Bolsonaro ameaça deixar Mercosul. Depois do Brexit, vem aí o Braxit?

Governo Bolsonaro já avalia impacto económico, diplomático a jurídico de uma saída do Mercosul, na esteira da eleição do "inimigo" Alberto Fernández como presidente da Argentina. Colunistas falam em insensatez e em fim do bloco sul-americano.
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"Nós sabemos que a volta da turma do Foro de São Paulo [organização de partidos de esquerda latino-americanos] e da Cristina Kirchner para o governo argentino pode, sim, colocar em risco todo o Mercosul. E colocando em risco todo o Mercosul, possivelmente, você tem de ter uma alternativa no bolso", afirmou Jair Bolsonaro, na semana passada.

Vai daí, as equipas dos ministérios das relações exteriores, da economia e dos departamentos jurídicos do seu governo começaram logo a medir os impactos de uma saída do Brasil do bloco regional de livre comércio e circulação fundado em 1991 pelo gigante sul-americano e pelos vizinhos Argentina, Uruguai, Paraguai e a - por agora - suspensa Venezuela que em junho concluiu acordo histórico com a União Europeia após 20 anos de negociações.

Está em estudo, portanto, o "Braxit", neologismo inspirado, claro, no "Brexit" britânico da União Europeia e que neste caso designaria a saída (exit) do Brasil do Mercosul.

A eleição, consumada no último fim de semana, do peronista Alberto Fernández, que tem a ex-presidente Cristina Kirchner como vice-presidente, e a consequente derrota de Maurício Macri, o preferido do presidente brasileiro, levou a uma enxurrada de críticas de Bolsonaro que não mereceu apenas reação de Fernández - o próprio Macri se demarcou delas.

Jorge Faurie, chefe da diplomacia do governo cessante, disse ter enviado carta ao embaixador brasileiro em Buenos Aires a condenar as críticas da família Bolsonaro à vitória de Fernández e até à família do novo líder eleito.

Bolsonaro dissera que a Argentina havia "escolhido mal", que o Brasil "está preparado para o pior" e que não iria felicitar o eleito. Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores, acrescentou que "as forças do mal estão celebrando". E Eduardo Bolsonaro, deputado e filho do presidente, publicou nas redes sociais uma fotografia sua rodeado de armas e uma do filho de Fernández, que faz performances como drag queen, para supostamente diminuir o argentino.

Fernández, entretanto, já considerara "um elogio" ser criticado por Bolsonaro, a quem classificou de "racista, misógino e violento".

E como no Uruguai, outro estado membro, o candidato presidencial Daniel Martínez, da esquerdista Frente Ampla, chega à segunda volta, a realizar-se dia 24 de novembro, em vantagem sobre Luis Lacalle Pou, de direita, o presidente brasileiro também resolveu opinar. Em entrevista a O Estado de S. Paulo afirmou preferir a vitória de Lacalle.

O que resultou em críticas do próprio. "Não me parece uma coisa boa que diferentes políticos e, nesse caso um governante, opinem sobre o que pode acontecer noutro país", disse Lacalle.

O embaixador brasileiro em Montevideu foi chamado ao governo uruguaio para se explicar sobre as declarações de Bolsonaro.

Como escreve o colunista do portal UOL Jamil Chade, sediado em Genebra, o governo não esconde a vontade de se dissociar do restante do Mercosul para ir adiante com seu plano comercial. "Um rompimento seria uma comprovação de que a prioridade passará a ser a relação privilegiada com os EUA. Em março, o governo já anunciou uma quota para o trigo americano, num gesto que deixou nuestros vecinos incomodados".

O articulista sublinha, entretanto, que "diplomatas lembram que sempre que um governo brasileiro mergulhou numa aliança incondicional com a Casa Branca, não levou muito tempo para se frustrar. O regime militar, alvo da admiração do presidente, logo descobriu que o alinhamento automático que ensaiou nos primeiros anos do Golpe de 1964 pouca vantagem trouxe ao país".

Mas, além da discussão ideológica de Bolsonaro com Fernández e o eventual presidente uruguaio Martínez, são as consequências económicas de um eventual "Braxit" que mais chamam a atenção. Só entre janeiro e agosto deste ano, os países do bloco compraram 9,2 mil milhões de dólares em produtos do Brasil, que importou 11,8 mil milhões dos seus parceiros.

As indústrias do calçado, têxtil e de eletrodomésticos, como fogões, frigoríficos e outros itens, são, segundo estudo do jornal Folha de S. Paulo , os principais impulsionadores dessas vendas.

Prenúncio de dificuldades

Do lado de lá da fronteira, o "Braxit" também seria prenúncio de dificuldades, sobretudo nos setores agrícola e de pecuária, como nota artigo do especializado MoneyTimes: "O Brasil não exporta praticamente nada de alimentos in natura ou industrializados para a Argentina, quando muito um pouco de café, mas na mão inversa a dependência argentina do mercado brasileiro é grande e Fernández terá que buscar da diplomacia para segurar o impulso pouco amistoso já manifestado pelo presidente Bolsonaro com a vitória do peronismo e a derrota de Mauricio Macri".

Por outro lado, para os brasileiros entrarem ou saírem dos países vizinhos passaria a ser necessário passaporte com visto. Famílias que vivem nesses lugares teriam a permanência cancelada. Diplomas perderiam a validade. Seria cancelado o direito de conseguir trabalho formal e reforma. Trabalhadores estrangeiros seriam tratados como imigrantes ilegais. E até as matrículas dos carros de veículos, que começam a ser trocadas por umas com os padrões do Mercosul, teriam de ser modificadas novamente.

Solução alternativa ao radical "Braxit", mas ainda assim não menos drástica, seria a suspensão da Argentina no Mercosul com base na resistência do país, agora liderado por um presidente de cariz mais protecionista, a adotar uma política de redução da tarifa externa comum, que incide sobre os produtos exportados pelo bloco para outros países.

A suspensão de um membro do bloco, porém, só é feita em casos extremos e por razões políticas: por causa de uma cláusula democrática, a Venezuela foi - e ainda está - suspensa e o Paraguai também sofreu igual castigo a propósito da deposição do então presidente Fernando Lugo, após rápido processo de impeachment.

O regresso, pela via eleitoral, do peronismo ao poder, dificilmente poderia ser enquadrado na tal cláusula democrática.

Dessa forma, o economista Gabriel Brasil lembrou ao jornal Gazeta do Povo que a Argentina, "em crise ou não", é o terceiro maior parceiro comercial brasileiro: "E é um parceiro qualificado, que não compra apenas soja, e sim carros, produtos industrializados. É com quem o Brasil tem relações mais sofisticadas. Tudo isso indica que, a despeito das diferenças ideológicas, devemos esperar negociações".

Sob o título "a marcha dos insensatos", Elio Gaspari, no jornal O Globo, lembra que "já houve época em que o Brasil e a Argentina crisparam suas relações por motivos palpáveis como aconteceu em negociações comerciais e em torno da construção da hidroelétrica de Itaipu. Mesmo nessas ocasiões, os governos comportavam-se com elegância". Agora, defende o jornalista, os dois países "estão com taxas de desemprego de dois dígitos. Um torce para que o crescimento de 2019 chegue a 1% e o outro sofre uma contração da economia. Nesse cenário de ruína, Jair Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina resolveram se estranhar. Por quê? Por nada".

Mathias Alencastro, colunista do Folha de S. Paulo , também é crítico do suposto "braxit" ou "mercoexit", como lhe chama. "O enredo parece perfeito: inspirado pelo Reino Unido, o Brasil se libertaria das amarras da burocracia latino-americana (...) O Mercosul pode ter todos os defeitos do mundo, mas é a única entidade continental capaz de oferecer uma alternativa a outros projetos de hegemonia. Ao contrário da União Europeia, que vai superar a saída do Reino Unido, a organização não aguentaria seis meses sem o Brasil".

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