Como uma caixa de comida pode levar os mais pobres a votar em Maduro

Presidente introduziu as CLAP em 2016 e agora usa-as para ganhar eleições de 20 de maio. Oposição denuncia cinismo.
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Um pacote de arroz na mesa da cozinha de uma família esfomeada pode ser a chave para Nicolás Maduro conseguir o apoio dos venezuelanos pobres nas presidenciais de maio. Para milhões de venezuelanos que sofrem com uma crise económica sem precedentes, a entrega mensal de uma caixa de comida subsidiada pelo governo de Maduro permite uma ténue ligação à vida no país que um dia foi um Estado próspero da OPEP.

O sucessor de Hugo Chávez, de 55 anos, introduziu as caixas CLAP em 2016 e fez dessa uma das marcas da sua liderança política, dando seguimento à estratégia socialista, que procura obter o apoio popular com bónus em dinheiro ou prendas. Maduro, que concorre às eleições de 20 de maio, diz que as CLAP "são a arma mais poderosa" para combater "a guerra económica" liderada a partir de Washington, que lhe chama "ditador" e lhe impôs sanções.

Mariana, mãe solteira, vive no bairro de Petare, em Caracas. Diz que as entregas das caixas serão decisivas para o seu voto. "Eu e outras mulheres que conheço vamos votar em Maduro porque ele promete dar CLAP, o que ajuda a resolver alguns problemas", diz a cozinheira de 30 anos, que recusa dar o apelido, por receio de perder aquela ajuda. "Quando se ganha o salário mínimo, que não chega para cobrir os preços exorbitantes, a caixa ajuda."

A chegada ao poder de Maduro, em 2013, coincidiu com uma grande recessão, causada por uma quebra nos preços do petróleo e políticas próprias de um Estado falhado. Quanto mais a economia piora, mais dependentes os venezuelanos mais pobres se tornam do Estado. A vida nos barrios pobres deste país da América do Sul gira em torno das caixas CLAP. Segundo o governo, seis milhões de famílias recebem esta ajuda, numa população de 30 milhões. A maioria dos bens colocados nas caixas vêm de fora, especialmente do México, desde que a produção alimentar na Venezuela caiu e os controlos de capitais restringiram as importações.

Os críticos, incluindo o principal rival de Maduro a 20 de maio, Henri Falcón, dizem que as CLAP são uma forma cínica de domínio político e de compadrio com a corrupção. Existe algum ressentimento em relação à forma como o governo fornece e controla os grupos de distribuição da ajuda. "Não posso contar com isto. Umas vezes vem, outras não", nota Viviana Colmenares, de 24 anos, desempregada, mãe de seis filhos, que luta pela vida em Petare.

"Instrumento da Revolução"

Estampadas com os rostos de Maduro e Chávez, as caixas CLAP contêm arroz, massa, grão, óleo, leite em pó, atum enlatado e outros bens básicos. Quem as recebe paga 25 mil bolívares por caixa ou 0,12 cêntimos de dólar no mercado negro. Essa é uma dádiva dos céus num país em que o salário mínimo é inferior a 2 dólares, a essa taxa de câmbio - que facilmente desapareceriam ao comprar duas caixas de ovos ou uma lata de leite em pó.

A inflação, a mais de 4000% por ano, segundo dados da oposição, está a desfazer os salários.

Quem gere as CLAP - os comités de produção e distribuição local - não esconde as motivações políticas. "As CLAP vieram para ficar. São um instrumento da revolução", diz Freddy Bernal, administrador chefe das CLAP. "Isto ajudou-nos a parar a exploração social e permitiu--nos ganhar as eleições", afirma à Reuters, referindo-se às vitórias do governo nas eleições locais de 2017.

Às vezes, porém, a tática não resulta, como aconteceu no Natal, quando prometeu pernil. Este não chegou. Houve protestos.

A incapacidade de Maduro em acabar com a fome esbarra com a experiência do tempo de Chávez, que chegou à presidência em 1998 e melhorou os indicadores sociais da Venezuela à custa de políticas financiadas pelas receitas do petróleo. Apesar de a taxa de aprovação de Maduro estar nos 26%, segundo uma sondagem recente, a sua reeleição é provável até porque a oposição está a boicotar as eleições, denunciando fraude.

Os seus rivais mais populares estão proibidos de concorrer e as autoridades eleitorais favorecem o governo. O ex-governador Falcón rompeu com a coligação para concorrer. Uma sondagem Datanalisis de fevereiro mostrou que, se a corrida fosse a dois, ele derrotaria Maduro com 45,8% contra 32,2%.

Os críticos de Falcón argumentam que estes números nada significam e que as irregularidades podem fazer a balança pender para o lado de Maduro. Outras figuras menos conhecidas candidataram-se, mas têm poucas hipóteses de causar qualquer impacto.

"Não posso depender da caixa"

Juan Luis Hernández, especialista em alimentação da Universidade Central da Venezuela, estima que o país gera apenas 44% dos bens alimentares que produzia em 2008.

Entretanto, a importação de alimentos caiu 67% entre o início de 2016 e o final de 2017, diz. Quase dois terços dos venezuelanos questionados no estudo universitário publicado em fevereiro admitiram ter perdido 11 quilos no último ano. 87% diziam viver na pobreza.

O mesmo estudo constatou que sete em dez venezuelanos recebiam caixas CLAP. "[O governo] não quer saber da questão alimentar, apenas em dar algo às pessoas para comer até às eleições", diz Susana Raffalli, consultora da organização Caritas.

Alguns venezuelanos temem ser castigados e não receber mais caixas se alguém descobrir que não votaram em Maduro. Muitas entregas estão já longe de garantidas. Uma dúzia de beneficiários disse à Reuters que às vezes as caixas só vinham meio cheias e só nalguns meses. Fora de Caracas as entregas são ainda mais esporádicas. "Não posso depender de uma caixa, caso contrário iria morrer de fome", admite Yuni Perez, recoletora de lixo e mãe de três filhos. Perez, que vive numa casa rudimentar de Petare, diz que a caixa CLAP dá à sua família a possibilidade de se alimentar durante uma semana. Normalmente recebe uma de dois em dois meses. Quando a família não tem comida, ela procura sobras nas ruas de Petare. Aí às vezes encontra bebés abandonados por mães que não conseguem alimentar mais uma boca.

Yaneidy Guzman, outra residente de Petare, mãe de três filhos, diz ter emagrecido 20 quilos no ano passado, de 68 para 48, apesar de receber as caixas CLAP. "Pelo menos durante dez dias não pensas em ter de arranjar o que comer", diz a mulher de 32 anos, com as maçãs do rosto a sobressaírem-lhe da cara.

Jornalistas da Reuters

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