Como Miguel, 5 anos, se pode tornar o George Floyd brasileiro
Mirtes, empregada doméstica negra e pobre, deixou filho ao cuidado da patroa, Sari, branca e rica, enquanto passeava a cadela desta. Sari, que deixou o menino entrar num elevador e cair de um nono andar, pagou fiança e está livre. Caso já gerou petição e manifestações e tem a situação nos EUA como pano de fundo
A meio do terceiro dia consecutivo com recorde de óbitos pelo novo coronavírus, o Brasil chora a morte de Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, no Recife. Miguel, negro, caiu do nono andar de um prédio de luxo no centro da capital do estado nordestino de Pernambuco enquanto estava sob os cuidados da mulher, branca, para quem a sua mãe trabalha como empregada doméstica.
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Apesar da quarentena decretada em virtude da pandemia de covid-19, Mirtes Renata de Souza, a mãe de Miguel, continuava a trabalhar na casa de Sari Corte Real, a mulher de Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, cidade a cerca de 100 quilómetros do Recife. Como, ao contrário de Mirtes, as escolas e creches da cidade puderam cumprir quarentena, ela foi obrigada a levar o filho, Miguel, para o trabalho, isto é, para a casa de Sari e Sérgio, que anunciou em abril ter sido contaminado pelo novo coronavírus.
De acordo com o delegado de polícia Ramon Teixeira, enquanto foi passear a cadela dos patrões à rua, Mirtes deixou Miguel aos cuidados da Sari. Esta, no entanto, enquanto era atendida por uma manicure, permitiu que o menino, que perguntava pela mãe, saísse do apartamento, no quinto andar, e usasse o elevador sozinho. Imagens do circuito interno do edifício mostram-na a falar ao telemóvel sem impedir que Miguel premisse os botões do sétimo e do nono andares.
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Sozinho, Miguel parou no sétimo e não saiu do elevador. Mas no nono saiu e subiu a uma caixa de ar condicionado de onde caiu acidentalmente de uma altura de 35 metros, morrendo instantes depois do embate. A polícia diz que Miguel gritava pela mãe antes da queda.
As autoridades indiciaram Sari Corte Real por homicídio culposo - sem intenção de matar - acusando-a de negligência. "A responsabilidade legal naquela circunstância era da moradora. A criança estava sob sua responsabilidade. Ela tinha o poder e o dever de cuidar da criança e impedir, em última análise, o trágico resultado que adveio", disse o delegado Teixeira.
Sari Corte Real, porém, já está em liberdade, depois de pagar uma fiança de 20 mil reais [perto de quatro mil euros].
Entrevistada pela Rede Globo, a mãe da criança disse que "se fosse ao contrário não teria direito a fiança". "É uma vida que se foi por falta de paciência, não se deixa uma criança sozinha dentro de um elevador", continuou Mirtes.
Para a historiadora Luciana da Cruz Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e especialista em história da escravidão, abolição e pós-abolição no Brasil e nos EUA entrevistada pela BBC Brasil, a morte de Miguel resume o debate sobre as diferenças entre a questão racial nos dois países.
"É uma vida que se foi por falta de paciência, não se deixa uma criança sozinha dentro de um elevador"
"A nossa supremacia branca é assim. Não tivemos leis segregacionistas, como nos Estados Unidos, mas temos o mesmo princípio de que algumas pessoas são mais humanas do que outras", afirmou, com o caso da morte de George Floyd às mãos da polícia do estado do Minnesota, nos EUA, como pano de fundo.
A hashtag #justiçapormiguel chegou às mais comentadas no Brasil. Figuras públicas aderiram de imediato ao movimento: "A história do Miguel infelizmente é uma tragédia real. Enquanto Mirtes, a mãe, carrega a maior dor possível nas costas, Sari, a patroa, paga fiança e está livre para voltar pra casa. E se fosse ao contrário?", escreveu a cantora Iza.
"Impossível não chorar, impossível! Olho para o rosto do meu filho e penso na dor daquela mãe, que eu jamais imaginarei o tamanho e a intensidade", disse a também cantora Marília Mendonça.
Corre uma petição, assinada já por meio milhão de pessoas, a exigir que o crime passe de culposo a doloso, ou seja, quando há intenção de matar.
"Desprezo pela vida dos pobres"
"É triste e indignante a morte de Miguel. É impossível não ver em toda esse episódio terrível o recorte de classe e as marcas do racismo estrutural que rege as relações sociais no Brasil e que se refletem com muito mais força no trabalho doméstico", resumiu Luciana Santos, a vice-governadora de Pernambuco.
Outros políticos comentaram, como a presidente nacional do Partido dos Trabalhadores Gleisi Hoffmann, para quem "o desprezo pela vida dos pobres, dos negros está arraigado na sociedade". "O preconceito e o racismo desumanizam vidas e é contra isso que precisamos lutar!".
"Causa profunda tristeza e indignação a morte do menino Miguel. Vítima de uma desumanidade cruel e covarde, do descaso com a vida em sua fase mais vulnerável, a infância, que é quando mais são necessários respeito, afeto e cuidado. Que a justiça seja feita", pediu Marina Silva, três vezes candidata presidencial.
O escritor e ativista Anderson França, exilado em Portugal desde a eleição de Jair Bolsonaro à presidência, pediu uma manifestação em frente ao prédio. "Eu assumi o compromisso público de providenciar advogados para cada um que for detido ou preso amanhã [hoje] em Recife, às 13 horas, em frente ao condomínio Torres Gêmeas, no protesto que haverá naquele lugar pedindo justiça por Miguel Otávio".
"Eu vou dedicar cada dia da minha vida para conseguir ajudar as pessoas que forem lá amanhã. Você, pessoa branca que me enche a caixa de mensagem perguntando o que pode fazer: você vai juntar dinheiro com outras pessoas e pagar o salário que Mirtes recebia, até o fim do ano, porque agora ela está sem trabalho", concluiu.
No dia 18 de maio, entretanto, João Pedro Mattos, de 14 anos, foi morto numa ação policial enquanto brincava com os primos dentro da casa da família em São Gonçalo, nos arredores do Rio de Janeiro. Três agentes invadiram a casa disparando, sob o argumento de que perseguiam criminosos que se haviam refugiado no local.
Estes dois, e muitos outros casos, trouxeram à tona a comparação, em números, com o caso Floyd, nos Estados Unidos.
No Brasil a polícia matou 17 vezes mais negros do que nos Estados Unidos, de acordo com dados cruzados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e de outras organizações compilados pelo site Poder360.
A polícia dos Estados Unidos matou 1.099 pessoas em 2019. Dessas, 259 eram negras (24%). No Brasil, a polícia fez quase 6 vezes mais vítimas: 5.804 até ao ano passado. Do total, 75% (ou 4.533) eram negros.
No Brasil a polícia matou 17 vezes mais negros do que nos Estados Unidos
A polícia militar do Estado de São Paulo matou 218 pessoas em alegado confronto no primeiro trimestre de 2020. Dessas, 63,5% eram negras ou mulatas. No mesmo período, 31 negros, 41 brancos e 13 hispânicos foram mortos pela polícia norte-americana. No Rio de Janeiro, 80,3% dos 885 mortos pela polícia no primeiro semestre de 2019 eram negros.
Em 2018, 343 agentes da polícia brasileiros morreram em serviço. Desses, 51,7% eram negros. A maioria foi vítima de homicídio doloso (60,6%) ou latrocínio (32%). Nos EUA, 106 polícias morreram em 2018, segundo o FBI, entre negros e brancos.
Os negros também são maioria na população privada de liberdade no Brasil. De acordo com dados do primeiro semestre de 2017, representavam, em junho daquele ano, 61,6% do contingente de presos.