"Kadhafi estava convencido de que tinha uma missão cósmica"

Escritor e ex-militar argelino Yasmina Khadra vestiu a pele do líder líbio e imaginou uma autobiografia

Ser argelino, ter sido educado como muçulmano e ser um ex-militar ajudou-o a entrar no espírito do líbio Kadhafi para esta autobiografia ficcionada A Última Noite do Tirano?

Certamente. Muammar Kadhafi ocupou um lugar central no debate político magrebino durante mais de 40 anos. Como ele, eu sou arabo-berbere, nascido no deserto, numa tribo. Praticámos ambos a mesma religião, falámos a mesma língua e sofremos as mesmas desilusões. O que me deu legitimidade para escrever este romance.

Chegou em certo momento a admirar essa personalidade, que chegou ao poder em 1969 após um golpe militar?

Muammar Kadhafi trouxe à juventude magrebina uma imensa esperança quando, aos 27 anos, derrubou o rei Idriss e instaurou a Jamahiriya, ou seja, uma república gerida e governada pelo povo. Os seus discursos estavam cheios de sonhos e ambições. Na época, os nossos países saíam do jugo colonial e os nossos povos procuravam novas referências e novos guias. Kadhafi encarnou as nossas aspirações íntimas no início do seu reinado. Ao contrário de outros governantes árabes, que não passavam de predadores ou de reis preguiçosos sem projetos de sociedade para os seus países, Kadhafi ousava desafios que nos entusiasmavam. Depois, abandonado sucessivamente pelos outros chefes de Estado árabes, fechou-se pouco a pouco numa paranoia que acabou por transformar-se numa inacreditável megalomania. Muammar Kadhafi esqueceu o seu povo para se revoltar contra o Ocidente, que acusava de corromper os chefes de Estado árabes. Foi a partir dessa reviravolta que desapareceu de vista o jovem coronel para assistirmos ao nascimento de um ditador.

Kadhafi era verdadeiramente megalómano ou tentou construir uma Líbia mais próspera?

Kadhafi não tinha uma cultura de construtor. Tinha a alma do guerreiro, uma herança tribal. Em vez de construir a sua nação, escolheu fazer a guerra ao Ocidente através do financiamento do terrorismo internacional e manipulando os países africanos. A Líbia é muito rica. O país poderia ter prosperado se Kadhafi não tivesse procurado açambarcar todos os poderes. Ele acreditava encarnar a nação e não fez mais do que transformar os súbditos num povo de subsidiados.

Kadhafi não tinha uma cultura de construtor. Tinha a alma do guerreiro, uma herança tribal. Em vez de construir a sua nação, escolheu fazer a guerra ao Ocidente através do financiamento do terrorismo internacional

Que base têm as histórias de virgens violadas e de consumo de drogas?

Não acredito nessas histórias de virgens violadas. Essa prática não parece ter que ver com ele. Kadhafi era demasiado narcisista para se permitir uma bestialidade assim tão redutora. Ele adorava seduzir as mulheres porque tinha necessidade de ser amado. Amado pelo seu povo, pelos poetas, pelas mulheres, pelos seus cortesãos. A miséria da sua infância tornou-o viciado na afeição. Claro, há testemunhos incriminadores que o apresentam como um pedófilo e um violador, mas não acredito muito. Vivemos num mundo de rumores e elucubrações. Tudo aquilo que diz respeito à enormidade obscena nos fascina. Aprendi a não acreditar em tudo o que se conta de uns e outros.

No seu livro, Kadhafi consulta o Alcorão. Era crente?

Sim, era crente. Ele estava convencido de que tinha uma missão cósmica e que era protegido por anjos, o que explica a sua atitude suicidária e a sua cabeça dura, até a sua cegueira.

Pensa que Kadhafi compreendeu as razões da queda?

Não lhe deram tempo para compreender o que tinha acontecido. Ele pensava que conseguiria derrotar a insurreição e estava convencido de que o seu povo não o deixaria cair. Até aos últimos minutos de vida, Kadhafi esperava um milagre. No vídeo do seu linchamento, vemo-lo perplexo, atónito, como se vivesse um mau sonho com a esperança de acordar.

Até aos últimos minutos de vida, Kadhafi esperava um milagre. No vídeo do seu linchamento, vemo-lo perplexo, atónito, como se vivesse um mau sonho com a esperança de acordar

A Líbia de hoje é pior do que a Líbia de Kadhafi?

A Líbia está em perigo. É um país tribal, com as suas cargas de rancores velhos de séculos e as suas incompatibilidades. A sua história está pejada de graves mal-entendidos, de vinganças intermináveis e de ódios implacáveis. Kadhafi teve sucesso em cicatrizar essas feridas e em federar as tribos inimigas. Construiu uma nação mais ou menos homogénea. Ele era mesmo o único garante da unidade nacional. Na sua queda, provocou o desmoronamento da nação. A Líbia está a caminho de voltar a cair nos seus dramas do passado. Cada tribo reencontrou os seus traumatismos históricos e os seus ódios seculares. Cada tribo reivindica o seu território ancestral e a sua autonomia. As milícias investem contra as brechas provocadas pelas fraturas sociais. O Daesh [Estado Islâmico no acrónimo árabe] encontrou aí o seu viveiro de preferência, e é toda a África do Norte que está ameaçada.

A sua Argélia viveu uma guerra civil nos anos 1990. Hoje está pacificada e evitou as convulsões da Primavera Árabe. Está otimista sobre o futuro do seu país?

Não tenho o direito de não sonhar. Com todas as minhas forças, quero que o meu país tenha sucesso e que a paz regresse aos corações e aos espíritos. Os argelinos sofreram demasiado. Merecem recolher os frutos dos sacrifícios. Infelizmente, falta-nos esses homens de boa vontade capazes de fazer avançar as coisas e de edificar o país da modernidade e da democracia.

Este livro foi o mais difícil que escreveu até hoje?

Sim, nunca ninguém está à vontade para se meter na pele de um tirano conhecido mundialmente e de o revelar na sua mais íntima verdade. Mas um romancista deve conhecer o fator humano, um pouco de história e a natureza de uma sociedade para não se perder em efabulações. Além disso, sempre trabalhei para merecer os meus leitores. Assim junto o útil e o agradável para não os dececionar.

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