Impeachment ou não? Dilema dos democratas para afastar Trump

Com a campanha para as presidenciais de 2020 já em curso, a divulgação do relatório Mueller sobre a ingerência russa nas eleições de 2016 trouxe o <em>impeachment </em>de volta ao debate. Mas a oposição está dividida.
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Traição, suborno ou outro crime ou delito grave, como obstrução à justiça, perjúrio ou abuso de autoridade. São estas as acusações com que os democratas terão de avançar contra Donald Trump se quiserem dar início ao processo de impeachment contra o presidente. A questão da destituição voltou a estar em cima da mesa depois da revelação do relatório do procurador especial Robert Mueller sobre a ingerência russa na campanha para as presidenciais de 2016. Se não prova ter havido conluio por parte de Trump, o documento não o iliba de obstrução à justiça. Mas, dentro do próprio partido, a destituição é tudo menos consensual, talvez por muitos saberem que até hoje só dois presidentes americanos foram alvo de impeachment. E ambos foram ilibados.

"Se qualquer outro ser humano neste país tivesse feito o que está documentado no relatório de Mueller, já teria sido preso", afirmou Elizabeth Warren. A senadora do Massachusetts foi a primeira dos (muitos) candidatos à nomeação democrata para as presidenciais de 2020 a pronunciar-se a favor de iniciar um processo de destituição contra Trump. Mas não foi a única. A ela juntou-se Kamala Harris, com a senadora da Califórnia a defender ter chegado o momento de o Congresso agir. Mas nem todos os candidatos democratas partilham desta opinião. O senador do Vermont Bernie Sanders recordou que o mais importante é "garantir que Trump não é reeleito" e o mayor Pete Buttigieg, a grande surpresa desta campanha, também preferiu sublinhar que a decisão está nas mãos do Congresso.

Ora, no Congresso - onde os democratas controlam a Câmara dos Representantes desde as eleições intercalares de novembro de 2018, mas onde os republicanos de Trump até aumentaram a maioria que tinham no Senado -, a speaker da Câmara tem sido das mais relutantes em avançar para o impeachment. A veterana democrata Nancy Pelosi garantiu nesta semana que, "se os factos nos obrigarem a isso, não teremos outra hipótese", mas logo acrescentou: "Mas ainda não estamos nessa fase." Numa entrevista ao USA Today , a presidente da Câmara dos Representantes - terceira figura do Estado americano, depois do presidente e do vice-presidente - lembrou que, de acordo com as últimas sondagens disponíveis (realizadas antes da revelação do relatório Mueller, é certo), só 35% dos americanos acham que Trump deve ser destituído. E o último estudo da Gallup, feito, esse sim, já depois da revelação do documento, mostra que a popularidade do presidente até subiu - passando de 39% em março para 45% neste mês. Uma sondagem Rasmussen coloca-o mesmo nos 50% de aprovação - um estudo que o próprio partilhou no Twitter.

Um processo político e não judicial

Mas o que é afinal o impeachment? O processo de destituição pode ser aberto pelo Congresso contra o presidente ou outro alto responsável do Estado em caso de traição, suborno ou outro crime grave, de acordo com a secção IV do artigo 2.º da Constituição dos Estados Unidos. Tudo começa com o Congresso a votar por maioria a abertura do processo de impeachment. Depois, são nomeados os membros do Congresso encarregados da "acusação" durante o "julgamento", que decorre no Senado. Os senadores funcionam como uma espécie de júri que vai decidir se o presidente é ou não culpado. O procurador-geral, desde janeiro William Barr, funciona como juiz.

Apesar deste formato, muito semelhante ao de uma sala de tribunal, o impeachment não é um processo judicial, é um processo político. Logo, mesmo que fosse considerado culpado, e, por consequência, afastado do cargo, o presidente não seria detido, tendo para isso de passar pelo sistema judicial.

Para ser destituído do cargo, Trump teria de ser considerado culpado por dois terços dos senadores. Um cenário difícil de conceber, sobretudo porque implicaria que aos democratas se juntasse um número substancial de republicanos.

A verdade é que o processo de impeachment é tão raro que até hoje só dois presidentes foram sujeitos a um. Com o republicano Richard Nixon a demitir-se em 1974 antes de o Congresso votar a abertura do processo de impeachment devido ao seu envolvimento no escândalo do Watergate, só Andrew Johnson e Bill Clinton foram alvo de um processo de destituição. Em 1867, ainda os EUA recuperavam da Guerra Civil, quando o 17.º presidente decidiu tirar do cargo Edwin Stanton, o seu secretário da Guerra e seu maior crítico, violando uma lei que o proibia de demitir um responsável aprovado pelo Senado sem o consentimento deste. Na hora de votar, o Congresso falhou a maioria de dois terços apenas por um voto. Mais fresco na memória está o processo de destituição contra Clinton. Em 1998, o presidente foi alvo de impeachment por mentir sob juramento sobre a sua relação com a estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky. Foi ilibado com 55 votos contra 45 no Senado.

Recurso ao Supremo?

Com várias personalidades democratas a trazer o impeachment de novo para cima da mesa após a divulgação das 448 páginas do relatório Mueller, Trump não tardou a reagir. Como quase sempre, através do Twitter, a sua rede social preferida. "Não há crimes cometidos por mim (nem conluio, nem obstrução), por isso não podem destituir-me", escreveu num tweet. Noutro acusa: "Apesar de ser escrito por democratas irados e pessoas que odeiam Trump, e com dinheiro ilimitado ao seu dispor (35 000 000 de dólares), o Relatório Mueller não me tocou. NÃO FIZ NADA DE MAL. Se os democratas tentarem a destituição, recorreria em primeiro lugar ao Supremo [Tribunal]."

A ameaça do presidente de recorrer à mais alta instância judicial dos EUA para travar um processo de impeachment não faz muito sentido, uma vez que a destituição é uma questão política e não judicial. Isso mesmo lembrou à revista Time Laurence Tribe, professor de Direito Constitucional em Harvard, segundo o qual o Supremo "não quereria ter nada que ver com um desafio legal como esse". Os Pais Fundadores da Constituição americana debateram se o impeachment devia ficar nas mãos do Supremo, mas desistiram da ideia por várias razões: não só a decisão ficaria nas mãos de um pequeníssimo número de pessoas como alguns desses juízes seriam nomeados pelo presidente que estariam a julgar - no caso de Trump, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh -, criando um conflito de interesses.

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