"As pessoas acham que as lutadoras têm músculos e monocelha. Eu quebro os preconceitos"

Campeã olímpica de luta livre, a canadiana Erica Wiebe esteve em Lisboa para visitar duas escolas e falar não só sobre a sua experiência como atleta profissional mas também como ativista feminista. Em entrevista ao DN, contou como se interessou por um desporto que ainda é visto como muito masculino e como este lhe deu a oportunidade de ultrapassar os preconceitos e a discriminação
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Na última gala da Bola de Ouro, Ada Herberger foi a primeira mulher a ganhar aquele troféu mas acabou por ser alvo de sexismo em palco. Isso é um sinal de que ainda há um longo caminho para chegar à igualdade de género no desporto?

O desporto funciona como um espelho da sociedade. Quando pensamos nos Jogos Olímpicos, temos o mundo todo parado a olhar. Unem o mundo e são uma oportunidade para nos unirmos e percebermos que quando trabalhamos juntos para um objetivo comum estamos no bom caminho e as coisas correm bem. Dito isto, o desporto reflete os nossos valores enquanto seres humanos : união, paz, a busca da excelência, a busca por nos ultrapassarmos. Como humanos procuramos sempre inovar, ir além dos nossos limites. Quando pensamos no desporto no contexto da igualdade de género, temos tido muitas mudanças e desafios que superámos ao longo dos anos. Mas ainda há um sentimento na comunidade desportiva internacional, em todos os países, de que apesar de haver cada vez mais oportunidades para as mulheres, também ainda há muitas barreiras sociais e culturais que têm de ser ultrapassadas. Parece que todos os meses algo nos lembra disso. O que aconteceu na Bola de Ouro é o exemplo perfeito. "Vamos dar isto a uma mulher". Mas terá sido por os organizadores acharem que ela era mesmo a melhor jogadora do mundo ou apenas porque acharam que deviam entregar o troféu a uma mulher? Não sei a resposta. Mas havia alguém na sala que achava que as mulheres atletas não são atletas por inteiro e que devem ser objetificadas e sexualizadas. É muito problemático que continuemos a ter esta conversa, que continuemos a pôr as mulheres atletas nesta posição. E enquanto praticante de luta livre [wrestling em inglês] faço um desporto tradicionalmente muito masculino. Um desporto que ainda é controlado pelos homens a vários níveis. A maioria do treinadores são homens, a maioria dos árbitros, a maioria dos atletas são homens. Como mulheres temos de lutar continuamente não só pela inclusão mas para termos uma voz no processo de decisão. E quando isso acontecer, então teremos políticas e atividades iguais para homens e mulheres.

Quando pensamos em desigualdades de género, pensamos logo em salário, mas há muitas outras. Como esta da Bola de Ouro, como as críticas aos corpos das atletas. O que é pior, do seu ponto de vista?

Obviamente, quando olhamos para a diferença nos salários de homens e mulheres, isso é um aspeto muito importante. Mas o cerne da questão são as desigualdades na estrutura de poder. No desporto ou em qualquer outra área. Quando temos desigualdades a este nível, temos desigualdades na forma como as decisões são tomadas, as políticas são estruturadas de forma enviesada. É aí que reside a verdadeira desigualdade. E não é apenas uma questão de criara igualdade e tudo fica resolvido. É preciso levar as mulheres para o nível em que estamos hoje. É preciso criar oportunidades para promover as mulheres, as minorias, outras pessoas que são excluídas do desporto. A importância de os desportistas terem este debate é que, mais uma vez, o desporto é o espelho da sociedade. Esperamos que o desporto nos mostre aquilo de que somos capazes. Por isso o desporto tem este poder incrível de manter ou desmantelar estas estruturas de poder desiguais. Isso é muito excitante.

Descreveu a luta livre como um mundo de homens, como se interessou por este desporto?

Sempre fui uma criança muito atlética. Joguei muito futebol. Adorava. Era a minha paixão. Portugal era a minha equipa favorita quando era miúda.

Quem era o seu jogador favorito?

Não era o Cristiano Ronaldo! Gostava da forma como a equipa jogava. O meu futebolista preferido era o Steven Gerrard, mas adorava o estilo de jogo de Portugal. Mas pronto. Comecei a lutar no 9º ano, por volta dos 12 anos. Foi um desporto que apareceu na minha escola e eu pensei: "O quê? A luta livre é um desporto estranho, nunca tive contacto com ele" Mas achei que devia ser divertido tentar. E os treinos eram mistos, treinávamos com os rapazes. Pois é! Que loucura! (ri-se) Mas apaixonei-me logo por este desporto. Adorava que fosse tão técnico e tático, que fosse físico. Era um desafio de tantas formas diferentes. Costumo dizer que a luta livre é um jogo de xadrez suado. Porque é muito estratégico, estamos sempre a antecipar as jogadas do adversário, temos de pensar com três jogadas de distância para ganhar. Mas é muito difícil fisicamente.

Então não era uma coisa que costumasse ver em criança ou que a sua família seguisse?

Nunca tinha contactado com luta livre profissional, não. Até surgir a oportunidade de ter aulas na minha escola. A minha família não era nada atlética. Os meus pais inscreveram-me no desporto porque queriam que fizesse amigos, fosse ativa e saudável. Depois dos Jogos Olímpicos perguntei à minha mãe se alguma vez tinha pensado que eu fosse aos Jogos Olímpicos e que ganhasse? E ela disse "Não! Metemos-te no desporto para que fosses ativa e fizesses amigos". Mas apoiaram-me sempre

Foi aos Jogos Olímpicos, ganhou a medalha de ouro. Mas antes isso, houve momentos difíceis na sua carreia?

Houve muitos desafios. Tive de ir viver para outra cidade onde ficava o centro de treinos. E mesmo nesse centro, queria estar lá porque era um desafio, tinha excelentes treinadores e excelentes colegas, mas a cultura lá era muito dura. Tive de provar que estava à altura do desafio. O Canadá é um dos únicos países do mundo em que homens e mulheres treinam juntos, o que o torna único no mundo da luta livre. Para nós mulheres isso permitiu-nos tornarmo-nos das melhores do mundo na luta livre porque estamos constantemente a ser desafiadas, estamos constantemente a lutar contra homens e mulheres. Mas isso também cria algumas tensões dentro das equipas: alguns homens não querem lutar contra as mulheres.

Sim, como é que os homens reagem a esses treinos conjuntos?

Em última análise não têm alternativa (ri-se). Mas tentam resistir. E é esse tipo de mentalidade que nos torna mais fortes. Faz parte da resiliência que faz com que as lutadoras canadianas sejam tão boas. Mas houve momentos difíceis. No primeiro verão que passei na minha nova cidade tive de ter dois empregos e treinar a tempo inteiro para conseguir ficar na universidade e pagar as quotas da equipa. Todas as escolhas que fiz foi porque adoro o que faço.

Visita muitas escolas, o que diz às meninas que vêm ter consigo a pedir conselhos, a dizer que gostavam de fazer luta livre?

Por vezes digo-lhe que é muito difícil, "tens a certeza?" [risos] Mas também lhes digo que muitas das coisas que queremos fazer na vida são difíceis mas valem muito a pena. Digo-lhes sempre que vão ficar muito surpreendidas até onde podem ir. Desafio sempre as pessoas a dar um passo para o desconhecido e acreditarem nelas. As pessoas tendem a subestimar a sua força.

Carreira, desporto, família. É difícil encontrar um equilíbrio?

É um grande desafio. Mas acho que as mulheres até estão mais preparadas para lidar com estes desafios e ultrapassar todas as barreiras. Afinal, no desporto passamos a vida a ultrapassar barreiras. Por isso a ideia que vamos conseguir mesmo que pareça impossível é algo que já se enraizou em nós. No meu caso, se não fizesse luta livre, provavelmente teria um emprego normal e uma família. Mas não posso ter uma família até depois dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Esse é o objetivo. Há aspetos estruturais que, enquanto mulher e atleta, temos de compreender. Dito isto, duas das minhas colegas da equipa canadiana têm filhos. Têm o apoio dos maridos, da equipa, o que lhes permite ser mães e atletas. Uma delas é enfermeira e outra é corretora. E na Suécia tenho uma amiga, medalha de bronze de luta livre, que teve um bebé e voltou a competir. E há uma lutadora do Azerbaijão minha amiga que tem dois filhos. Tenho estas amigas e estes exemplos maravilhosos que desafiam as normas. E há a minha treinadora. A campeã olímpica canadiana Carol Huynh é agora a treinadora do meu clube e tem dois filhos. Ganhou o Ouro em 2008 e bronze em 2012. Em 2014 teve o primeiro filho, mas estava grávida de sete meses e continuava a mostrar-nos técnicas de luta livre nos treinos. Ver um mulher forte e dinâmica mas grávida de sete meses e reclamar que estávamos a fazer as coisas erradas, para mim mas também para os homens da equipa mudou totalmente a ideia que tínhamos do que é normal. Isto é o que este desporto tem de poderoso. É por isso que vou às escolas e falo com os miúdos. E eu não tenho o aspeto que as pessoas esperam de uma lutadora, isso é poderoso. As pessoas acham que as lutadoras têm muitos músculos e monocelha [risos]. Sou uma privilegiada por ser loira! E isso vem quebrar os preconceitos. No Canadá os jogadores de hóquei em patins são os heróis, em Portugal serão os jogadores de futebol. Mas sendo uma lutadora e indo às escolhas explicar como sou uma profissional, explicar o que faço, é uma forma de deixar uma mensagem forte para as jovens raparigas - e para os rapazes também - de que as mulheres são fortes, poderosas e exigem respeito.

Também costuma visitar as tropas canadianas no estrangeiro para dar apoio e contar a sua história. Essa parte do seu trabalho é importante?

Tenho muita sorte por ter estas oportunidades de representar o Canadá. Em parte é egoísta da minha parte, tenho a possibilidade de conhecer o mundo. Mas também tenho a hipótese de conhecer estas canadianos espantosos que lutam pelo nosso país, por exemplo, na Ucrânia. É maravilhoso ver o que eles fazem e poder agradecer-lhes pessoalmente. Como atleta, como campeã olímpica tenho esta responsabilidade de usar a minha plataforma para partilhar as coisas maravilhosas que existem no Canadá, os valores que temos. O desporto deu-me tanto - grandes treinadores, grande apoio, a oportunidade de ir aos Jogos Olímpicos representar o meu país - sinto que tenho de retribuir.

Campeã olímpica. E agora, qual é o objetivo?

O objetivo é lutar em Tóquio nos Jogos Olímpicos de 2020 e fazer a minha melhor prestação. O objetivo é lutar ainda melhor do que no Rio de Janeiro.

Muito graças ao primeiro-ministro Justin Trudeau o Canadá é visto como um campeão da igualdade de direitos, sente orgulho nisso?

Viajo pelo mundo com a bandeira do Canadá ao peito. Represento o Canadá e deixa-me incrivelmente orgulhosa representar um país que tem os mesmos valores que eu. Cujos valores refletem o seu povo e os melhores aspetos da nossa sociedade. Orgulho-me de ser canadiana e representar a igualdade de género, a inclusão.

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