Censura artística no Brasil regista mais de 30 casos em dois anos
A instrução da Embaixada do Brasil no Uruguai, na semana passada, para retirar do 8.º Festival de Cinema do Brasil de Montevideu o documentário Chico: Artista Brasileiro, sobre o músico Chico Buarque de Holanda, não foi o primeiro caso de censura artística no país nos últimos tempos mas apenas a ponta de um icebergue. Há pelo menos mais 30 registos de obras censuradas, de acordo com o Observatório de Censura à Arte, site fundado há dois meses para contabilizar e organizar todos os episódios.
"Começamos os registos a partir do caso do Queermuseu, em setembro de 2017, porque, pela repercussão nacional imensa que teve, se tornou emblemático, uma espécie de início de todos estes casos de conservadorismo, depois seguiram-se alguns ao longo de 2018, portanto ainda durante o governo de Michel Temer, de repercussão mais local ou regional, e agora em 2019, com Jair Bolsonaro, os episódios sucedem-se", disse ao DN Thaís Seganfredo, umas das editoras daquele observatório.
O caso do Queermuseu, uma mostra de 270 obras de 85 artistas sobre diversidade sexual, decorreu no espaço Santander Cultural, ligado ao Banco Santander, em Porto Alegre, no sul do Brasil, em agosto e setembro de 2017.
Sob a acusação de que as obras incitavam a "pedofilia", a "zoofilia" e a "imoralidade" de um modo geral, membros do Movimento Brasil Livre, composto por jovens ativos nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff do ano anterior, pressionaram pelo seu fecho nas redes sociais e chegaram a invadir o espaço assediando os visitantes. Foram bem-sucedidos. No dia 10 de setembro, a Santander Cultural emitiu nota a cancelar a mostra sem informar o curador nem a produção: "Ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo."
O curador Gaudêncio Fidélis queixava-se à versão brasileira do jornal El País da então crescente onda de ultraconservadorismo na sociedade brasileira, que desaguaria na eleição, um ano e um mês depois, de Jair Bolsonaro como presidente. "Cresceram narrativas falsas que se juntam a narrativas de grupos ligados ao Bolsonaro e a outros setores ultraconservadores da sociedade", disse.
Ao longo de 2017 e 2018, ainda na gestão Temer mas já sob aquela onda conservadora, surgiram outros casos de censura. Já com o ex-deputado de extrema-direita no poder, os casos multiplicaram-se, de norte a sul do país, gerando cancelamentos de exposições, de peças teatrais e de outras manifestações por decisão dos poderes políticos. As justificativas variaram de episódio para episódio e de censor para censor: crítica ao governo, apologia da pedofilia, desrespeito a símbolos religiosos, apelo LGBT ou, simplesmente, nudez.
Em abril, o próprio Bolsonaro demitiu o diretor de marketing e comunicação do Banco do Brasil por causa de um anúncio da empresa pública num tom jovial em que se destacava a diversidade racial do país.
Dias depois, foi enviado um e-mail pelo governo a condicionar todas as ações publicitárias estatais à Secretaria de Comunicação do Planalto. Bolsonaro recuaria, no entanto, ao ser informado de estar a infringir a lei, através da chamada "lei das estatais".
A partir de julho, entretanto, a preceder o veto ao documentário de Chico Buarque, os casos tornaram-se semanais, às vezes diários.
"Está valendo tudo nesse país da putaria da esquerda. Está na hora de agir antes que seja tarde, porque eles já mostraram ao que vieram e não têm mais vergonha alguma de esconder isso", disse Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro e filho do presidente Jair Bolsonaro, no dia 6 daquele mês, a propósito de um festival punk em Belém, no Pará, interrompido à força pela polícia militar.
"Mas um dos episódios mais simbólicos foi o espetáculo da banda BNegão e os Seletores de Frequência, em Bonito [Mato Grosso do Sul], no dia 27 de julho, em que a polícia militar interrompeu o concerto por ele ter falado do Bolsonaro", acrescenta Thaís Seganfredo, do Observatório de Censura à Arte.
Na turística cidade sul mato-grossense, após o líder da banda tecer críticas a Bolsonaro e à violência policial, os agentes interromperam a apresentação. E logo na sequência a prefeitura manifestou uma nota de repúdio à atitude dos músicos.
"Não só acabaram com o show como expulsaram a galera empurrando, com cassetete, mostrando arma e jogando gás pimenta. Estão tentando transformar o Brasil em estado policial. O prefeito falou depois que não é para fazer manifestação política. Então é censura total", reagiu BNegão ao portal UOL.
Dias depois, o concerto da cantora transexual Linn da Quebrada, que ocorreria na Parada LGBT de João Pessoa, foi cancelado pela organização do evento, a Fundação Cultural de João Pessoa, por ter recebido "uma orientação" de que o discurso de Linn seria "muito pejorativo".
O espetáculo Res Publica 2023, da Companhia A Motosserra Perfumada, estava previsto para estrear em outubro, no complexo cultural Fundação Nacional das Artes (Funarte) em São Paulo. No dia 18 de agosto, no entanto, o grupo foi informado de que a apresentação não reunia "qualidade artística" para ocupar o espaço e estava cancelada. Nomeado pelo ministro da Cidadania Osmar Terra, o novo diretor da Funarte, Roberto Alvim, afirmou ao jornal O Globo que sob sua gestão não haverá "mais peças com viés ideológico, seja de esquerda ou de direita, e que não sejam obras de arte".
A companhia disse que Alvim "apenas cumpre a gasta agenda do bolsonarismo de criar polémicas morais e ideológicas, principalmente com artistas, para adiar o conhecimento público da inoperância do seu governo, da debilidade administrativa e mental do seu presidente e da farra dos interesses privados sobre as riquezas materiais e simbólicas do Brasil".
"Com esse gesto de censura - que, a rigor, nem lhe caberia, afinal, a sua função no governo é administrativa e não curatorial, cabendo-lhe no máximo nomear curadores, não curar espetáculos - Roberto Alvim mandou avisar que não medirá esforços contra peças que exponham qualquer conteúdo que lhe pareça crítico com relação ao governo, fazendo prevalecer a patrulha ideológica sobre qualquer critério artístico", concluiu.
O Ministério da Cidadania decidiu, três dias depois, cancelar também um edital, em andamento, que selecionaria obras para transmissão em televisões públicas. A causa foi a presença de finalistas com a temática LGBT. Após o anúncio, o secretário da Cultura, Henrique Pires, renunciou ao cargo por não concordar com a atitude.
Menos de 48 horas depois, três filmes foram vetados da 3.ª Mostra do Filme Marginal, no Rio de Janeiro, por decisão do organizador, o Centro Cultural da Justiça Federal, sob o argumento de a instituição não exibir "produções de cunho corporativo, religioso ou político-partidário".
Dois dos filmes foram acusados de criticar o presidente Jair Bolsonaro - Mente Aberta (2019) apresentava um áudio de Bolsonaro, e Rebento (2019) trazia a frase "Repulsa ao presidente" - e o terceiro, Nosso Sagrado (2017), é um documentário sobre a intolerância contra as religiões de matriz africana.
Um cartoon de Latuff, no último dia 3, levou a câmara de vereadores de Porto Alegre a vetar a mostra Independência em Risco, exposta no local: Na charge, aparecia uma caricatura de Bolsonaro a lamber o sapato do presidente norte-americano Donald Trump. "O tema da exposição, Independência em Risco parece que foi realmente muito apropriado para os tempos que estamos vivendo", resumiu o artista.
Na noite do dia 5 de setembro, o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, sobrinho do fundador da IURD Edir Macedo, publicou um vídeo nas redes sociais a anunciar ter exigido aos organizadores da Bienal do Rio que retirassem o livro Vingadores - A Cruzada das Crianças, que continha um beijo entre dois meninos adolescentes.
Na manhã seguinte, o livro esgotou. Mesmo assim, à tarde, fiscais da prefeitura foram ao Riocentro, centro comercial onde se realizou a Bienal, tentar retirar essa e outras obras de conteúdo LGBT.
"Há censura de várias instâncias do poder, desde os próprios gestores dos eventos culturais, passando por empresas e pelo poder legislativo, e terminando no poder executivo, como o caso recente do [prefeito do Rio de Janeiro Marcelo] Crivella, a propósito de um beijo gay numa banda desenhada, ou do governo federal", resume Thaís Seganfredo.
E conclui: "Não acredito que noutras democracias se vejam tantos casos como no Brasil, seja pelo conservadorismo, pela suposta moral cristã, o que fere não só a expressão dos artistas como a laicidade do Estado, num flirt declarado com a teocracia, seja por críticas ao governo federal."