George pediu ar, polícia deu-lhe o joelho. O caso que deixou os EUA a ferro e fogo

Protestos em todo o país, as ameaças de Donald Trump aos manifestantes, um Obama revoltado e ex-colegas de trabalho que se tornaram o vilão e a vítima de um crime que chocou a América. Qual o início, o meio e o fim desta história que está a mexer com o mundo?
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O que ficou dito e feito nuns escassos metros quadrados de uma avenida em Minneapolis ecoou pelo mundo. Durante nove minutos, o americano George Floyd esteve deitado no chão, imobilizado pelo joelho de um polícia sobre o seu pescoço. George não estava armado e o vídeo da sua detenção mostra que não tentou resistir às ações das autoridades, mas aqueles minutos foram os seus últimos. A morte deste homem negro de 46 anos está a levantar ondas de violência em vários estados dos EUA, com protestos diários, envolvendo incendiamento de espaços públicos. E deixou um presidente contra os seus cidadãos revoltados.

Na sexta-feira, as manifestações ganharam corpo, um pouco por todo o país. Centenas de pessoas reuniram-se em vários pontos, entre os quais a entrada da Casa Branca, em Washington, Nova Iorque, Dallas, Houston (a cidade natal da vítima), Las Vegas, Des Moines, Memphis, Portland, entre outros. Protestos violentos que levaram até à morte de um dos ativistas, de 19 anos.

Prevendo uma nova noite de distúrbios, este sábado, o governador do Minnesota, Tim Walz, acionou o maior destacamento da história de 164 anos da Guarda Nacional. Na Georgia, o governador declarou Estado de Emergência. E Donald Trump admitiu ter o exército norte-americano preparado para agir no Minnesota, caso seja necessário.

O presidente norte-americano tem sido severo nas palavras contra os manifestantes. Este sábado, Donald Trump voltou a recorrer ao Twitter para ameaçá-los, alertando que se tivessem violado a cerca na Casa Branca, na noite passada, "teriam sido recebidos com os cães mais cruéis e as armas mais ameaçadoras" que já viu e "ficado gravemente feridos, pelo menos". Presente na Casa Branca quando os protestos arrancaram, não deixou de elogiar o trabalho dos serviços secretos pela proteção que lhe prestaram nessa noite.

O que motivou a detenção

"Por favor, não consigo respirar", repetia George Floyd, deitado no chão. "Não me matem", pediu. "Dói-me tudo", continuou, como se ouve no vídeo altamente partilhado na internet e que registou o momento. Minutos antes, uma comerciante tinha ligado para o número de emergência (911) para apresentar queixa sobre o americano, alegando que este terá comprado cigarros com notas falsas.

"Aqui é da 3759 Chicago Avenue. Alguém veio à nossa loja e deu-nos notas falsas. Percebemos isso antes que ele saísse da loja e corremos lá para fora, estavam sentados no carro. Pedimos para nos devolverem o telemóvel, guardarem a coisa (inaudível) de volta - e ele também estava bêbado e tudo mais - e para devolver os nossos cigarros e assim ele podia ir para casa, mas não queria fazer isso". É a explicação que se ouve na gravação da chamada que denuncia George Floyd, divulgada pelas autoridades, segundo a CNN.

A funcionária alerta que a pessoa em causa "está muito bêbado e não está no controlo de si mesmo". "Tudo bem, tenho ajuda a caminho. Se esse veículo ou essa pessoa sair antes de chegarmos, basta ligar de volta. Caso contrário, teremos esquadrões por aí em breve, ok?", respondeu o operador do outro lado da linha.

Polícia e Floyd foram colegas de trabalho

A revolta popular deu frutos, no final desta semana, na sexta-feira, com a detenção do polícia que prendeu o joelho sobre o pescoço de George Floyd. A família da vítima considerou tratar-se de um "caminho para a justiça", mas considerou-a "tardia e insuficiente". "Queremos uma acusação por homicídio doloso com premeditação e queremos ver os outros agentes (envolvidos) presos", disse a família em comunicado.

O polícia é Derek Chauvin, 44 anos, acusado formalmente de homicídio em terceiro grau, e um dos quatro agentes demitidos depois da divulgação do vídeo que mostra Floyd a ser imobilizado. Contudo, não é a primeira vez que se vê envolvido no centro da revolta de cidadãos. Derek Chauvin soma já 18 queixas da civis por má conduta, segundo a CNN.

Desta vez, não era um simples desconhecido pela vítima. Chauvin e Floyd eram ex-colegas de trabalho. Quem o diz é Maya Santamaria, ex-proprietária do bar El Nuevo Rodeo, onde ambos tinham trabalhado como seguranças noturnos. Chauvin terá trabalhado lá durante 17 anos quando estava fora de serviço. No entanto, não garante que fossem realmente conhecidos. "Eu não os caracterizaria como conhecendo-se um ao outro", disse. Explica que todos trabalham "em diferentes momentos".

Certo é que este episódio foi a gota de água para Kellie Chauvin, esposa do agente, que revelou estar a pedir o divórcio, após dez anos de casamento. Num comunicado divulgado pela sua advogada, diz estar arrasada com a morte de George Floyd, 46 anos, e que o divórcio surge como resultado deste incidente.

Autópsia exclui asfixia

Um dia após a morte do norte-americano, os médicos legistas do condado de Hennepin preparavam-se para responder à questão: afinal, o que matou George Floyd?

A autópsia excluía, afinal, asfixia e estrangulamento, atribuindo o óbito a uma combinação de condições de saúde preexistentes, no entanto agravadas pelo facto de estar a ser imobilizado pela polícia.

"O senhor Floyd tinha condições de saúde preexistentes, incluindo doença coronária e hipertensão", disse fonte da procuradoria-geral do condado de Hennepin. "Os efeitos combinados da imobilização do senhor Floyd pela polícia, as suas comorbilidades e quaisquer potenciais bebidas alcoólicas no seu sistema terão contribuído para a sua morte".

Quem era George Floyd, "o bom gigante"

Cerca de dois metros de altura, tamanho insuficiente para a bondade que emanava e uma vida em mudança. Assim foram as primeiras descrições a chegar do norte-americano que morreu na segunda-feira.

Há pouco tempo, George Floyd tinha deixado a sua cidade de Houston, no Texas, onde cresceu e foi jogador de destaque de basquete e futebol americano. Saiu depois de perder o emprego durante a crise que se instalou no país devido à pandemia de covid-19 e rumou ao norte, onde passou a trabalhar como segurança no restaurante Conga Latin Bistro, que fechou durante a ordem de confinamento em Minnesota.

Algumas pessoas próximas alegam que Floyd estava a tentar ter uma vida melhor. "Queria fazer algo de impacto global", disse à emissora de televisão KPRC em Houston, Jonathan Veal, amigo de infância. Também por isso, conquistava a maioria daqueles que o rodeavam. "Toda a gente adorava o meu irmão", dizia Philonese Floyd, na quinta-feira, um dia após a morte. "Ele era um bom gigante. Não maltratava ninguém."

A namorada de Floyd, Courtney Ross, afirmou que ele era uma luz na comunidade. "Não passava de um anjo que foi enviado à Terra", declarou à CBS News. "E nós demonizamo-lo e matamo-lo." Floyd tinha dois filhos, embora não com a atual namorada. Roxie Washington, a mãe da sua filha de seis anos, que vive em Houston, descreveu-o como um pai dedicado.

Questionada sobre o motivo pelo qual Floyd tinha sido detido, Bridgett Floyd disse que o seu irmão não era perfeito, embora seja "de partir o coração" que tenha sido morto pela polícia. "Foi exatamente o que eles fizeram", disse à NBC News. "Eles mataram o meu irmão. Ele estava a gritar por socorro", lembra.

Darnella filmou tudo e diz estar traumatizada

Por detrás das imagens que correram o mundo e que mostravam o homicídio de George Floyd estava Darnella Frazier, de 17 anos. Abordada pelo NowThis, quando regressava ao local do crime para recriar o que viu, mostrou-se emocionalmente perturbada e admitiu estar traumatizada.

"Eu vi-o morrer. Publiquei o vídeo ontem à noite e ele tornou-se viral. E toda a gente me está a perguntar como me sinto? Eu não sei como me sentir. Porque é tão triste", disse Darnella. "Este homem estava literalmente aqui há 20 horas", lamentou.

Darnella lembra que estava a passar naquele local com o seu primo quando viu George Floyd no chão. Não hesitou em pegar no telemóvel e começar a gravar. A adolescente garante que Chauvin e os restantes agentes não demonstraram preocupação sobre o estado em que estavam a deixar a vítima.

"Ele disse 'Por favor, não consigo respirar, não consigo respirar'. E eles não se importaram. Mataram este homem. E eu estava lá! Eu estava a um metro e meio de distância! É tão traumatizante", disse.

Trump ameaça protestantes

Desde que o caso começou a ser discutido na ala pública que Donald Trump tem demarcado a sua posição contra os protestos que se estendem a todo o país. O presidente criticou as autoridades locais, chamou os manifestantes de "bandidos" e ameaçou uma forte repressão.

"Esses BANDIDOS estão a desonrar a memória de George Floyd e não vou deixar que isto aconteça. Acabo de falar com o governador (de Minnesota), Tim Walz, e disse-lhe que o Exército está completamente ao seu lado. Diante de qualquer dificuldade, assumiremos o controlo mas, quando começar a violência, começará o tiroteio", tuitou na sexta-feira.

Uma expressão que, aliás, remonta à era dos direitos civis. Em 1967, o chefe da polícia de Miami, Walter Headley, usou a frase "quando a violência começa, o tiroteio começa" durante as audiências sobre crimes na cidade da Florida, provocando reações iradas dos líderes dos direitos civis, de acordo com uma reportagem da época.

Após ser sido criticado pelas publicações em que denegriu os manifestantes, Trump moderou o tom e disse apoiar os protestos pacíficos. No entanto, advertiu: "não podemos permitir que uma situação como a que ocorreu em Minneapolis leve a mais anarquia e a um caos sem lei". "Entendo a dor, entendo a dor. Essa realmente passou por muita coisa. A família de George tem direito à justiça e o povo de Minnesota tem o direito de viver a salvo", afirmou.

No entanto, o tom severo nunca chegou realmente a desaparecer e este sábado voltou a ameaçar os manifestantes, dizendo estar preparado para reagir à violência com mais violência.

Donald Trump diz ter conversado nesta sexta com familiares de George Floyd. "Falei com membros da família, gente excelente", declarou o presidente na Casa Branca.

Figuras públicas em defesa dos protestos

Não demorou muito até que se levantassem vozes sobre a morte deste norte-americano. De atores a músicos ou desportistas, nas redes sociais várias personalidades mostraram o seu apoio face às multidões que começavam a sair às ruas em protesto. E nem o ex-presidente Barack Obama, o primeiro negro a chegar à Casa Branca, ficou de fora.

Disse compartilhar da "angústia" de milhões de pessoas pela morte de Floyd e que o racismo "não deveria ser 'normal' nos Estados Unidos de 2020. "Não pode ser normal". "Se quisermos que os nossos filhos cresçam numa nação que esteja à altura dos seus ideais mais elevados, podemos e devemos fazer melhor", escreveu.

Também Joe Biden, candidato democrata da Casa Branca e ex-vice de Obama, denunciou a "ferida aberta" do "racismo institucional" nos EUA, e indiretamente fez menção a Trump. "Agora não é o momento para incentivar a violência", disse. "Precisamos de uma liderança forte, um líder que conduza ao diálogo", finalizou.

Al Sharpton, famoso ativista pelos direitos raciais, lembrou que "as pessoas estão irritadas porque se sentem frustradas por este não ser o primeiro assassinato policial já visto no país".

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