogan. Gülen, de 75 anos, deu uma rara entrevista a um grupo de jornalistas na sua casa, em Saylorsburg, na Pensilvânia. O clérigo, que está por detrás de uma rede de escolas, empresas e ONG apelidadas Hizmet (serviço, em turco), não falava aos media internacionais desde 2014. Segundo o The Guardian, um dos jornais presentes no sábado, antes da entrevista um médico mediu a sua tensão.
"Depois dos golpes militares na Turquia [já houve três, em 1960, 1971 e 1980] fui pressionado, detido, julgado e enfrentei várias formas de assédio. Agora que a Turquia está no caminho da democracia, não pode voltar atrás", afirmou. "Não acredito que o mundo acredite nas acusações do presidente Erdogan. Existe a possibilidade de o golpe poder ter sido encenado e poder levar a mais acusações" contra os apoiantes do seu movimento", acrescentou.
No sábado, diante dos apoiantes, o presidente turco pediu ao homólogo norte-americano, Barack Obama, que detenha Gülen e o envie para a Turquia. "Se somos parceiros estratégicos, então vão cumprir o nosso pedido", afirmou. O ministro do Trabalho, Suleyman Soylu, foi contudo mais longe e, à estação de televisão Habertürk, disse acreditar que Washington estava por detrás de tudo. "Insinuações públicas e alegações de qualquer papel dos EUA na tentativa falhada de golpe são totalmente falsas e prejudiciais às nossas relações bilaterais", disse o Departamento de Estado, citando a mensagem que o secretário de Estado, John Kerry, terá passado ao chefe da diplomacia turca.
Da parte da Rússia, o presidente Vladimir Putin desejou "um rápido regresso à ordem constitucional e à estabilidade". Num comunicado divulgado pelo Kremlin, Moscovo pede que seja assegurada a segurança dos turistas russos que começam a regressar ao país após a normalização das relações, que tinham ficado danificadas em novembro de 2015, quando um caça turco abateu um aparelho russo que teria entrado em espaço aéreo da Turquia durante uma operação na Síria . Erdogan pediu desculpas a Putin em junho, após Moscovo impor sanções contra Ancara. Agora, segundo a agência RIA, Putin poderá encontrar-se com Erdogan em agosto.