Generais em Angola, doutores em Évora
Dois Geraldos e um Joaquim, já iremos aos nomes de família. Três angolanos a estudar na Universidade de Évora, todos meus colegas de doutoramento, apesar de eu estar um ano adiantado no curso. Por isso, este artigo tem de ser escrito na primeira pessoa: resulta da curiosidade em saber o que leva três generais a virem três ou quatro vezes por ano a Évora, talvez mais até, em busca de saber mais e do prémio de um título de doutor. "As pessoas não querem escrever a história após a independência. A nós interessa, por isso é que estamos na História Contemporânea. É a nossa área", diz um dos Geraldos, de seu nome completo Geraldo Abreu Muengo Ukwachitembo, mais conhecido por "Kamorteiro", hoje vice-chefe do Estado-Maior-General para a Logística e Infraestruturas das Forças Armadas Angolanas.
A partir de agora, passarei a referi-lo como general "Kamorteiro", apelido de respeito que conquistou quando integrou em 1975 as Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA), da UNITA. "É, ganhei esse apelido. Se calhar era bom atirador de morteiros", dispara, a rir-se. Toda a gente em Angola conhece este veterano, o chefe do Estado-Maior da UNITA que em 2002, após a morte de Jonas Savimbi, assinou o acordo que pôs fim a quase três décadas de guerra civil. A conversa decorre numa sala do Palácio Vimioso. Joaquim Rufino Mbeça França tem ainda na mesa o caderno onde tomou apontamentos de um seminário sobre "Construir uma carreira académica". É tenente-general e tal como "Kamorteiro" esteve nas FALA entre 1975 e 2002. Pergunto se nessa Benguela onde nasceu em 1959, vésperas do início da luta de libertação nacional, se chegou a sentir a guerra com os portugueses? "Não se sentia a guerra em termos reais, mas num contexto mais político", diz. "As nossas ideias a respeito da guerra eram incipientes. A idade também não ajudava", acrescenta o general "Kamorteiro", oriundo do Bié e um ano mais velho.
Um académico dinamarquês foi quem deu a aula, em inglês, mas a orientar a sessão está Paulo Guimarães, professor na Universidade de Évora. Conhece bem os generais, já lhes deu aulas ainda no mestrado, e substituiu à última hora nesta conversa combinada comigo Helder Adegar Fonseca, catedrático de História, angolano de nascimento e investigador da África Austral. "O professor Helder é o principal responsável por esta parceria de Évora com a Universidade Agostinho Neto", sublinha Paulo Guimarães, ele próprio com experiência na juventude de ter vivido em Angola e em Moçambique.
Houve aulas também em Luanda, durante o mestrado, outras em Évora, e o mesmo continua a acontecer durante o doutoramento, apesar de a grande maioria das sessões decorrerem em Portugal e serem acompanhadas pelo sistema zoom a partir da capital angolana. Foi o que teve de fazer desta vez o outro aluno Geraldo, ausente por "razões profissionais".
Geraldo Sachipengo Nunda, doutorando do curso de História Contemporânea 2015-2018 pela Universidade de Évora. Foi assim, com modéstia, que assinou duas respostas que lhe pedi por mail sobre a sua aventura académica. Afinal trata-se do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas de Angola, com o qual já me cruzei no Vimioso, palácio do século XVI onde decorrem aqui os cursos de mestrado e doutoramento.
Perguntei ao general Nunda o que leva um militar de alta patente a tirar um doutoramento ainda no ativo? "A carreira termina, geralmente, aos 65 anos, se tivermos o privilégio de atingir a posição mais alta do comando militar, que é a de Chefe das Forças de Defesa/Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, ou aos 60 anos, que é idade de reforma para o General que não vai para o último escalão de Comando Militar. Se o General tiver feito uma formação académica paralela à formação militar, certamente, quererá continuar a estudar e dedicar o resto da sua vida a alguma actividade útil. Trabalhar numa tese que seja agradável e útil, que contenha algumas contribuições para a história do seu país, como é o nosso caso, parece-nos ser importante. O doutoramento empurra-nos para o estudo e gastar o nosso tempo em algo que vale a pena. Assim, depois de terminar o serviço militar, o oficial de alta patente pode passar a ser um investigador ou professor, tanto nas Escolas militares como nas Universidades, lá onde encontrar melhores possibilidades e condições", foi a resposta do militar, nascido na província do Bié e hoje com 64 anos, que pertenceu às FALA mas que em 1993 passou a integrar o exército governamental angolano.
Durante o seminário sobre "Construir uma carreira académica", notei que "Kamorteiro" gravou tudo em tablet. Talvez para que Nunda possa depois ver. Costumam vir juntos a Évora, e em Luanda, onde são vizinhos, juntam-se na casa de um deles para assistir via Zoom (plataforma da net) às sessões. Mas como será isto de andar à escola com o chefe, questiono? "Nunda é muito simples. Quando estamos em aulas, ele não aceita que o tratemos como chefe. Acha que somos colegas. Para nós é pesado, mas para ele é normal. É uma pessoa excecional ", explica o general "Kamorteiro". "O princípio é: enquanto académicos, somos colegas. Fora, ele é o chefe", acrescenta o tenente-general França, a quem perguntei, durante a pausa para café do seminário, se era familiar do general França "Ndalu", um histórico do MPLA que chegou a ser jogador do Sporting quando estudava em Portugal. Não é, disse sorridente, mas fiquei a saber que há muitos Franças em Angola.
O general Nunda tirou o mestrado em Luanda uns anos antes dos dois colegas, sem ligação a Évora e à equipa de Helder Adegar Fonseca. "A ocupação colonial e o seu impacto económico e social em Angola: o caso do planalto do Bié", foi o tema da tese de "Kamorteiro". Já França estudou "A ocupação colonial e a organização agrária no planalto de Benguela: o caso do Dombe Grande". Ambos planeiam desenvolver o tema no doutoramento em História Contemporânea.
Sobre se têm planos para aplicar os estudos na carreira militar, o general "Kamorteiro" ri-se: "Estamos à beira da reforma. A verdade é que, quer queiramos quer não, as nossas idades começam a cobrar. E a docência é uma hipótese. Eu já dei aulas. O camarada França também, e já temos convites e estão a insistir, só que não temos tempo. Como sabe o professor Guimarães, nós acordamos às quatro, voltamos a casa, se calhar, às 19". E há também vontade de ajudar a escrever a história, depois de nela ter participado. "O tempo está a cobrar: são 40 e poucos anos de independência! Mas, como dizia um historiador francês, esta é uma história que ainda sangra", sublinha o militar com apelido de arma de artilharia. Angola tornou-se independente em novembro de 1975.
Fico a saber ainda que voltar a estudar foi decisão pessoal, que propinas e outras despesas são assumidas por cada um dos alunos. Convido "Kamorteiro" e França para caminharmos até ao Colégio do Espírito Santo, principal edifício da universidade, para tirarmos as fotos deste artigo. À nossa espera está o repórter Jorge Amaral.
É pena a conversa com Nunda não ser presencial. Mas foi interessante trocar e-mails com o número um das Forças Armadas Angolanas e perguntar-lhe como é vir a Évora e ser apenas mais um aluno: "Pelo facto de termos retomado os estudos depois de uma interrupção forçada pela situação política no nosso país, depois da assinatura do Protocolo de Lusaka, em Novembro de 1994, defendendo o Trabalho de fim do Curso em Março de 2002, um pouco antes do Memorando do Luena, assinado no dia 4 de Abril de 2002 e termos feito o Mestrado, cuja Dissertação foi defendida em 2009, não foi difícil continuar os estudos e desta vez, como estudante de Doutoramento na Universidade de Évora. Contávamos terminar o nosso primeiro mandato na chefia das Forças Armadas Angolanas em 2014 e fomos renomeados em 2012, nos termos da Constituição da República de Angola promulgada aos 5 dias do mês de Fevereiro de 2010. Quando em 2015 fomos reconduzidos para um novo mandato, entendemos que ficaria quase sine die o início do doutoramento e combinámos, com o suporte dos camaradas generais Geraldo Abreu e Joaquim França, encetarmos diligências junto do Professor Doutor Helder Fonseca, professor catedrático e Director do Departamento de História da Universidade de Évora, para obtermos o seu conselho. Assim, em Novembro de 2015 iniciámos essa empolgante jornada, que foi muito facilitada e viabilizada com a utilização do sistema eLearning, através das plataformas Connect e Zoom. A nossa relação estudantes e professores e entre nós mesmos, enquanto estudantes, tem sido uma agradável experiência."
O professor Paulo Guimarães e os dois generais sentam-se na escadaria dos claustros principais de uma universidade fundada pelos jesuítas há quase 500 anos e que já deu doutoramentos Honoris Causa a figuras como o senegalês Leopold Senghor ou a moçambicana Graça Machel, esta última com o professor Helder Adegar Fonseca como patrono.
Está um calor a lembrar África neste final de tarde alentejano e todos tiram o casaco para a segunda fotografia. Não falámos de política em ano de eleições e da anunciada saída de José Eduardo dos Santos da presidência porque, como militares no ativo, estes generais quase doutores têm de ser apolíticos.
Como o general "Kamorteiro" faz questão de dizer: "As nossas Forças Armadas hoje, em Angola, são mesmo apartidárias e isso há de ter contribuído para a própria unidade nacional. Porque as Forças Armadas estão unidas. Senão, era difícil um Kamorteiro ser vice-chefe do Estado-Maior para a Logística". Uma boa lição de história de Angola em Évora.