Cameron: o conservador "pragmático" que pode ter destruído duas uniões
Nunca foi eurofóbico mas não morria de amores pela UE. Podia ter sido um reformista mas lembrou-se de fazer um referendo
No sábado, o dia a seguir ao terramoto do brexit, enquanto as ruas de Londres se coloriam com o orgulho gay, a deputada conservadora Justine Greening anunciava no Twitter que vive atualmente numa relação feliz com outra mulher. Não tardaram as felicitações. De muita gente. E também do chefe de governo britânico. "Parabéns, Justine. Isso são ótimas notícias", escreveu David Cameron na rede social. Afinal foi ele o primeiro-ministro que, em 2011, desafiou o conservadorismo do partido, apelando aos membros para que aprovassem a proposta de legalização do casamento homossexual apresentada pelos Liberais-Democratas, partido que, por esses dias, governava em coligação com os Tories.
"Está em causa a igualdade, mas também outra coisa: compromisso. Não é apesar de eu ser conservador que apoio o casamento homossexual. É exatamente porque sou conservador", explicou o primeiro-ministro. Este era o Cameron que o próprio Cameron queria que ficasse para a história: o liberal e reformista, que tinha deslocado o Partido Conservador mais para o centro do espectro político, roubando espaço de manobra aos trabalhistas. O Cameron que, em 2014, conseguiu manter o país unido ao derrotar, em referendo, as derivas independentistas da Escócia. Mas é possível que todos esses Camerons, desde quinta-feira, não venham a ser mais do que uma nota de rodapé nos livros de História.
O mais certo é que nos últimos dias o primeiro-ministro britânico tenha passado longas horas a pensar que deveria ter deixado para um amanhã muito distante aquilo que não precisava de ter feito ontem: convocar um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE. Fê-lo com o objetivo de calar a ala mais eurocética dos Tories e, ao mesmo tempo, travar a ameaça dos populistas do UKIP.
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Provavelmente convencido de que ganharia a batalha, prometeu que se fosse reeleito nas legislativas de 2015 chamaria os britânicos às urnas para dizerem de sua justiça sobre a relação do país com a Europa. Assim foi. Mas quem dera a Cameron que assim não tivesse sido. "Convocou o referendo e perdeu. Será isso que vai definir o seu legado como primeiro-ministro", afirma Gavin Hewitt, editor principal da BBC. Longe da esfera dos partidos e da política, também a criadora de Harry Potter não tem dúvidas do anátema colado a Cameron: "Agora a Escócia vai lutar pela independência. O legado de Cameron será ter destruído duas uniões", lamentou a autora no Twitter quando ficou claro que a audácia cameroniana ia resultar em brexit.
Cameron tinha apenas 26 anos, em 1992, quando foi nomeado conselheiro especial do então ministro das Finanças, Norman Lamont. John Major ocupava o cargo de primeiro-ministro. A precocidade do jovem David continuou. Ainda não tinha entrado nos "entas" quando, em 2005, ascendeu à liderança dos Tories, derrotando na corrida o mais experiente David Davis e sucedendo a Michael Howard. "O que quero fazer com o Partido Conservador é torná-lo um partido mais compassivo. Quero mudar-lhe a face, com mais mulheres e representantes das minorias étnicas", sublinhava Cameron em entrevista ao The Observer, concedida poucos dias após conquistar o lugar cimeiro na hierarquia do partido. "Não sou alguém profundamente ideológico. Sou uma pessoa pragmática", referia ao mesmo jornal britânico.
Nesse tempo, Cameron não era um eurofóbico, mas encaixava facilmente na prateleira dos eurocéticos. Na campanha para a ascensão à liderança defendeu que os eurodeputados conservadores britânicos deviam divorciar-se da bancada do PPE, uma vez que este tinha uma "visão federalista da UE". Cumpriu a promessa e encetou negociações com o Partido Democrático e Cívico da República Checa para a fundação do atual grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus.
"Cameron está a tentar levar os Tories para o centro político em todos os aspetos, com apenas uma grande exceção: a Europa. Não consigo perceber a sua tática. Merkel e Sarkozy nunca irão aceitar o seu euroceticismo", afirmou na altura Wilfried Martens, então líder do PPE e antigo primeiro-ministro belga. O passado pode ser irónico. Depois de cinco anos a liderar a oposição no Reino Unido, Cameron chegou à chefia do governo em 2010. Tinha 43 anos e tornava-se assim o mais jovem primeiro-ministro em quase 200 anos, desde Robert Banks Jenkinson, eleito para o cargo em 1812.
A crise económica dificultou-lhe a tarefa durante o primeiro mandato. Ainda assim, nas legislativas do ano passado, com 36,9% dos votos, conseguiu o melhor resultado eleitoral para o Partido Conservador em mais de 20 anos. É preciso recuar até 1992 e aos 41,9% de John Major para encontrar uma votação mais forte nos Tories. O que Cameron não sabia quando festejou a reeleição é que a promessa que fizera sobre a UE iria, pouco mais de um ano depois, custar-lhe o cargo, arruinar-lhe o legado e talvez colar-lhe o rótulo do homem que destruiu duas velhas uniões.