Acordo nuclear abre ofensiva de Trump contra o Irão

Caberá agora ao Congresso tomar decisões numa matéria que ameaça gerar divergências entre Washington e os aliados europeus e agravar os contenciosos entre os Estados Unidos e a Rússia e a China.

A decisão de Donald Trump de se recusar a certificar o acordo sobre o nuclear do Irão abre uma crise há muito anunciada entre Washington e Teerão e ao mesmo tempo uma séria divergência diplomática e política entre os Estados Unidos e a Europa.

Numa declaração emitida na passada sexta-feira o presidente americano justificou a sua decisão acusando o Irão de violar o acordo assinado em 2015 pelo Irão, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha e a União Europeia.

O acordo, conhecido pela sigla JCPA (Joint Compreensive Plan of Action), impôs várias restrições ao programa nuclear do Irão como caução contra a alegada intenção de Teerão de desenvolver uma arma nuclear, em troca do levantamento de parte das sanções impostas ao país. O acordo permitiu na altura conter uma situação extremamente tensa e mesmo uma potencial ameaça de guerra entre Israel, com o apoio dos Estados Unidos, e o Irão.

Trump não especificou as alegadas violações do acordo mas aproveitou para retomar uma série de acusações ao regime de Teerão como o apoio a organizações "terroristas" como o Hezbollah, exigindo restrições ao programa iraniano de mísseis balísticos, que está fora do quadro do acordo nuclear, e clamando pela imposição de novas sanções a Teerão, visando em particular os Guardas da Revolução, a que chamou "corrupta força pessoal de terror do líder iraniano".

O presidente americano dispunha da capacidade de impor novas sanções a Teerão, rompendo assim automaticamente o acordo, sem necessitar da aprovação do Capitólio. Terá optado antes por uma solução de compromisso passando a bola para as mãos do Congresso que tem agora 60 dias para decidir tomar uma decisão. Segundo vários analistas a Administração Trump pretende a aprovação pelo Congresso de emendas legislativas com vista a desencadear automaticamente novas sanções caso Teerão pisasse uma série de "linhas vermelhas", e que se estenderia mesmo para além dos prazos de vigência do acordo nuclear com Teerão.

Duelo de Satãs

Trump dá assim sinal de pretender levar a cabo a promessa de endurecimento face a Teerão que vem repetindo desde a campanha eleitoral. Altos responsáveis da Administração Trump como o secretário da Defesa James Mattis apontaram desde cedo o Irão como uma "séria ameaça" aos interesses americanos na região. Os ataques a Teerão pontuaram as diversas etapas da visita de Donald Trump ao Médio Oriente em maio último e muitos analistas apontaram mesmo a hostilidade face a Teerão como o cimento de uma coligação entre os Estados Unidos, Israel, a Arábia Saudita e outros pequenos Estados do Golfo.

A hostilidade de fundo entre Washington e Teerão vem desde a Revolução Iraniana de 1979. Na retórica oficial do regime teocrático de Teerão os EUA transformaram-se no "Grande Satã" e Washington sempre apontou o dedo ao regime teocrático de Teerão como um dos grandes patrocinadores do terrorismo e o grande elemento de desestabilização do Médio Oriente. O Irão desalojou mesmo o Estado Islâmicos do papel de "inimigo número um" dos Estados Unidos na região. O acordo nuclear surge assim como instrumento de uma ofensiva diplomática contra Teerão há muito anunciada em Washington.

A hostilidade da Casa Branca prende-se sobretudo com a crescente influência de Teerão no Médio Oriente, em particular desde o derrube do regime de Saddam Hussein. Com as forças do Daesh à beira do colapso militar, na Síria e no Iraque, desencadeou-se uma acesa disputa pelos despojos do Estado Islâmico. Teerão tem uma influência decisiva sobre o governo de Bagdad dominado pelos xiitas e sobre várias milícias armadas fiéis. O Irão é um dos principais apoiantes do regime de Bashar al-Assad, o que coloca o Irão e os seus aliados em rota de colisão com os grupos apoiados pelos EUA.

"Implicações possíveis"

A decisão de Trump ameaça criar uma situação diplomática delicada arriscando-se a gerar potenciais divisões entre Washington e os seus aliados europeus e em novo contencioso com Moscovo e Pequim. Enquanto o israelita Benjamin Netanyahu e a Arábia Saudita se apressavam a aplaudir a "firme estratégia" do presidente americano face ao "regime terrorista do Irão", a Rússia considerou "inadmissíveis" as ameaças do presidente americano e vários responsáveis europeus rejeitaram as razões do chefe da Casa Branca e manifestaram a sua preocupação com as "possíveis implicações" do discurso de Trump.

Para fazer do ataque ao acordo nuclear uma ameaça eficaz ao regime de Teerão Donald Trump necessita da disponibilidade dos europeus para restabelecer as sanções a Teerão. O peso das sanções americanas sobre a economia iraniana é muito relativo e terão sido fundamentalmente as sanções europeias que, ao atingirem pesadamente a indústria petrolífera iraniana, levaram o regime de Teerão a sentar-se à mesa de negociações.

Ora, numa declaração emitida pouco depois do discurso de Trump, Theresa May, Angela Merkel e Emanuel Macron rebateram diretamente as acusações de Trump ao Irão notando que a AIEA confirmou repetidamente o cumprimento do acordo pelo Irão e pedindo ao presidente americano para "ter em conta as implicações para a segurança dos Estados Unidos e dos aliados antes de dar passos capazes de minar" o acordo iraniano.

Federica Mogherini declarou o acordo nuclear não é um "assunto doméstico" e que não estava no poder de "qualquer presidente no mundo" pôr termo ao acordo. Macron disse que os europeus tencionavam continuar a "honrar os seus compromissos" em relação a um acordo que constitui o "culminar de 13 anos de diplomacia" e acrescentou que, depois de uma conversa telefónica com o presidente iraniano Hassan Rouhani, admitia realizar uma visita a Teerão.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros russo reagiu à decisão de Trump numa nota escrita reiterando o compromisso de Moscovo com o acordo e declarando que "estão fora de causa quaisquer novas sanções do Conselho de Segurança".

Os analistas interrogam-se enfim se a atitude de Trump não terá o efeito de fornecer novos argumentos aos "duros" do regime de Teerão. Para já o presidente Hassan Rouhani reagiu pouco depois do discurso de Trump declarando que os EUA estavam cada vez mais "isolados" e a República Islâmica do Irão proclamou que a ação de Trump "prova uma vez mais que a América não é um parceiro fiável".

Recorde-se que tanto o Irão como a Rússia ameaçaram já abandonar o acordo se fossem impostas novas sanções a Teerão.

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