Abusos de menores: "Uma palavra muitas vezes repetida nas últimas semanas é raiva"

Um padre jesuíta português nos EUA explica ao DN como têm vivido as comunidades católicas do país o choque da revelação do relatório sobre o abuso sexual de menores por padres
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Samuel Beirão, de 34 anos, é padre da Companhia de Jesus e está nos EUA, há um ano, onde estuda no Boston College. Vive em Brighton, nesta cidade americana e falou ao DN, por escrito, do choque e da raiva que se propaga pelas comunidades católicas nos Estados Unidos da América.

Depois da divulgação do relatório dos juízes da Pensilvânia, a carta de Carlo Maria Viganò parece empurrar o Papa e os católicos para um beco sem saída. Como estão a reagir as comunidades católicas a estas denúncias?

O relatório da Pensilvânia e a carta de Viganò são dois assuntos diferentes, que surgem quase em simultâneo. O relatório divulga uma situação que envergonha a Igreja e à qual é preciso dar uma resposta à altura. Os abusos de menores e pessoas vulneráveis por parte de membros do clero e o seu encobrimento por parte da hierarquia da Igreja não pode de maneira nenhuma passar impune às autoridades eclesiásticas e civis. A carta do ex-núncio Viganò é publicada estrategicamente durante a viagem do Papa Francisco à Irlanda, país ainda muito abalado pelos escândalos sexuais das últimas décadas, para o atacar pessoalmente e a vários membros do clero.

O facto da Igreja Católica nos Estados Unidos estar unida a Roma na fé, mas distante na geografia, permitiu-lhe evoluir no sentido dos leigos terem um papel e uma voz importantes. Nas comunidades locais, leigos e clero trabalham lado a lado, partilhando ministérios e responsabilidades. O sentimento geral é de vergonha e humilhação. É um tempo em que as pessoas têm dúvidas, mas continuam a confiar nos seus pastores, sabendo distinguir os casos concretos da generalidade dos sacerdotes. Logo após o relatório da Pensilvânia, apareceram grupos de leigos pedindo a resignação do episcopado norte-americano. Também apareceram grupos expressando a sua fé e reforçando que a Igreja é a comunidade viva de que todos fazem parte.

Desde o primeiro momento em que o relatório da Pensilvânia foi publicado, que as vozes dos católicos se fizeram ouvir, quer na comunicação social, quer nas redes. Uma palavra muitas vezes repetida nas últimas semanas é raiva (anger). Pelos abusos, evidentemente, mas também pelo secretismo e encobrimento de tantas situações ao longo dos anos. Muitos se têm perguntado em que estado fica a confiança numa situação como esta.

Da parte dos leigos, há muitas manifestações pessoais nas páginas sociais. A um nível mais organizado, o primeiro a aparecer foi uma petição online para a renúncia dos bispos norte americanos. Mas há outros movimentos: membros de paróquias em vários estados reuniram-se para conversar sobre o que está a acontecer e o seu papel como baptizados e enviaram cartas aos seus bispos com as conclusões desses encontros; o Boston College reuniu mais de cem alunos, antigos alunos, docentes e staff para conversar e partilhar sobre os casos de abusos sexuais, num clima de respeito e aceitação; o arcebispo de Saint Louis, Robert James Carlson, pôs à disposição do Ministério Público todos os processos a correr eclesiasticamente, além de se disponibilizar para qualquer cooperação com as autoridades civis; têm saído vários artigos de opinião, em jornais, assinados por católicos, expondo as suas dúvidas e a defesa da fé católica; a Conferência Episcopal Norte Americana publicou um comunicado em que anunciou a instalação de um Comité Executivo independente composto por leigos e clérigos para investigar as diversas situações; muitos bispos escreveram cartas que foram lidas nas missas dominicais das suas dioceses na semana em que os escândalos se tornaram públicos. Só para mencionar alguns exemplos.

É possível que a carta do arcebispo Viganò signifique que os setores ultraconservadores, que têm no cardeal americano Burke um forte dinamizador de uma luta surda contra o Papa, estejam a usar de todos os meios para atingir de facto o Papa e obrigá-lo à renúncia?

Termos como conservadores e liberais são expressões políticas, alheias ao Evangelho. Do Evangelho fazem parte palavras e gestos como justiça, verdade, acolhimento, seguimento de Jesus. O Papa Francisco veio mostrar ao mundo do séc. XXI que a fé se vive praticando no quotidiano das nossas vidas o que essas palavras significam. Dito isto, não se pode ser inocente e pensar que não há um grupo de pessoas dentro da Igreja que não gosta do modo de liderar de Francisco. É um homem que não tem medo, porque confia em Deus.

Viganò aproveitou o caso McCarrick para atingir o Papa. Na primeira parte da sua carta, apresenta um rol de nomes de membros do clero que, segundo ele, encobriram a situação e são aliados do Papa nesse silêncio. Chega a dizer que, neste estado, "a Igreja se parece a uma seita ou à máfia". Na segunda parte, Viganò ataca diretamente o Papa Francisco, terminando a carta com o pedido explícito da sua renúncia. Também se refere a vários padres e bispos que desde o início do pontificado de Francisco, como ele, preferem uma Igreja ao encontro das pessoas nas suas situações concretas, em vez de uma instituição fechada em gabinetes. É uma linha totalmente diferente daqueles que veem a Igreja como uma instituição de perfeitos. Ora, a Igreja é perfeita na medida em que foi instituída por Jesus Cristo e é guiada pelo seu Espírito, mas dela fazem parte homens e mulheres ao longo de dois mil anos de História, com as suas virtudes e os seus pecados.

Na viagem de regresso da Irlanda, Francisco desafiou os jornalistas a fazer o seu trabalho e verem a veracidade do conteúdo da carta de Viganò. E eles fizeram-no. Até agora, já sabemos que as supostas sanções impostas sobre McCarrick pelo papa Bento XVI em 2009 ou 2010 não correspondem exatamente ao escrito. Se fossem um facto, então como é que nos anos seguintes McCarrick aparece em celebrações públicas, quer nos Estados Unidos, quer no Vaticano, ao lado do Papa Bento XVI e de outros prelados que saberiam das supostas sanções, incluindo ao lado do próprio Viganò, na missa de 10 de maio de 2013, aquando do jantar anual de cardeais em apoio da Universidade Católica?

O próprio secretário do Papa Bento XVI, o arcebispo Georg Gänswein, disse esta semana ao Die Tagespost que Bento XVI não confirmou as alegações da carta de Viganò. Mais, chamou a essa notícia dada por Timothy Busch no NY Times "fake news".

Estes ataques ao Papa não são novos, apenas têm ganho um tom mais elevado. As pessoas que não querem o Papa Francisco não são muitas, mas infelizmente fazem muito barulho. Mais que nunca, é responsabilidade de cada um apurar a verdade do que é dito e feito e tirar conclusões.

A questão dos abusos sexuais de menores tem merecido respostas mais assertivas ou ambíguas, conforme diferentes responsáveis. É altura de, como pede o Papa, a Igreja assumir erros e tornar o assunto o mais transparente possível para de algum modo erradicar o problema?

A questão dos abusos sexuais de menores não é exclusiva da Igreja Católica. Isto não serve de desculpa para nada, basta haver um único caso para que a Igreja se faça responsável e lide com as consequências.

Assumir os erros não é só reconhecê-los publicamente, ou rezar e fazer penitência. Claro que isso são modos de mostrar que se está ao lado das vítimas e num contexto de fé têm uma força reparadora e sanadora. Mas é preciso ir mais longe. É dever da Igreja ante as vítimas ser o mais transparente possível e colaborar de todos os modos com as autoridades civis para que se faça justiça.

A formação nos seminários tem sido muito questionada, com muitos a colocarem em questão também o celibato (comparando com outras igrejas cristãs, onde os casos são menores e onde os ministros podem casar). Até que ponto será necessário abrir este debate?

A estrutura dos nossos seminários é, de certo modo, a usada desde Trento (séc. XVI). Por isso, é claro que é preciso repensar a formação nos seminários. Mas isso é diferente de pôr em causa os fundamentos teológicos da promessa do celibato por parte dos padres. Pode discutir-se, mas não é esse o maior problema que tem de ser abordado. O mundo de hoje quer ministros capazes de celebrar com alegria os sacramentos, de pregar e explicar a Palavra de Deus, reconhecer que o seu ministério só ganha sentido ao lado de outros ministérios da comunidade levados a cabo por leigos, religiosos e outras formas de vida dentro da Igreja. Ministros capazes de viver com alegria e honestidade os desafios da sua vida: humana, afetiva, espiritual e psicologicamente equilibrados. Abandonar o clericalismo de que o Papa Francisco tanto fala passa por isto mesmo: reconhecer o ministério de todos os batizados e que o lugar de cada um na Igreja não é acima ou abaixo, mas ao lado uns dos outros, cada um como é chamado.

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