Erdogan irrita América e Europa mas fez as pazes com o "amigo Vladimir"

Ao separatismo curdo e aos jihadistas, o presidente turco soma agora outro desafio: o golpe militar falhado de 15 de julho que lhe deu argumentos para afastar os fiéis do inimigo Gülen e exigir a solidariedade da oposição
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Uma tentativa de golpe de Estado, como a de 15 de julho na Turquia, é propícia a teorias da conspiração. Quem o escrevia era a Newsweek passados uns dias sobre a saída dos tanques às ruas de Ancara, Istambul e outras cidades do país. Uma das primeira, lembrava a revista americana, foi a de que o presidente tinha orquestrado tudo para ter uma desculpa para se livrar dos inimigos. Mas se Erdogan nunca escondeu o desejo de transformar a Turquia num sistema presidencialista, tudo indica que se os militares tivessem sido bem-sucedidos, não teria escapado com vida, lembra a revista, dando um golpe sim, mas nesta teoria.

Passado um mês, Erdogan está bem vivo. E é verdade que suspendeu mais de 80 mil pessoas - juízes, professores, etc. - que acusa de estarem ligados a Fethullah Gülen, o clérigo muçulmano cuja extradição exige aos EUA. Esse é um dos grandes desafios de Erdogan. A pressão de Ancara para que Washington lhe entregue Gülen, que aos 75 anos vive na Pensilvânia, está a ameaçar a relação entre os países.

Uma tensão que o homem que lidera a Turquia desde 2003 - primeiro como chefe do governo, desde 2014 como presidente - dispensava. Até porque o pós-tentativa de golpe veio também perturbar as suas relações com a União Europeia. Depois do acordo de março através do qual Ancara prometia travar o fluxo de refugiados para a Europa a troco de ajuda financeira, mas sobretudo do fim da necessidade de vistos para os cidadãos turcos na UE e da aceleração das negociações para a adesão da Turquia, tudo foi posto em causa depois de 15 de julho. Bruxelas condenou a repressão lançada pelo governo, este respondeu acusando a UE de "encorajar" os golpistas.

Consciente de que não pode abrir mais uma frente de "batalha", Erdogan esteve há dias em Moscovo, para fazer as pazes com o "amigo Vladimir". Envolvido ao lado do regime de Bashar al-Assad na guerra na Síria, o presidente russo Vladimir Putin ficara irritado com Ancara desde o derrube de um caça russo pelos turcos em fins de 2015.

Antigo futebolista semiprofissional, presidente da Câmara de Istambul até ser afastado - e detido durante quatro meses - por ter lido um poema nacionalista, Erdogan fundou o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP). Mas quando este chega ao poder, em 2002, ainda está banido da política, só podendo assumir como primeiro-ministro no ano seguinte. Ganharia mais duas eleições antes de se tornar o primeiro presidente eleito de forma direta. Se o seu sucesso político é inegável, Erdogan deve muita da popularidade ao sucesso económico, com a Turquia a crescer 4,5% em média na última década.

Confrontado com ataques tanto dos rebeldes curdos do PKK como dos jihadistas do Estado Islâmico, instalado na vizinha Síria e responsável pela fuga dos mais de 2,5 milhões de refugiados que hoje vivem na Turquia, o filho de um guarda costeiro, que adolescente vendia limonada e sementes de sésamo pelas ruas de Istambul, tem na segurança um dos maiores desafios. Diante de duas frentes internas, decidiu reformar o poderoso exército depois do golpe. Afinal, os militares, vistos como guardiães da laicidade e responsáveis pelo derrube de vários governos antes da chegada de Erdogan ao poder, pareciam sob controlo. Pelo menos até 15 de julho.

Com a tentativa de golpe, Erdogan ganhou uma estranha harmonia com os partidos da oposição. Não só todos eles - inclusive os pró-curdos do HDP - condenaram a ação dos militares que resultou em quase 250 mortos, como nacionalistas e kemalistas têm participado nas manifestações convocadas pelo AKP. Afinal nem tudo são más notícias para o presidente a quem chamam "o sultão" e sonha ficar no poder até 2023, centenário da fundação da Turquia moderna por Atatürk.

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