"Delírio", "negacionismo": Bolsonaro mentiu dez vezes na ONU

Após o discurso, o presidente do Brasil foi acusado por especialistas de "delírio", de "negacionismo", de "viver numa realidade paralela". Duas agências de confirmação de dados contabilizaram meias verdades, frases exageradas, posições insustentáveis e, no mínimo, uma dezena de <em>fake news.</em>
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Jair Bolsonaro mentiu, pelo menos, dez vezes nos 15 minutos em que discursou na abertura da 75.ª Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, na terça-feira (dia 22), de acordo com a contabilidade cruzada pelo DN dos dados de duas das principais agências de fack checking brasileiras, a Lupa e a Aos Fatos. As agências dão em boa medida razão às críticas que se ouviram nas últimas horas de especialistas e da oposição à comunicação do presidente do Brasil.

Da direita liberal, representada por João Amoêdo, ex-candidato à presidência pelo partido Novo, para quem "o discurso de Bolsonaro seguiu o padrão", com "algumas mentiras, transferência de responsabilidades, não reconhecimento de erros, culpabilização da imprensa e mistura de estado com religião", num, sublinha, "prejuízo da imagem do país".

À esquerda, do deputado federal pelo PSOL Marcelo Freixo. "O discurso de Bolsonaro foi uma sucessão vergonhosa de mentiras, não restam dúvidas de que ele é o pior presidente do mundo."

Passando pela ambientalista Marina Silva, líder do Rede e três vezes candidata presidencial: "O Brasil é um pária ambiental. Está de parabéns? Não, presidente, é uma lástima."

Fora da política também houve críticas contundentes: "Seguindo à risca a cartilha do General Heleno [ministro do gabinete de segurança] de promover a 'guerra de narrativas', ao invés da guerra aos ilícitos e à corrupção ambiental reinante no país, Jair Bolsonaro faz na ONU uma série de afirmações fakes (ou meio verdadeiras) a respeito da política e da situação socioambiental no Brasil", resumiu André Lima, advogado socioambientalista e colunista do site Congresso em Foco.

Para Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, "ao arrasar a imagem internacional do Brasil como está arrasando os nossos biomas, Bolsonaro prova que seu patriotismo sempre foi de fachada".

O Greenpeace disse em nota que "o discurso negacionista de Bolsonaro envergonha o povo brasileiro e isola o Brasil do mundo". Mariana Mota, coordenadora de Políticas Públicas da entidade, lembrou que "já estamos habituados a ouvir o presidente faltar com a verdade, desqualificar a ciência e buscar culpabilizar terceiros ao invés de assumir a responsabilidade constitucional que possui".

Gabriela Yamaguchi, diretora de compromisso da organização, divulgou uma nota criticando o que chamou de uma comunicação "cheia de acusações infundadas e ilações sem base científica" e citou como exemplo o ponto em que Bolsonaro diz que as queimadas são provocadas pelos índios e caboclos.

Yamaguchi destaca ainda que o presidente descreveu "um Brasil que não existiu em 2020, em completo negacionismo da realidade do país".

Veja aqui o discurso na íntegra:

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Independentemente das opiniões, as agências de confirmação de dados contabilizaram dezenas de meias verdades, dados infundados e, simplesmente, mentiras. Eis dez delas, seis relativas a questões ambientais e quatro sobre o combate à pandemia de covid-19.

1. "Temos a matriz energética mais limpa e diversificada do mundo", disse Bolsonaro. Segundo levantamento do Atlas de Energia da Associação Internacional de Energia, organização vinculada à OCDE, o Brasil tinha, em 2018, 45% do suprimento de energia decorrente de fontes renováveis. O mesmo relatório mostra que há países com matrizes mais limpas, como a Islândia (89%), Moçambique (78%) e Noruega (49%), sublinha a agência Aos Fatos.

2. "A nossa floresta é húmida e não permite a propagação do fogo no seu interior. Os incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares." Dados da Organização Não Governamental Ipam e da Nasa apresentados pela Aos Fatos indicam que os focos de incêndio que atingiram a região em 2019 aconteceram em áreas previamente desmatadas.

3. "Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação. Mantenho a minha política de tolerância zero com o crime ambiental."

O número de multas ambientais aplicadas pelo Ibama, órgão estatal responsável pela execução da política de meio ambiente, caiu em 34% em 2019, o menor número em 24 anos, de acordo com reportagem do jornal Folha de S. Paulo. Em valores financeiros, a queda foi de 43,3%.

Segundo levantamento feito pela Agência Pública, entretanto, o Ibama multou 40% a menos entre janeiro e julho de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, acrescenta a Agência Lupa.

4. "As grandes queimadas são consequências inevitáveis da alta temperatura local, somada ao acúmulo de massa orgânica em decomposição."

Segundo investigações da Polícia Federal, uma das hipóteses do aumento das queimadas no Pantanal é a ação criminosa, conforme relatado na Operação Matáá, deflagrada no dia 14, em cidades da região do Pantanal para apurar a responsabilidade criminal pelas queimadas na região.

Quatro fazendas vêm sendo investigadas por terem iniciado as queimadas na região, reforçando a suspeita de incêndio proposital, conforme a polícia.

Ainda de acordo com a polícia, o dano ambiental apurado supera mais de 25 mil hectares do bioma pantaneiro. Dados consolidados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais apontam que o bioma Pantanal registrou 16 119 queimadas de 1 de janeiro a 21 de setembro deste ano, contra 5652 no mesmo período do ano passado - um aumento de 185%.

5. "Somos líderes em conservação de florestas tropicais."

Um terço da perda de florestas tropicais primárias do mundo foi registado no Brasil, segundo dados de junho de 2020 da Global Forest Watch, organização não governamental que faz a vigilância de florestas em todo o mundo, recolhidos pela agência Lupa.

O país está em primeiro lugar na lista dos que perderam mais floresta primária em 2019.

Além disso, segundo o Índice de Desempenho Ambiental, estudo publicado em julho de 2020 pelas universidades de Yale e Columbia, nos Estados Unidos, o Brasil ocupa o 114.º lugar na categoria que mede a perda anual de área florestal proporcional ao território, considerando a média dos últimos cinco anos. Nesta categoria, o país está atrás de todos os outros países amazónicos: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname.

6. "Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano."

Até ao momento, as investigações relacionadas a um derramamento de óleo que poluiu dois mil km do litoral brasileiro não indicaram culpados.

7. "Desde o princípio [da pandemia], alertei que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade."

Em levantamento feito nas redes e nos discursos do presidente, Aos Fatos conclui que Bolsonaro não tratou as duas questões com o mesmo peso, minimizando os efeitros da covid-19.

8. "Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores. Ao presidente coube o envio de recursos e meios a todo o país."

Esta informação falsa, das mais comuns entre Bolsonaro e aliados, ignora que decisão do Supremo Tribunal brasileiro determinou que o governo federal respeitasse a autonomia de estados e municípios nas medidas de isolamento contra a covid-19, mas que o dever de combater a pandemia era partilhado por todas as instâncias do poder público, presidência, claro, acima de todas.

9. "E, no primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificámos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso comprova a confiança do mundo em nosso Governo."

Dados do Branco Central apontados pela Aos Fatos indicam diminuição e não aumento - segundo a instituição, nos primeiros seis meses de 2019, o Brasil recebeu 66,2 mil milhões em investimentos; em 2020, registou 61,4 bilhões, cerca de 7,3% a menos.

10. "O Governo estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença."

Segundo a agência Lupa, a informação é falsa. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda não existe tratamento, remédio ou vacina efetiva contra a covid-19 e as maneiras mais eficazes de proteção a si e aos outros são lavagem das mãos, uso de máscaras e distância social de pelo menos um metro.

Sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, a que Bolsonaro aludia, a OMS diz que as evidências disponíveis sobre os seus benefícios são "insuficientes" e que há efeitos colaterais a ter em conta.

Em junho, o próprio Ministério da Saúde do Govenro de Bolsonaro diz que a orientação para a prescrição do medicamento não é obrigatória.

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