Ajuda humanitária sujeita a auditoria "para reduzir desconfiança"

Cruz Vermelha Portuguesa pediu auditoria externa permanente às contas relacionadas com o apoio a Moçambique. KPMG vai auditar operação MV Border, navio porta-contentores que este sábado sai do Porto de Maputo, ao meio-dia, 10.00 em Lisboa, com destino à Beira, transportando ajuda recolhida para as vítimas do ciclone Idai

À medida que os media vão ajudando a trazer à luz do dia a dimensão da tragédia em Moçambique, após a passagem do ciclone Idai, multiplica-se o número de cidadãos, entidades, organizações e governos a querer ajudar. Dentro e fora do país, surgem voluntários, são mobilizados médicos, equipas de proteção civil, militares, meios aéreos e navais. São feitos peditórios por alimentos, água potável, roupas, cobertores, detergentes, entre outros bens. São colocados à disposição dos cidadãos que queiram contribuir os NIB e IBAN de organizações não governamentais no terreno. Músicos portugueses e alguns moçambicanos, como Selma Uamusse, juntam-se para fazer concertos de solidariedade. Mas por uma questão de transparência e para garantir que a ajuda chega aos destinatários sem riscos de desvios de percurso, alguns dos intervenientes em todo este processo indicaram que vão fazer auditorias à ajuda humanitária que está a ser dada atualmente a Moçambique.

A Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) pediu uma auditoria externa permanente às contas relacionadas com a operação de apoio às vítimas do ciclone Idai, em Moçambique, anunciou na quinta-feira a organização."A Coordenação Nacional de Emergência da CVP decidiu solicitar auditoria externa permanente às contas relacionadas com a operação de apoio a Moçambique", adianta a organização num comunicado enviado à agência Lusa. Para a sua concretização, a Coordenação Nacional de Emergência da CVP apela às empresas acreditadas para este fim que apresentem as suas candidaturas através do e-mail presidente@cruzvermelha.org.pt, adianta a organização, num comunicado que foi enviado à agência Lusa.

Em declarações à mesma agência, Joana Pinheiro, do departamento de comunicação da CVP, adiantou que a auditoria foi pedida por "uma questão de transparência" e para "reduzir ao máximo qualquer tipo de desconfiança" na sequência do que acontecido nos últimos tempos. "Infelizmente nas últimas catástrofes levantaram-se ondas de desconfiança" em relação à gestão dos bens doados pelos portugueses, disse Joana Pinheiro. "O que estamos a fazer é abrir este concurso a entidades para que possam fazer a auditoria de tudo aquilo que sejam contas associadas ao apoio a Moçambique", disse, numa altura em que a organização enviou para a Beira a responsável pelas Relações Internacionais da CVP, Diana Araújo, para integrar a equipa de especialistas do Serviço de Restabelecimento de Laços Familiares.

Operação MV Border acompanhada por auditores da KPMG

Também o Porto de Moçambique fez uma parceria com a KPMG para auditar todo o processo de doação, depois do enorme apoio da sociedade moçambicana para enviar ajuda às vítimas do ciclone Idai e da cedência do MV Border. O navio porta-contentores de 14 357 toneladas, atualmente ao serviço da Ocean African Container Lines, na África Austral, foi cedido pela companhia sul-africana Grindrod para fazer uma viagem de socorro até à Beira.

De acordo com uma nota citada pelo jornal online moçambicano Carta de Moçambique uma equipa da KPMG está destacada para auditar o processo de doação e embalagem de mercadorias em contentores, no Terminal de Cabotagem do Porto de Maputo, o embarque do MV Border, bem como a sua chegada ao Porto da beira e entrega daquilo que leva ao Instituto Nacional de Gestão das Calamidades, às instituições da ONU e outras agências e associações humanitárias. Essa parceria visa garantir total transparência.

O MV Border a partida marcada, de Maputo para a Beira, este sábado, às 12.00 locais (10.00 em Lisboa). Dezenas de voluntários acorreram ao Porto de Maputo, por estes dias, para ajudar no que fosse preciso. Vídeos colocados na página de Facebook do grupo de solidariedade Unidos por Beira, criada a 16 de março, mostram pessoas a participar na corrente solidária, passando de mão em mão os bens recebidos, numa corrida contra o tempo, a ajudar na embalagem, etc... No entretanto, vão batendo palmas, cantando, sorrindo, mostrando o que é a maneira africana de estar na vida. Que serve tanto para os bons como para os maus momentos.

"Mostrámos que estamos unidos por Moçambique"

"É importante dizer que a KPMG foi um parceiro que se junto, mas entre muitos, pois eu acho que não nenhuma empresa em Maputo, grande ou pequena, que não se tenha juntado a este movimento, que não tenha doado, que não tenha trazido voluntários. Eu vi todo o tido de parceiros, do Porto e não só, a virem voluntariar-se, a querer dar o seu tempo, a vir entregar ajuda. Angariaram donativos dentro das empresas e as próprias empresas também doavam", conta ao DN, a partir de Maputo Soraia Abdula, gestora de Comunicação e Imagem da Maputo Porto Development Company (MPDC).

"Foi tudo de graça, não só o frete do navio, mas também os contentores, porque não sabemos quando é que eles vão poder ser devolvidos porque não sabemos quando é que eles poderão depois sair da Beira. Nós, aqui no Porto, isentamos de qualquer custo de manuseamento, do terminal de contentores, as alfândegas, obviamente, fizeram isenção de toda a carga e têm estado a participar connosco neste processo 24 horas. Realmente, acho que se alguma coisa boa saiu disto acho que foi esta mobilização social. Mostrámos que estamos mesmo unidos por Moçambique. Estamos mesmo unidos nesta causa", acrescenta a mesma responsável, confessando que está há quase cinco dias praticamente sem dormir, tal é a azáfama no Porto de Moçambique para levar a bom porto esta operação MV Border.

Num editorial publicado esta sexta-feira, o diretor do jornal Carta de Moçambique, Marcelo Mosse, notou que a solidariedade entre os moçambicanos funciona melhor quando não mete políticos. "A romaria solidária que inundou a zona de cabotagem do Porto de Maputo é uma demonstração inequívoca de que os moçambicanos podem facilmente abraçar o outro, independentemente da origem regional ou étnica, credo ou partido político. Mas, para isso acontecer, é preciso que tudo o que seja figura do Estado ou elemento de partido político esteja a milhas de distância da mobilização dos apoios". Mosse escreve estas linhas numa altura em que a Renamo, principal partido da oposição, disse duvidar dos números de mortos apresentados pelo governo da Frelimo e em que o autarca da Beira e líder do MDM, Daviz Simango, critica esse mesmo governo depois de ter estado dias desaparecido logo a seguir ao ciclone Idai ter atingido a capital da província de Sofala. A Beira, segunda maior cidade de Moçambique, terra natal do escritor Mia Couto, ficou destruída em quase 90%.

Ciclone em tempos de escândalo das dívidas ocultas

A decisão de auditar as ajudas surge numa altura em que a reputação de Moçambique, a nível internacional, não era das melhores. Antes do ciclone Idai, além da reconciliação Renamo-Frelimo e dos combates no Norte do país contra grupos armados islamitas, o tema mais falado era o do chamado escândalo das dívidas ocultas,

Em 2016, a revelação de que o governo de Moçambique tinha prestado garantias do Estado escondidas em empréstimos contraídos em 2013 e 2014 levou à suspensão de vários apoios internacionais, incluindo por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI), causando uma quebra de confiança dos doadores internacionais em relação ao país lusófono. Isso conduziu a uma degradação das perspetivas económicas do país e atirou-o para o nível default por parte das agências de rating.

"O perfil de crédito de Moçambique (Caa3) reflete a baixa força da economia, equilibrando a limitada diversificação da economia e o baixo rendimento per capita e o forte crescimento apoiado na exploração dos recursos naturais", lê-se numa nota divulgada pela agência de notação financeira Moody's, a 11 de março.

A 18 de fevereiro deste ano, o novo presidente da Renamo, Ossufo Momade, pediu tolerância zero no caso das dívidas ocultas. "Não basta prender peixe miúdo. Não deve haver intocáveis neste processo. Todos os envolvidos devem ser recolhidos à cadeia", declarou, citado pela Lusa, o sucessor de Afonso Dhlakama na liderança do principal partido da oposição em Moçambique.

"Apelamos ao presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, cujo partido está fortemente associado aos roubos ora havidos, para que não interfira nos órgãos de justiça e, por conseguinte, entregue todos os envolvidos", disse o dirigente, num encontro com a imprensa destinado a comunicar a reestruturação do seu partido com vista às eleições gerais de 15 de outubro.

Desde a detenção do ex-ministro das Finanças de Moçambique Manuel Chang, a 29 de dezembro, na África do Sul, à luz de um mandado internacional de captura emitido pelos Estados Unidos, a justiça moçambicana decretou a prisão preventiva a dez dos 21 arguidos no âmbito da investigação ao caso das dívidas ocultas do Estado, enquanto um outro foi libertado sob caução.

Entre eles está Ndambi Guebuza, filho do ex-presidente moçambicano Armando Guebuza, que se encontra em prisão preventiva. A justiça norte-americana implica mesmo o gabinete de Guebuza, dizendo que o engenheiro Teófilo Nhangumele "agiu em nome do presidente de Moçambique".

Essas detenções foram as primeiras feitas pela Justiça moçambicana após três anos e meio de investigação, numa altura em que os Estados Unidos e Moçambique pedem a extradição, à África do Sul, do ex-ministro das Finanças. A decisão sobre a extradição de Chang foi adiada para 26 de março.

A acusação norte-americana contém correspondência e documentos que a levam a concluir que três empresas públicas moçambicanas de pesca e segurança marítima terão servido para um esquema de corrupção e branqueamento de capitais com vista ao enriquecimento de vários suspeitos, passando por contas bancárias dos EUA.

A 20 de fevereiro, o Fórum de Monitoria do Orçamento, uma organização não-governamental moçambicana, lançou uma petição online a exigir que as autoridades britânicas investiguem os bancos financiadores das dívidas ocultas do Estado de Moçambique.

O fórum entende que a acusação da justiça dos EUA contra Manuel Chang, os gestores seniores do Credit Suisse e um intermediário da empresa Privinvest "oferece evidências suficientemente sólidas" de procedimentos ilícitos por parte dos bancos do Reino Unido.

A petição foi dirigida a John Glen, secretário Económico do Tesouro do Reino Unido, "figura que obriga as autoridades britânicas a abrirem investigações e consequentes processos criminais para a responsabilização dos funcionários e dos bancos envolvidos no escândalo", lê-se num comunicado, citado então pela agência Lusa.

As organizações que compõem o FMO dizem esperar que o processo contra os bancos seja aberto e leve ao cancelamento das dívidas. Segundo explicaram, deram igualmente conhecimento da petição ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao Fundo Soberano Norueguês (acionista do Credit Suisse), bancos e outras instituições. Mais tarde, a procuradoria moçambicana anunciou que processou o grupo financeiro Credit Suisse, os três banqueiros que trabalhavam lá na altura em que foram contraídas as dívidas ocultas e ainda um intermediário da construtora naval Privinvest por irregularidades nos contratos. A pedido dos norte-americanos, a extradição de três ex-banqueiros do Credit Suisse para os EUA será anunciada por um tribunal britânico a 29 de março.

"Esperamos que isto seja uma indicação de que o governo de Moçambique vai declarar que os 2 mil milhões de dólares [1,75 mil milhões de euros, ao câmbio de hoje] de dívida são ilegais, para que o povo do país não tenha de pagar uma dívida sobre a qual não tiveram conhecimento nem benefício", disse, à Lusa, Tim Jones, economista-chefe da ONG britânica Comité para o Jubileu da Dívida.

No lançamento do livro A Grande Corrupção, do jornalista Hélio Filimone, no final de fevereiro, o presidente Filipe Nyusi defendeu o envolvimento de todos os moçambicanos no combate à corrupção. "Há quem diga que há muita corrupção agora em Moçambique, não vamos desmentir. Mas também acreditem que o trabalho que está a ser feito está a trazer este fluxo de casos", à luz do dia, disse o chefe do Estado moçambicano, acrescentando que mais casos virão a público nos próximos anos. No início de março, o governo publicou um folheto, em formato eletrónico, colocado no Portal das Finanças, a explicar as dívidas ocultas contraídas entre 2013 e 2014 e que estão relacionadas com aquelas detenções.

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