Corrida municipal no Recife marcada por duelo de primos

No Brasil, a política ainda é um negócio de família: João Campos, bisneto de Miguel Arraes, histórico governador de Pernambuco e filho de Eduardo Campos, candidato presidencial falecido em 2014 num acidente de avião, disputa prefeitura com a prima Marília Arraes, apoiada por Lula
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Um dos duelos mais aguardados e mediáticos das eleições municipais do Brasil ocorre no Recife, a capital de Pernambuco, onde João Campos e Marília Arraes, primos, estão no primeiro e no segundo lugares, respetivamente, na corrida à prefeitura da quarta maior área metropolitana do país. Mas para entender a divisão na cidade - e na família - é preciso recuar mais de 100 anos.

Foi em 1916 que num estado vizinho, o Ceará, nasceu o advogado, economista e político Miguel Arraes, prefeito do Recife, deputado estadual, deputado federal e, por três vezes, governador de Pernambuco ao longo da vida. Férreo opositor da ditadura militar, que de 1964 a 1985 oprimiu o Brasil, construiu uma reputação de gestor competente e voltado às populações mais pobres. Essa reputação passou de geração em geração até chegar ao bisneto, João Campos, e à neta, Marília Arraes, os primos em segundo grau hoje em polos opostos na eleição recifense.

"É provável que seja uma disputa pelo legado em definitivo, ou pelo menos por um longo período, para definir quem herdará os votos da marca", disse o cientista político Túlio Velho Barreto, no portal UOL.

Campos, 26 anos, e Marília, 36, começaram ambos nas fileiras do Partido Socialista Brasileiro (PSB), força política de que o bisavô dele e avô dela foi uma das principais figuras nacionais.

Em 2014, no entanto, deu-se a cisão: Marília, que desempenhava desde 2008 as funções de secretária da juventude do Recife, viu Eduardo Campos, pai de João e principal liderança política e familiar no estado, tentar entregar o cargo ao filho.

Além disso, sentiu-se prejudicada por não ter sido a escolhida para suceder à sua tia, Ana Arraes, mãe de Eduardo e avó de João, como candidata a deputada federal, em benefício de outros familiares. "Uma ditadura", queixou-se Marília.

A 13 de agosto de 2014, exatos 11 anos após a morte de Miguel Arraes, seu avô, Eduardo Campos, então candidato presidencial contra Dilma Rousseff, do PT, que tentava reeleger-se, e Aécio Neves, do PSDB, morre num acidente aéreo em Santos. Marina Silva, candidata a vice-presidente, assume o posto mas fica em terceiro lugar na primeira volta.

Logo nessa eleição, João Campos e Marília Arraes ficam em polos opostos: o filho de Eduardo, ao lado da mãe, Renata Campos, opta por dar apoio a Aécio, na segunda volta; Marília Arraes, já numa trajetória de aproximação ao PT, vota Dilma.

Dois anos depois, já no PT, Marília é contra o impeachment da então presidente; o PSB de Pernambuco posiciona-se ao lado da oposição.

E em 2018, concorrem os dois à Câmara dos Deputados: o bisneto de Miguel Arraes é o mais votado de Pernambuco, com mais de 450 mil votos, seguido da neta do patriarca com perto de 200 mil.

Nas sondagens para a prefeitura, João Campos lidera confortavelmente enquanto Marília Arraes, em viés de subida, luta pela segunda vaga com candidatos à direita. O Ibope, um dos principais institutos de pesquisas do Brasil, atribuiu na segunda-feira 33% das intenções de voto ao candidato do PSB, enquanto a indicada pelo PT soma 21 pontos. Mendonça Filho (DEM), que foi ministro de Michel Temer, é escolhido por 17% e a Delegada Patrícia (Podemos), a preferida do presidente Jair Bolsonaro, segue com 12%.

Marília chamou o primo de "frouxo" por não comparecer a debates e reclama para si o legado do avô. "Eu sempre tive lado, eu estou com Lula e sou a única candidata que pode bater no peito e dizer que nunca rompeu com o legado de Miguel Arraes, que nunca deixou de ser de esquerda, que melhorou o país e cuidou das pessoas, combatendo desigualdades e tirando milhões da pobreza". Acusou ainda Campos de ter vergonha do apoio dado a Aécio e Temer e de ter responsabilidades na ascensão de Bolsonaro ao Palácio do Planalto.

Campos opta pela cautela quando confrontado com o duelo familiar: "Política é uma coisa, família é outra", diz, com a segurança de quem lidera as sondagens, encabeça uma coligação de 12 forças partidárias e conta com o statu quo pernambucano do lado. Tanto Paulo Câmara, governador estadual, como Geraldo Júlio, atual prefeito do Recife, ambos do PSB, são aliados do jovem político.

Até o senador Humberto Costa, um dos líderes do PT no estado, preferia uma aliança do partido com Campos em vez de endossar o apoio a Marília. Em declarações ao jornal Folha de S. Paulo, Costa disse que a candidata "nunca conversou com ninguém desde que foi escolhida e colocou um grupo para fazer programa de governo sem debater com o PT".

"No caso da esquerda, a fragmentação foi ruim. Continuo defendendo a ideia de trabalhar candidatos únicos desse campo no país inteiro, especialmente nas grandes cidades, mas prevaleceram outras visões. Tenho história de muitos anos no PT e sempre aceitei as decisões do partido. Agora não será diferente: vou encaminhar a decisão e vamos aí para essa caminhada", afirmou ainda, ao UOL.

Apesar de colocar panos quentes na relação com a prima, João Campos não esconde um diferendo familiar: com o tio Antônio Campos, membro do governo Bolsonaro como presidente de um instituto ligado ao ministério da educação.

Em discussão na Câmara dos deputados chamou o único irmão do seu pai de "pior do que o ministro da educação", na ocasião o controverso Abraham Weintraub, e ouviu, em resposta, que "foi nutrido pela mamadeira [biberão] da Odebrecht", numa alusão à construtora do escândalo do Petrolão em que Eduardo Campos, já depois de morto, foi envolvido.

As "castas" familiares, entretanto, são uma tradição longa no Brasil. Um levantamento de 2016 do site Transparências avaliou que a "bancada dos parentes" era a mais poderosa do Congresso na anterior legislatura com 238 dos 594 congressistas (ou seja, 40%) com pelo menos um familiar em cargos públicos.

O caso é mais visível a nível local, onde proliferam clãs familiares de décadas - ou séculos. No Maranhão, o clã Sarney, criado em torno do antigo presidente José Sarney (PMDB), governou direta ou indiretamente por 50 anos.

Em Minas Gerais, Aécio Neves é neto de Tancredo Neves, que morreu antes da posse como presidente do Brasil em 1985.

Há os clãs dos Magalhães, na Bahia, que vão do velho cacique Antônio Carlos Magalhães ao hoje prefeito de Salvador, conhecido como ACM Neto, os Calheiros, no Alagoas, do ex-presidente do Senado Renan Calheiros e do seu filho homónimo e atual governador do estado, os Gomes, do Ceará, com Ciro, o mais famoso, mas também os seus irmãos Cid e Ivo em lugares de destaque, ou os Virgílio, no Amazonas, como o nome de guerra do deputado Arthur Virgílio Bisneto (PSDB) ilustra.

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