Carnaval do Rio, jogo, dinheiro e assassinatos: a sina da família Garcia
Duas portas de entrada por razões de segurança. Divisões a perder de conta. Pelo menos sete casas de banho. Obras de arte em cada canto. Um ginásio perfeitamente equipado. Dependências para o batalhão de empregados. Uma sauna. Um campo de futebol. E um mini-jardim zoológico liderado por duas ruidosas catatuas.
Os agentes da polícia que cumpriram na terça-feira passada (16 de junho) o mandato de busca no Condomínio Park Palace, na Barra da Tijuca, orla do Rio de Janeiro, ficaram boquiabertos com o luxo da casa de Bernardo Bello, de acordo com reportagem do jornal Extra.
Bello, empresário ligado ao jogo do bicho, a bolsa ilegal de apostas em figuras de animais criada no final do século XIX no Rio e que perdura até hoje, é suspeito de ser o autor intelectual da maioria das execuções na família Garcia, à qual pertenceu até se separar em 2012 de Tamara Garcia.
Quem o acusa é a ex-cunhada Shanna Garcia, irmã gémea de Tamara. O motivo, diz ela, é ter acesso à fortuna de 25 milhões de reais [perto de cinco milhões de euros] do "bicheiro" Waldomiro "Maninho" Garcia, o pai de ambas e sogro de Bello, assassinado em 2004 [ver lista de personagens no final do texto].
"Eu tenho desconfiança do meu ex-cunhado. Briga de família. Houve uma situação em que ele me ameaçou. Ele toma conta de todos os bens legais que tenho em inventário e acho que para ele eu sou uma ameaça. Estou com medo", disse Shanna em fevereiro deste ano.
Shanna falava, na altura, à porta da delegacia onde prestara declarações durante mais de quatro horas sobre a execução do também magnata do jogo ilegal Alcebíades "Bid" Garcia, irmão de Maninho e seu tio.
Depois de assistir à última noite de desfiles do grupo especial do carnaval do Rio na célebre Marquês de Sapucaí, Bid foi atingido no peito, na cabeça e nos braços por cerca de 40 tiros de metralhadoras disparadas por dois homens encapuzados, ao chegar ao condomínio da namorada.
"Fui à janela ver, porque parecia fogo-de-artifício, mas percebi que foi uma rajada, uma execução, ele nem chegou a sair do carro", contou uma testemunha à polícia.
Quatro meses antes, em outubro de 2019, a própria Shanna saiu do seu carro, blindado, para entrar num centro comercial da Barra da Tijuca quando foi atingida por dois tiros, um no pulso e outro no tórax, disparados de dentro de uma viatura que a bloqueou no parque de estacionamento depois de a perseguir por quilómetros. Como ela conseguiu reentrar e fechar-se no automóvel, sobreviveu. A cena foi gravada pelas câmaras de segurança do shopping.
Em abril de 2017, Myro, o irmão mais novo de Shanna, foi sequestrado ao sair de um ginásio. Pedro Marques, primo de ambos, ainda levou ao local combinado, o quilómetro 2758 da Estrada do Rio Morto, na zona oeste do Rio, os 100 mil reais [equivalentes hoje a perto de 20 mil euros] exigidos pelos sequestradores. Mas estes levaram a quantia e ainda executaram Myro na frente do primo.
Myro, por se apresentar como jogador profissional de póquer, atividade que o levava a realizar viagens frequentes ao estrangeiro, não era tão presente como outros membros da família na gestão do jogo do bicho, informa o portal G1.
Seis anos antes, em 2011, José Lopes, conhecido como Zé Personal e ex-marido de Shanna, foi assassinado durante uma sessão espírita no bairro carioca Praça Seca.
Segundo Shanna, a partir daí Bello passou a controlar os pontos de jogo do bicho que pertenciam a Personal, razão pela qual suspeita novamente da ação do ex-cunhado.
A relação entre Bello e Personal era conturbada, pelo menos, desde 2006, quando o primeiro se queixou à polícia de ser alvo do segundo. De acordo com Bello, os cunhados Personal e Shanna "encomendaram numa reunião com cerca de 50 polícias, ex-polícias e ex-presidiários" a sua morte.
Para executá-la, acusa Bello, foi chamado Adriano da Nóbrega, o ex-polícia que vem sendo notícia no Brasil nos último ano e meio por liderar a milícia Escritório do Crime, supostamente implicada no assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, e por a sua mãe e a sua ex-mulher terem sido funcionárias do então vereador do Rio Flávio Bolsonaro.
Flávio, aliás, homenageou-o na Assembleia Legislativa carioca e o seu pai, o hoje presidente da República Jair Bolsonaro, subiu ao palanque da Câmara dos Deputados em 2005 para o defender.
Nóbrega foi morto em fevereiro deste ano numa região rural do nordeste brasileiro em operação conjunta das polícias da Bahia e do Rio de Janeiro, depois de anos foragido da justiça.
Antes de ser notícia pela ligação com a família presidencial, Adriano tornara-se conhecido em 2008 por ter sido acusado de liderar a tentativa de homicídio do empresário Rogério Mesquita, outro tio de Shanna, a mando dela e de Personal, para os quais a polícia acredita que trabalhava como guarda-costas. Em causa, a intromissão de Mesquita no jogo do bicho.
O casal acabou ilibado das acusações.
Shanna nega que receba dinheiro do jogo do bicho. De acordo com ela, todos os pontos do império da família em bairros do Rio estão com o ex-cunhado Bernardo, que também controlaria cerca de duas mil máquinas de jogos tipo jackpot, na zona sul carioca. Shanna garante que vive apenas do aluguer dos espaços comerciais que o seu pai adquiriu porque, afirma, desde 2013 deixou de receber dinheiro das atividades de jogo ilegal por ordem de Bernardo.
Entretanto, a primeira morte mediática na família Garcia foi a do próprio Maninho, pai de Shanna, Tamara e Myro, irmão de Bid, sogro de Bello e Personal e primo de Mesquita cuja fortuna de 25 milhões de reais pode ser o motivo de tantos crimes.
Foi atingido ao sair, com o filho Myro, de um ginásio, em 2004, quando contava 42 anos. Condenado em 1993 a seis anos e meio de prisão por formação de quadrilha e contrabando, saiu a meio da pena para voltar a controlar, com mão de ferro, os interesses da família no jogo ilegal.
Sucedera ao pai, Waldomiro, na condução desses interesses mas também na direção dos destinos da tradicional escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, nove vezes campeã do carnaval do Rio de Janeiro.
A ligação entre o jogo do bicho e as escolas de samba é conhecida da opinião pública: remonta aos anos 30 do século passado, quando o "bicheiro" Natal, por investir fortunas na popularíssima Portela, ainda hoje uma das maiores campeãs do carnaval carioca, encontrou uma forma de se legitimar perante a sociedade e o poder público.
Uma prática que, quase um século depois, é repetida por Bello, o alegado autor intelectual de parte dos assassinatos na família Garcia. Afastado da família desde que há nove anos se separou de Tamara, trocou a Salgueiro pela Unidos de Vila Isabel, outra histórica escola de samba do Rio, de que foi presidente em 2017 e na qual exerce hoje o papel de eminência parda.
"O combate à lavagem de dinheiro nas escolas de samba é uma tarefa bastante difícil devido à dificuldade em encontrar provas profundas desta infração. Todavia, existe ainda outro fator de grande relevância ao falar de carnaval: a relação com a sociedade", defende em artigo no site do Instituto dos Profissionais da prevenção à Lavagem de Dinheiro a delegada de polícia Patrícia Alemany.
"A cobertura mediática em torno do evento, por exemplo, diminui os questionamentos legais ao exaltar a festa e os camarotes repletos de artistas, que exibem uma relação de amizade com os padrinhos das escolas, ou seja, os contraventores ["bicheiros"]", defende a especialista em crimes relacionados à lavagem de dinheiro.
E conclui: "Esta aceitação por parte da sociedade fortalece as ações ilegais, à medida que o poder público caminha de forma isolada, sem pressão da sociedade para uma legislação mais severa em relação à lavagem de dinheiro no carnaval".
Quando efetuaram as buscas à luxuosa casa de Bello na última terça-feira, os agentes encontraram apenas a mulher, os filhos, a mãe e a avó mas não o empresário, alegadamente a negócios em São Paulo. A polícia investiga se houve uma fuga de informação interna da operação.
Mais 11 pessoas, entretanto, estiveram na mira da operação, batizada de "Sucessão" e envolvendo 200 agentes.
Dez dos visados eram polícias militares e civis na ativa e na reserva. A exceção foi Tamara, a ex-mulher de Bello e irmã gémea de Shanna, com quem não se relaciona por desentendimentos relativos à herança de Maninho, também ela alvo de mandatos de buscas e apreensão.
Waldomiro "Miro" Garcia
Pioneiro do negócio do "Jogo do Bicho" na família e patrono da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. Morreu em 2004 de causas naturais.
Waldomiro "Maninho" Garcia
Filho de Miro, controlou os negócios com mão de ferro até ser assassinado em 2004 ao sair de um ginásio.
Alcebíades "Bid" Garcia
Filho de Miro e irmão de Maninho, tornou-se um dos líderes do negócio, após a morte de ambos em 2004. Acabou executado na última noite do carnaval deste ano, por rajadas de tiros disparadas por dois encapuzados.
Shanna Garcia
Neta de Miro, filha de Maninho e sobrinha de Bid, acusa o ex-cunhado Bernardo Bello de ser o autor intelectual dos últimos atentados sofridos pela família, motivado pela herança da fortuna de Maninho e pelo controlo do negócio de jogo do bicho. Em outubro de 2019 foi atingida por dois tiros ao sair do seu carro blindado para entrar num centro comercial na Barra da Tijuca.
José "Zé Personal" Lopes
Foi casado com Shanna e chegou a lutar pelo controlo dos negócios da família com Bernardo Bello, então marido de Tamara, irmã gémea de Shanna. Foi assassinado, em 2011, enquanto participava numa sessão espírita.
Tamara Garcia
Irmã gémea de Shanna, com quem se incompatibilizou por questões de dinheiro e de poder nos últimos anos, foi casada com Bernardo Bello.
Myro Garcia
Irmão mais novo de Shanna e Tamara, não tinha ligação, pelo menos próxima, aos negócios familiares, atuando como jogador profissional de póquer. Sequestrado ao sair de um ginásio em 2017, acabou executado pelos raptores mesmo depois de um primo entregar o dinheiro combinado para o resgate.
Bernardo Bello
Ex-marido de Tamara, é acusado pela ex-cunhada Shanna de ser o autor intelectual do atentado de que ela foi vítima não fatal e das execuções de Myro e Bid. Ele nega. Nesta semana, a polícia fez buscas à sua luxuosa mansão na Barra da Tijuca, zona sul do Rio. Funciona como eminência parda da escola de samba Unidos da Vila Isabel, depois de romper com a Acadêmicos do Salgueiro, a preferida da família Garcia.
Adriano da Nóbrega
Líder da Escritório do Crime, milícia mais mortal do Rio, foi acusado por Bello de tramar a sua execução, a mando de Shanna e Zé Personal. É ainda suspeito da morte do empresário Rogério Mesquita, primo dos Garcia, também alegadamente por encomenda do casal. Morto em tiroteio com a polícia da Bahia em fevereiro deste ano, vinha sendo notícia no Brasil no último ano e meio pela relação íntima com a família Bolsonaro e por Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, os acusados da execução de Marielle Franco, terem relação com a Escritório do Crime.