E depois do Idai, garantir que a assistência pós-emergência chega aos mais vulneráveis

José Beirão, dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), conta na primeira pessoa como foi viver ao ciclone Idai. E o que falta fazer um mês volvido.

A minha família e eu somos da Beira, mas no dia do ciclone Idai encontrava-me em Maputo numa reunião de trabalho como gestor de pesquisas operacionais da Médicos Sem Fronteiras. Até às 23h00, consegui falar por telefone com a minha mulher, que estava em casa com os nossos três filhos, de 6, 10 e 12 anos. Ela descreveu que o vento ficava cada vez mais forte, até que a ligação foi cortada e não consegui restabelecer o contacto telefónico.

Foi desesperante. As imagens que víamos na televisão, a mostrar a destruição e a reportar possíveis mortes, aumentavam a minha angústia. Só consegui ter notícias novamente quando regressei à cidade três dias depois. Felizmente a minha família estava bem, apesar dos danos na casa: as janelas estavam todas partidas e as chapas do telhado desapareceram com o ciclone.

Antes da chegada do Idai à costa de Moçambique, a 14 de março, ninguém tinha total consciência da sua força. Os ventos fortes e as cheias que se seguiram mataram pelo menos 602 pessoas no país e causaram mais de 1600 feridos. Milhares de pessoas perderam as casas, além de fontes seguras de água potável e alimentos.

À medida que a tempestade que deu origem ao Idai se intensificava sobre o oceano a leste de Moçambique, as equipas MSF na cidade da Beira começaram a equacionar as medidas de prevenção. A farmácia, o armazém, os escritórios e os alojamentos foram preparados para um possível desastre e os medicamentos colocados o mais alto possível em prateleiras para que permanecessem secos em caso de inundações. Aos nossos profissionais que moram na cidade foi pedido que tomassem as mesmas precauções nas suas casas.

Aos poucos, com o restabelecimento da rede móvel, os nossos colegas na Beira começaram a avisar as equipas internacionais sobre a devastação causada pelo vento e pela água. A 16 de março, quando o Aeroporto da Beira foi reaberto, uma equipa de emergência viajou de Maputo para avaliar as necessidades. Ao mesmo tempo, toneladas de equipamentos e bens precisos para a resposta de emergência estavam já a caminho, desde os nossos armazéns em Maputo, na Bélgica e nos Emirados Árabes Unidos.

O meu trabalho na MSF é investigar possíveis soluções para problemas que possam afectar os projetos regulares da organização em Moçambique. Nesses projetos atendemos grupos com elevado risco de contrair VIH, pessoas que vivem com o vírus e quem se encontra em estado avançado da doença. Além disso, tenho a oportunidade de acompanhar de perto o trabalho de ajuda humanitária em outros países. E algo que chama a atenção é que, frequentemente, uma crise humanitária é seguida por uma crise de água. Com a passagem de um ciclone com a magnitude que o Idai teve, muito dificilmente seria diferente na Beira.

As cheias e os danos provocados pelo Idai na infraestrutura de água e saneamento resultaram num surto de cólera quase inevitável. MSF previu essa probabilidade e, por isso, começou a trabalhar desde 21 de março com o Ministério da Saúde em dois centros de saúde da cidade para isolar e cuidar de pessoas que apresentavam sintomas da doença. De início chegámos a atender 200 pacientes por dia em apenas uma unidade de tratamento. A desidratação de alguns deles era tão severa que muitos não conseguiam suster-se de pé. Os nossos enfermeiros trabalhavam sem parar, administrando soro para reidratação o mais rápido que podiam.

Com a confirmação oficial do surto, a 27 de março, três centros de tratamento específicos para cólera, com uma capacidade total de cerca de 350 camas, já estavam a ser construídos no âmbito da parceria MSF com o Ministério da Saúde. Foram também instaladas unidades mais pequenas em distritos próximos à Beira. Estávamos prontos para cuidar dos pacientes que já estavam connosco e, como a doença é altamente contagiosa e se propaga rapidamente em áreas urbanas como a Beira, também nos preparámos para um grande aumento na chegada de pacientes: das 350 camas disponíveis que tínhamos com o Ministério da Saúde, estávamos prontos para ampliar para mil se necessário. Preparámo-nos para o pior ao mesmo tempo que desejávamos que o alargamento da nossa resposta de emergência não fosse preciso.

O pior foi evitado com a campanha de vacinação contra a cólera, que imunizou mais de 700 mil pessoas, e com uma rápida ação na área de água e saneamento. Com o restabelecimento e fornecimento imediato de água limpa, foi sem dúvida possível salvar vidas. A limpeza de poços rasos, a desinfeção de fontes de água contaminada e a distribuição de cloro nas áreas afetadas foram algumas das outras atividades das equipas MSF no terreno.

Pouco mais de um mês depois da passagem do ciclone Idai, a cidade da Beira retorna aos poucos à vida normal. Nesse período tratámos com o Ministério da Saúde mais de 3400 pacientes com cólera na região atingida pelas cheias. Embora esteja em franco declínio, o surto ainda não foi totalmente superado.

Além disso, muito tem de ser feito pela população, em especial por quem perdeu tudo o que tinha e tem dificuldade até em retomar os tratamentos que fazia antes, como, por exemplo, com os antirretrovirais. A MSF continua assim alerta para identificar as necessidades pós-emergência no país e pronta a prestar a sua experiência médica no que for preciso, como faz há mais de 30 anos em Moçambique.

Gestor de pesquisas operacionais Médicos Sem Fronteiras

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