"Boris tem de apanhar os cacos de três anos de liderança abominável de Theresa May"
Há 1010 biografias de Winston Spencer-Churchill se contarmos com esta. Mas Andrew Spencer teve acesso a fontes que nenhum outro historiador consultara antes, como os diários do rei Jorge VI, disponibilizados por Isabel II. O resultado é um cartapácio de mais de mil páginas que dá a conhecer ao pormenor todas as dimensões de um homem com tantos falhanços e contradições como vitórias e cujo legado é alvo quer de críticas quer de reverência. "Em cada uma das mil páginas há um elemento que não existe nas outras biografias", garante o autor de 56 anos.
Churchill foi um defensor dos Estados Unidos da Europa, mas com o Reino Unido de fora. De certa forma está de acordo com o seu biografado porque votou no referendo pela saída da União Europeia. Porquê?
Estou contente com o acordo anunciado. Queremos fazer as nossas próprias leis. Anularam 66 leis britânicas desde 1996. Não quero fazer parte de um projeto federalista. É ótimo para Portugal, Espanha e Itália, que têm estado bem no euro. Nós não queremos. Historicamente temos um desenvolvimento separado. Temos ligações com os EUA e com os países da Commonwealth, ao contrário de muitos países europeus. E tentar ignorar um voto democrático e subvertê-lo, como o Parlamento fez nos últimos três anos, é profundamente não democrático.
Os europeístas alegam que o referendo não era vinculativo.
Todos os partidos disseram que iriam respeitar o voto. Assim que perderam disseram que não era vinculativo. E mesmo que não seja, isso não significa que moralmente não devam fazer o que a maioria diz. É a base da democracia, se não vamos respeitar a maioria caímos no caos da anarquia.
Os referendos podem ser armas perigosas. A Escócia e a Irlanda podem querer fazê-los e separarem-se do Reino Unido.
A Escócia já o fez. Quando se perde há que respeitar a vontade do povo, não se pode continuar a fazê-los até obter por fim o resultado pretendido. Quanto à Irlanda, não me importava que este acordo fosse referendado. Creio que iria passar.
Há notícias que dão conta de ligações entre os russos e alguns ativistas do Brexit. Não teme que os russos influenciem o sistema político britânico?
Li essas notícias e acho que são bastante dececionantes. Não creio que haja provas que tenham interferido no referendo do Brexit ou até na eleição presidencial norte-americana de 2016. O desejo de o fazer não é o mesmo do que a capacidade de fazê-lo. E a capacidade de o fazer não é o mesmo do que tê-lo feito. Há grandes diferenças. Obviamente é algo a que devemos estar atentos. Será interessante se os russos tentarem influenciar as eleições americanas de 2020, mas não sei de que forma. Não creio que possam continuar a pensar que o presidente Trump vá ser um peão deles.
Churchill tinha princípios éticos sólidos. Vê hoje nos conservadores quem os tenha?
Tinha, mas por exemplo nem tanto no que respeita à moral sexual. A esse propósito há uma boa frase de David Lloyd George, que foi primeiro-ministro durante a I Guerra Mundial. Quando foi à conferência de paz em Versalhes perguntaram-lhe se iria levar a mulher, ao que respondeu: "Você leva sandes para um banquete?" Penso que a pergunta é dirigida a Boris Johnson e acho que foi bom que ele tenha escrito um livro sobre Churchill [O Fator Churchill - Como Um Homem Fez História]. De certeza que ele aprendeu a ousar com o seu líder político. Penso que em primeiro lugar Churchill não nos meteria no Brexit, de uma ou de outra forma, mas não acho que Boris seja uma figura imoral. Exceto na esfera sexual.
O que faria Churchill de diferente em relação ao Brexit?
Uma vez ouvido o povo britânico ele teria feito o necessário para cumprir esse objetivo. Ele teria sido um líder muito mais marcante do que Theresa May foi nos últimos três anos. Foram três anos perdidos, que dividiram o país e que nos tornaram em párias virtuais na Europa, além dos danos causados no Partido Conservador. Um líder marcante não teria permitido isto e isso é uma das coisas que Boris tem de fazer, tem de apanhar os cacos de três anos de liderança abominável de Theresa May.
Responsabiliza Theresa May em exclusivo?
Não, claro, é culpa de todos os que declararam que iriam obedecer à vontade popular e ao invés passaram três anos a subvertê-la.
Churchill teve uma grande coragem física e moral. Consegue dizer no que foi mais corajoso?
A sua coragem moral começou em não mudar de mensagem nos anos 30, quando era a única figura a falar contra Hitler e os nazis. A sua coragem física é impressionante. Lutou em cinco campanhas em quatro continentes. Dizia que não havia nada mais excitante do que ser alvejado sem consequências, o que lhe aconteceu e muito. Fez parte da última grande batalha de cavalaria do Império Britânico, em Omdurmã [Sudão], onde foram mortos 25% dos britânicos. No ano seguinte foi emboscado na guerra dos Boers, na África do Sul. Depois de um terço do regimento ter sido morto ou ferido ele escapou-se do campo de prisioneiros, tendo percorrido mais de 300 quilómetros em território inimigo. Durante a II Guerra, ia ao terraço do Ministério do Ar ver os bombardeamentos alemães. São exemplos de heroísmo, mas a sua coragem moral era igual à sua coragem física.
Churchill é um símbolo de resiliência. Nunca deu sinais de desistir?
Nunca. Só numa ocasião disse ao seu conselheiro militar mais próximo, Pug Ismay, que temia perder a guerra. Em junho de 1940, Ismay disse-lhe que dentro de três meses tudo iria estar melhor, ao que respondeu: "Daqui a três meses estaremos mortos." De resto, parte da sua extraordinária liderança era mostrar confiança na vitória, o que ele não podia ter sentido durante todo o tempo. A Rússia estava do lado da Alemanha, a França estava KO, os EUA não queriam envolver-se na guerra, as únicas regiões da Europa que não tinham sido invadidas pelos nazis eram neutrais. Era impossível ganhar a guerra, mas ele não esmorecia.
Em termos políticos era conservador ou liberal?
Era um tory democrata, o que era a etiqueta política do pai. Foi deputado durante 20 anos como liberal, mas as medidas que defendia eram as que seriam aprovadas pelos conservadores democratas, de reforma social, etc. Era o que Margaret Thatcher costumava chamar de tory wet, ficava no extremo liberal do Partido Conservador. Quando os conservadores deixaram de apoiar o comércio livre passou-se para os liberais. Quando voltaram atrás, 20 anos depois, Churchill voltou para os conservadores. Tinha uma frase para o tema: "Qualquer um pode trair, mas é preciso uma certa habilidade para voltar a trair."
Tinha sempre uma frase jocosa debaixo da língua.
Sem dúvida. No livro há mais de 200. Ele não conseguia parar de fazer gracejos. Eu dei palestras só sobre o seu humor e a sua utilização na política. Claro que o usava para ridicularizar os adversários e com grande frequência para mudar de assunto. Mas tinha também uma memória fonográfica, de citações, dee trechos de Shakespeare, de melodias humorísticas, e de forma instantânea era capaz de a usar com grande ironia.
O sentido de destino de Churchill é algo que destaca, a começar pelo título. Terá alguma relação com a devoção que sentia pelo pai?
Tinha uma relação muito complicada com o pai. O seu pai era um homem brilhante, mas uma distante e distinta figura aristocrática que lhe escreveu cartas que pai algum deveria escrever, terríveis cartas de desprezo e desdém. Winston Churchill não permitiu que isso o afetasse psicologicamente. Quando o pai morreu com 45 anos ele tinha 20, foi ter com os amigos do pai e escreveu a sua biografia. Mais tarde chamou a um dos filhos Randolph, adotou as opiniões políticas e o estilo político do pai. Penso que se pode ver o resto da vida de Churchill como uma tentativa para impressionar a sombra do seu pai morto. Em 1947 acreditou ter tido um encontro com o fantasma do pai e manteve uma conversa de horas. E nessa conversa nunca disse ao pai o papel fundamental que teve na II Guerra Mundial.
Como é que essa situação aconteceu?
Estava a pintar um retrato do pai e a fumar um charuto e o fantasma do pai apareceu do fumo. Conversaram e o fantasma do pai perguntou-lhe pela sua vida. E ele, que foi além do pai na carreira, não disse em momento algum que foi primeiro-ministro. É algo de muito estranho em termos psicológicos, mas que sublinha a obsessão com o pai. É evidente que a mãe também foi importante. Foi uma socialite da alta sociedade, uma mulher de grande beleza que teve casos com o príncipe de Gales e com o embaixador austríaco e que nunca tinha tempo para ele. Nos primeiros seis meses de 1884, quando Churchill tinha nove anos, ela viu-o num total de seis horas e meia. A primeira vez em que ela mostrou interesse no filho foi quando ele passou a ser signatário do seu fundo fiduciário, quando ele podia ser útil. Na sua autobiografia diz da mãe que "brilhava como a estrela polar, cintilante mas longínqua". É uma coisa terrível de se dizer de uma mãe, não é?
Os críticos de Churchill dizem que era um racista e um belicista. Era imperialista e defendia o darwinismo social. Mas ao mesmo tempo foi um dos últimos heróis do nosso tempo. Por que é Winston Churchill importante nos dias de hoje?
Temos de vê-lo no seu contexto histórico. Nasceu na mesma altura em que Charles Darwin ainda era vivo. O darwinismo social pressupunha eugenismo. Ele não era eugenista, apesar de pertencer à Eugenics Society, não concordava com as suas crenças na esterilização dos doentes mentais. Nessa altura as pessoas acreditavam em hierarquias raciais, com os brancos no topo, e no que respeita ao império britânico com os britânicos no topo dos brancos. Sabemos que hoje é obsceno e absurdo, mas era considerado um facto científico. Ele acreditava no Império Britânico, mas era uma forma de colonialismo completamente diferente de outros impérios coloniais ocidentais, como por exemplo o dos belgas. O seu conceito de império britânico era o de elevar os povos nativos quanto tanto possível e de ajudar ao seu desenvolvimento. Churchill é importante hoje por vários motivos. Em primeiro lugar pela sua liderança, pela forma como se manteve fiel à sua mensagem, ignorando as sondagens, sempre a avisar o povo de Hitler, dos nazis e da ascensão do fascismo. Foi ridicularizado, foi criticado em reuniões públicas e manteve a mensagem, que era a de unir o Ocidente contra os nazis. Teve muita coragem, coragem política que não se vê nos dias de hoje de ciclos noticiosos de 24 horas sete dias por semana e constantes inquéritos de opinião e grupos de foco. Nunca teve quem lhe escrevesse os discursos, foi ele quem escreveu todos. Sabia-se que o que comunicava vinha diretamente dele. Em segundo, claro, é a sua mensagem antifascista que, infelizmente, precisa de ser reiterada, em especial na Europa com a ascensão dos partidos populistas de extrema-direita. Depois, a sua capacidade de visão, para ver além do imediato para outras ameaças como Estaline e o imperialismo soviético na Europa de leste. Tinha uma grande capacidade de eloquência, não só com a sua escrita reconhecida com um Nobel mas a sua grande eloquência nos discursos. É uma pena que hoje não se encontre muito essa qualidade nos nossos líderes. E outra razão pela qual vale a pena conhecê-lo e ler sobre é que é um político que aprendeu com os seus erros. Fez muitos e muitos erros. Intermináveis e enormes. Mas aprendeu com cada um eles e com isso tornou-se num melhor governante.
Churchill não só alertou contra o perigo do nazismo, mas foi também um crítico feroz do fundamentalismo religioso, em especial do islâmico.
Foi um feroz crítico no seu segundo livro, The river war. Mas na realidade quando se torna ministro e tem a seu cargo 300 milhões de muçulmanos no Império Britânico, quando o livro é reeditado essas referências muito agressivas são cortadas. Hoje seriam censuradas...
Devido ao politicamente correto?
Não, devido ao discurso de ódio. Há passagens extremamente duras, que estão no meu livro, mas não seriam aceites hoje por causa do politicamente correto.
É essa a nossa maior ameaça, para a qual Churchill já havia alertado há mais de cem anos?
É uma delas, sem dúvida. Se nos pusermos a pensar como vai ser o mundo daqui a cem anos não creio que vamos estar subjugados ao fundamentalismo islâmico. Poderemos vir a ser tomados economicamente pela China. Essa possibilidade pode vir a ser um problema para quem viva nesse lado do mundo se se tornar numa superpotência militar. Curiosamente, seja como for, sempre que alguém tenta prever o mundo daqui a cem anos engana-se.
Como referiu, em 1953 Churchill foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Leu todos os seus livros e a maioria dos seus artigos e discursos. Foi um prémio merecido? Se sim, porque não é mais popular enquanto escritor?
Sim, penso que foi merecido. O prémio não foi pelo conjunto da obra, 37 livros, foi por seis, incluindo a sua autobiografia, My early life, e outro sobre os seus amigos, Great contemporaries. São ambos obras de ótima literatura e de história. Na verdade, melhores como literatura porque ele tinha tendência a escrever sobre si na forma que os políticos fazem. Em Inglaterra ainda vende uma quantidade grande de livros. Todos os anos a família recebe uma quantia enorme em direitos de autor. E nos Estados Unidos também penso que têm bastante sucesso.
A contar com Caminhando com o destino, há 1010 biografias de Churchill. O que o levou a fazê-la e porque o leitor irá escolher a sua?
Há muitas boas biografias, de facto, e tive o grande prazer de lê-las. Mas eu pude usar novas fontes que ficaram disponíveis. A rainha deu-me autorização para ser o primeiro biógrafo de Churchill a consultar os diários do pai. Churchill era recebido em audiência todas as terças-feiras e transmitia-lhe segredos relacionados com a guerra, que países seriam invadidos, que ministros iriam ser demitidos e que ministros iriam ser convidados. Afortunadamente para mim, o rei escreveu tudo e sabíamos o que passava pela cabeça do rei a cada terça-feira. Ficaram amigos. Foi o único dos quatro primeiros-ministros que o tratava pelo nome cristão. Também tive acesso a 41 conjuntos de documentos que tinham sido depositados na Universidade Churchill em Cambridge desde a última grande biografia, incluindo os diários de guerra da filha, Mary Soames. Pude usar os diários do embaixador russo em Londres de 1932 a 1943, que falou muito com Churchill por causa do pacto germano-soviético. E a família deu-me acesso exclusivo às cartas de amor de Pamela Harriman, a sua nora. Há oito anos eu descobri os relatos integrais do gabinete de guerra, por isso agora sabemos o que é que cada um disse nas reuniões. São coisas que justificam esta biografia. Em cada uma das mil páginas há um elemento que não existe nas outras.
Enquanto escreveu este livro seguiu um ritual que envolvia beber Red Bull e escrever a partir das cinco da manhã.
[Gargalhada] Cada escritor tem o seu método. O meu é um pouco estranho, concedo, mas funciona. Acordo às 05.00 e de chinelos e pijama escrevo durante quatro horas sem ser incomodado. Depois lavo-me, visto-me e volto ao trabalho. Depois de almoço ou faço uma sesta de uma hora e acordo revigorado, como Churchill fazia, ou se estou a meio de um capítulo e estou concentrado e quero continuar bebo uma lata dessa bebida com cafeína que me mantém em agitação durante o resto da tarde. A minha mulher contou-me que durante o capítulo da Batalha dos Dardanelos eu não me mudei durante três dias. Terá sido pouco higiénico e bastante malcheiroso. Consigo escrever 5000 palavras por dia neste regime. O livro foi escrito em cem dias.
Tem a ajuda de um assistente?
Não. Nunca. Se tivesse um conseguiria escrever livros de forma mais rápida. Mas se o assistente de pesquisa for preguiçoso então poderá recorrer ao plágio e logo eu serei acusado de plágio. É o pior que pode acontecer a um historiador.
E as suas opiniões controversas? Não teme que o apoio à invasão do Iraque por George W. Bush, por exemplo, possa influenciar a opinião dos leitores sobre a razoabilidade da sua abordagem à história?
Penso que as minhas opiniões são muito controversas, mas razoáveis e objetivas. Há uma enorme diferença entre história e jornalismo, uma enorme diferença entre escrever sobre o passado e escrever sobre o que acontece em 2003. E também acho importante manter as opiniões políticas fora da história.
E, já agora, mantém a mesma opinião sobre a invasão do Iraque?
Sim, foi a coisa certa a fazer. Saddam Hussein tinha de ser deposto e creio que isso foi feito com o mínimo de força dos norte-americanos e da coligação. Penso que foi muito triste que o presidente Obama tenha retirado, o que deu espaço aos iranianos para dominarem aquele pobre país.
Escreveu livros sobre homens controversos que tiveram grande poder e influência. Para quando uma biografia de Vladimir Putin?
[Gargalhada] Há muitos bons livros sobre Vladimir Putin, não sinto grande necessidade de escrever um. Talvez naquela lista de perigos à paz mundial em que falei da China e do fundamentalismo islâmico há a acrescentar a Rússia, que não obedece a nenhum tipo de regras.
Qual a sua próxima biografia?
Agora estou a trabalhar numa biografia de Jorge III, o rei louco que perdeu as colónias americanas. Vou tentar persuadir os leitores, em especial os americanos, que ele não era o tirano da declaração da independência, ou o vilão do musical Hamilton, mas que era um monarca iluminado, um príncipe da Renascença e que só ficou louco seis anos depois de os EUA terem ficado independentes. Além disso, tenho um pequeno livro a sair no próximo mês. Chama-se Leadership in war e resulta de uma série de conferências que proferi na New York Historical Society.