Brasil vive há duas semanas em clima de "Bolsonaro paz e amor"

Após a prisão do explosivo Fabrício Queiroz, o presidente troca tradicional clima de hostilidade por bandeira branca na guerra com os outros poderes, dos quais a sua sobrevivência política depende, e demais rivais. Tática faz observadores recordarem uma fase de Lula da Silva.
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No dia 20 de agosto de 2002, José Serra, candidato à presidência do Brasil então em terceiro lugar nas sondagens para as eleições de dali a dois meses, passou no seu tempo de antena um vídeo de Ciro Gomes, o segundo classificado de acordo com as pesquisas, a chamar um eleitor de "burro". "Isso é comportamento de marginal", reagiu Ciro energicamente. Desafiado a comentar o inclemente duelo dos seus maiores rivais, o favorito à presidência Lula da Silva respondeu "Lulinha não quer briga, Lulinha quer paz e amor".

O "Lulinha paz e amor" ganhou não só as manchetes do Brasil, como as do mundo, nas suas versões "Lula peace and love" ou "Lula paix et amour", e ajudou o até então sindicalista com fama de agressivo e de radical a tornar-se palatável a mais franjas do eleitorado. Já eleito, Lula usaria a mesma atitude hippie quando, três anos depois, buscou alianças e consensos para amenizar o Mensalão, escândalo de corrupção no âmago do seu governo.

Dilma Rousseff, cujas descomposturas nos adversários e até nos colaboradores se tornaram lendárias, também usaria, após a crise das manifestações de 2013, o "Dilminha paz e amor". Mas Dilma era sucessora e afilhada política de Lula.

O que não se esperava é que Jair Bolsonaro, cujo tom de permanente hostilidade foi a marca do seu percurso parlamentar de três décadas e é o que mantém hoje motivados os seus apoiantes físicos e digitais, optasse por uma versão "Bolsonaro paz e amor".

Foi a prisão, em plena casa de um advogado de Bolsonaro, do explosivo Fabrício Queiroz, amigo do presidente há 30 anos e no epicentro de um escândalo de corrupção com desvio de salários de assessores em torno do senador Flávio Bolsonaro, seu filho mais velho, que inverteu a trajetória e proporcionou o milagre.

"Bolsonaro age para blindar os filhos e também porque foi aconselhado por aliados a baixar a temperatura diante dos recentes embates. O entorno do presidente sabe do seu isolamento, hoje pendurado na estabilidade da aprovação por 32% da população. Mas os sinais de enfraquecimento são evidentes, como diz essa pesquisa: o apoio cai para 15% entre os que avaliam que ele sabia do esconderijo de Fabrício Queiroz", escreveu o articulista Leandro Colon, no jornal Folha de S. Paulo.

Não é só o Caso Queiroz. As ações policiais para investigação do financiamento de atos contra a democracia e a disseminação de fake news, que podem atingir o seu segundo filho, Carlos Bolsonaro, supostamente o líder do "gabinete do ódio", de onde partem os ataques à reputação dos inimigos e dos dissidentes do governo, também recomendam cautela presidencial.

A eventualidade de um impeachment, cada vez mais na boca da oposição (e dos manifestantes nas ruas), idem.

Os oito processos a decorrer no Tribunal Superior Eleitoral sobre irregularidades das candidaturas de Bolsonaro e do seu vice-presidente Hamilton Mourão nas eleições de 2018, completam os medos do presidente. E justificam o inédito "paz e amor".

"Harmonia e cooperação"

Ainda no início de junho, sublinhe-se, Bolsonaro participava de manifestações onde se defendia o fecho do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Apoiantes armados de Bolsonaro, liderados pela ativista Sara Winter, ameaçavam por esses dias deputados e juízes e lançavam fogos na direção da sede do STF.

O ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, íntimo do presidente, dos seus três filhos políticos e da ala mais radical do governo, dizia numa reunião ministerial que se pudesse mandava "todos esses vagabundos para a cadeia", referindo-se aos deputados, aos senadores e aos juízes. "Começando pelo STF", rematou, perante o silêncio cúmplice de Bolsonaro.

Dias antes, o presidente classificava a atuação de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados de "péssima" e insinuava que o objetivo do parlamentar era "usurpar o poder executivo".

É nesse contexto de guerrilha que se tornam significativas as declarações de Bolsonaro em cerimónia na semana passada com os presidentes das duas casas legislativas, Câmara dos Deputados e Senado, e da principal corte do país, o STF.

"Eu costumo sempre dizer quando estou com Dias Toffoli [presidente do STF], com Davi Alcolumbre [presidente do Senado] e com Rodrigo Maia [presidente da Câmara dos Deputados], que somos pessoas privilegiadas", afirmou Bolsonaro.

"O nosso entendimento pode sinalizar que teremos dias melhores para o nosso país. Somente dessa forma, com paz e tranquilidade, e sabendo da nossa responsabilidade, é que nós podemos colocar o Brasil naquele local que todo mundo sabe que o país chegará. E se Deus quiser o nosso governo dará um grande passo nesse sentido. Obrigado a todos pelo entendimento, pela cooperação e pela harmonia", rematou.

Bolsonaro enviou, na sequência, delegação de três ministros para conversa apaziguadora com Alexandre de Moraes, o juiz do STF que tem em mãos alguns dos processos mais delicados para o governo, e vem tentando aproximação a Luiz Fux, o magistrado que sucede a Dias Toffoli a partir de setembro como presidente da instituição.

Efeito sanfona

Nem só no plano da relação com os outros poderes Bolsonaro se tornou um pacifista. Criticado por ter dito que "não seria uma qualquer gripezinha" que iria parar a economia, referindo-se à covid-19, e de ter respondido "e daí?" e "eu não sou coveiro" quando confrontado com as mortes (hoje são mais de 60 mil) de compatriotas com a doença, Bolsonaro tentou apaziguar os ânimos numa das últimas aparições nas redes sociais ao prestar homenagem aos mortos - a célebre Ave Maria interpretada pelo sanfoneiro e membro do governo Gilson Machado Neto.

Outro sinal de "paz e amor" foi a nomeação do moderado Carlos Decotelli para a pasta da educação na vaga do radical Weintraub. Decotelli, por causa de falsidades no seu currículo académico, acabou por não assumir mas a sua indicação, sugerida pela mais sensata ala militar, e não pela mais beligerante ala programática, representada pelo guru Olavo de Carvalho e pelos filhos do presidente, sinalizava uma vontade inédita de diálogo com o setor.

Até a adoção de um cão, que como no caso do ministério da educação acabou por não se concretizar porque afinal o animal tinha dono, parece parte da estratégia de adocicar a imagem presidencial.

CENTRÃO E ASSISTENCIALISMO

Mas há mais sinais: da mesma forma que Lula, ao ver-se cercado no caso do Mensalão cedeu cargos a partidos que o pudessem apoiar em caso de agravamento da crise política, também Bolsonaro vem distribuindo benesses a essas mesmas forças.

Mesmo tendo prometido em campanha acabar com a política do "toma lá dá cá" e defendido o moralismo da Operação Lava-Jato, no exercício do poder o presidente acabou por romper com o rosto daquela operação, o seu ex-ministro da justiça Sergio Moro, e aliar-se, com muita paz e muito amor, aos políticos mais oportunistas de Brasília.

"Assim como Lula, fechou um acordo de conveniência com deputados sem nenhuma espinha dorsal ideológica, ligados ao grupo heterogéneo que se convencionou chamar de "centrão", e pôs-se a distribuir cargos e verbas em troca de proteção contra o impeachment", reforça o colunista do portal G1 Hélio Gurovitz.

Neste momento, o "centrão" já gere 73 mil milhões de reais [cerca de 12 mil milhões de euros] do orçamento por oferta de Bolsonaro.

Aquele colunista encontra outros pontos de contacto também entre os escândalos do Mensalão e do Caso Queiroz. A partir do esquema de 2005 de pagamento a deputados em troca de votos no Congresso, Lula perdeu apoios na classe média mas compensou-os nas classes mais pobres com programas elogiados mundo afora, como o Bolsa Família, que tirou cerca de 40 milhões da pobreza.

"Assim como Lula, Bolsonaro perdeu apoio na classe média, que se habituou a bater panelas e gritar contra o governo nas janelas. Assim como Lula, Bolsonaro cresceu nas classes mais populares, como resultado direto do auxílio emergencial de 600 reais [cerca de 100 euros] que, em diversos casos, aumentou os rendimentos daqueles atingidos pela crise da pandemia".

Esse auxílio emergencial dado pelo presidente Bolsonaro contrasta com as opiniões do deputado Bolsonaro ao longo de 30 anos para quem a fome era "uma grande mentira" e o governo deveria era "facilitar a vida de quem quer produzir".

Outra faceta da versão hippie de Bolsonaro, finalmente, revela-se todas as manhãs. Antes da prisão de Queiroz, era assíduo em conversas simultâneas com apoiantes e jornalistas à saída do Palácio do Alvorada, que não raras vezes terminavam com insultos à imprensa na forma de "cala a boca", "acabou, porra" ou "você tem uma terrível cara de veado [homossexual]".

Desde a prisão do seu explosivo amigo nunca mais enfrentou claque e repórteres no local.

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