"A situação que se vive na Beira e em Sofala é catastrófica e dantesca"

Testemunho na primeira pessoa do italiano Fabrizio Graglia, diretor da Associação Esmabama em Sofala, sobre a destruição deixada pela passagem do ciclone <em>Idai </em>por Moçambique.
Publicado a
Atualizado a

"Caros amigos,

[Nesta segunda-feira, 18 de março] consegui fazer a viagem de Beira para Nampula e depois para Maputo para poder aceder à internet e poder atualizar-vos sobre os últimos acontecimentos que atingiram a província de Sofala. Um ciclone devastador (Idai) massacrou Sofala na noite de quinta-feira, 14 de março. Desde aquele dia ficámos sem energia elétrica, comunicações telefónicas, combustível, comida, água potável, estradas, ATM e os bancos mantêm-se fechados. Este ciclone deixou para trás um rasto de morte e destruição como não há memória no país. As escolas, o nosso escritório, os hospitais que permaneceram em pé tornaram-se o refúgio de centenas de famílias que perderam tudo. O telhado do hospital central da Beira caiu e cinco recém-nascidos da enfermaria de neonatologia morreram, mais 160 pessoas morreram naquelas instalações devido principalmente à falta de energia que mantinha as máquinas hospitalares e à queda parcial da estrutura. Não há postes de luz em pé, as árvores tombadas bloqueiam as ruas, nenhuma loja ou mercado está operacional. Só comemos laranjas e abacates durante três dias e racionalizamos a água potável.

O vento era tão forte que arrancou os motores de ares condicionados atirando-os para os telhados circunvizinhos. Lendo as ultimas notícias online, verifico agora que o vento chegou a 230 quilómetros por hora naquela noite. Nenhuma janela ou porta resistiu à fúria da água do mar, areia, pedras e tudo o que encontrou no caminho. As chapas arrancadas aos telhados eram como punhais que entravam dentro das casas. Nossas casas tornaram-se piscinas e protegemo-nos com colchões para não sermos atingidos por objetos e vidros estilhaçados das janelas. A casa que arrendei nos últimos cinco anos, localizada em frente à praia na Ponta Gea, caiu por terra como um baralho de cartas, restando apenas a parte traseira da mesma. Vários animais de pequeno porte literalmente voaram, ficando pendurados em árvores ou a apodrecer nos telhados e escombros. Tudo isso durou das 20.00 até às quatro da manhã. A última hora foi a mais perigosa, o vento diminuiu por alguns minutos e depois atacou com mais força, destruindo as últimas casas que sobreviveram às horas anteriores.

No dia seguinte, pedi a dois de nossos marinheiros que fossem à missão de Barada para obter algumas informações, mas o mar e o vento não permitiram a navegação. Então eu pedi a um de nossos motoristas para tomar a rota terrestre, mas depois de 40 km ele teve de voltar para a cidade porque a estrada tinha sido engolida e em seu lugar havia um lago com crocodilos e pessoas presas nas árvores.

Pessoas que caminharam durante dois dias até à Beira disseram-me que aldeias inteiras com casas e pessoas desapareceram. O presidente da República de Moçambique anunciou que neste momento os distritos de Búzi (Barada e Estaquinha), Chibabava (Mangunde) e Marromeu estão completamente isolados. E segundo ele expressou, com preocupação, esperam-se centenas de mortes e doenças subsequentes, dado que também pelo que é observável pelas fotografias aéreas que começam a circular, dezenas de corpos flutuam nos rios Búzi e Pungue.

Na cidade à noite, grupos de pessoas andam a vaguear, ninguém sabe se cortam árvores ou cortam pessoas, pois os números de criminalidade violenta aumentaram consideravelmente, tendo-se registado vários ataques a pessoas e assaltos às casas danificadas e abertas.

Enquanto isso, após quatro dias, tenho informações apenas parciais acerca das missões.

Machanga: a missão não tem mais telhados e os nossos alunos internos dormem sob as árvores, e perdemos completamente a criação de porcos.

Estaquinha: só tenho informações sobre o campo agrícola. Perdemos mais de cem toneladas de milho (alimento por quatro meses em nossos internatos), todas as máquinas agrícolas estão submersas. Um investimento de 200 mil euros engolidos pela água. Não tenho informações sobre a missão.

Mangunde: parte da escola, o internato e o centro de saúde estão sem teto. As comunidades circunvizinhas estão completamente inundadas.

Nossa missão na praia - Barada: ainda não tenho novidades e infelizmente temo o pior.

Nosso novo escritório da Beira está quase destruído e policiais armados, guardas e os nossos três cães ficam de guarda dia e noite.

Alguns dos nossos funcionários e estudantes foram feridos, mas até agora não tivemos notícias de mortes entre os nossos.

Continua a chover torrencialmente e prevê-se que se mantenha assim nos próximos dias e os rios continuam a aumentar seu nível de alerta. Os países vizinhos que estão também a ser afetados por chuvas torrenciais irão seguramente abrir as comportas das suas barragens para evitar a sua danificação, pelo que se espera ainda mais cheias na região de Sofala.

Estou consternado e destroçado com este cenário dantesco e com o pânico nos rostos de quem agora teme pela vida e dos seus. Precisamos de ajuda urgente."

Frabrizio Graglia é diretor da da Associação Esmabama em Sofala​​​​​​​

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt