A polémica votação sobre migrantes e refugiados. O que se passou afinal?
A polémica instalou-se depois da rejeição - por escassos dois votos - da proposta original, apresentada pela Comissão Parlamentar das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (Libe). Mas houve mais três propostas, - na sequência da primeira -, também elas rejeitadas. Ou seja, o Parlamento Europeu não conseguiu um consenso em torno de uma matéria que, à partida, seria consensual: o salvamento de vidas humanas.
Extrema direita
Na ala mais à direita, o grupo Identidade e Democracia apresentou um documento em que se opõe "à criação de mais vias legais para a migração". No texto escrito pela eurodeputada italiana Annalisa Tardino, colega partidária do controverso Mateo Salvini, na Liga do Norte, e pelo eurodeputado do partido da extrema direita Vlaams Belang, Tom Vandendriessche, lê-se que "os Estados-Membros devem ser autorizados, se necessário, a reintroduzir fronteiras internas".
O mais curto dos quatro documentos acusa as ONG que atuam no Mediterrâneo de serem responsáveis pela "introdução clandestina de migrantes sob a fachada de atividades de busca e salvamento". Além disto, sugere que se levantem processos judiciais aos capitães das embarcações para "impedir que as ONG se tornem um serviço de táxi de migrantes ilegais" para a Europa.
No texto, em que pede para que sejam "asseguradas condições aceitáveis nos centros de acolhimento em países terceiros", o grupo Identidade e Democracia usa expressões como "oportunistas económicos" para se referir aos migrantes "provenientes de África ou prospetores de outras regiões em todo o mundo", dos quais "a Europa não deve ser vista como um recetáculo"
Conservadores e Reformistas
Na sua proposta, o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus começa por "recordar a obrigação, (...) de prestar assistência a pessoas em perigo", instando "todos os navios públicos e privados que realizam operações de busca e salvamento a cumprirem as instruções dadas pelo centro de coordenação de busca e salvamento competente e a cooperarem com as autoridades dos Estados-Membros e a Frontex, de molde a garantir devidamente a proteção da vida dos migrantes bem como da segurança dos Estados-Membros".
Em seguida, defende "sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasivas, as quais podem incluir a extradição", para os migrantes, remetendo para a Diretiva 2002/90/CE, na qual se refere que "um dos objetivos da União Europeia é a criação progressiva de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, o que implica nomeadamente a necessidade de combater a imigração clandestina". Esta posição também é defendida na proposta de resolução original.
"Por conseguinte, há que combater o auxílio à imigração clandestina, não só no caso de esse auxílio se traduzir na passagem irregular da fronteira stricto sensu, mas também quando for praticado com o objetivo de alimentar redes de exploração de seres humanos".
Os conservadores consideram que "os Estados-Membros têm o direito de avaliar, caso a caso, se a operação de busca e salvamento realizada por navios privados se limita a prestar ajuda humanitária".
"Insta os Estados-Membros a tornarem o registo dos navios de ONG o mais transparente possível, a fim de garantir que existam informações claras sobre a origem do seu financiamento", lê-se ainda.
"Sublinha que a única forma de reduzir as mortes no mar consiste em impedir novas viagens perigosas", defendendo um esquema "de plataformas de desembarque regionais", que até hoje fracassou.
O PPE
O texto apresentado pelo PPE, do qual fazem parte os deputados do PSD e do CDS, recorda que "prestar assistência a pessoas em perigo" é uma "obrigação decorrente do direito internacional". A frase aparece revertida na proposta de resolução original (ver em baixo).
Ao mesmo tempo "insta todos os navios que realizam operações de busca e salvamento a cumprirem as instruções dadas em conformidade com o direito internacional" e a cooperarem com as entidades públicas e com a Frontex, "a fim de salvaguardar a segurança dos migrantes";
Recorda que a política de migração da UE "deve basear-se numa distinção clara entre migrantes económicos e refugiados, que as vias legais e os corredores humanitários apenas podem ser criados exclusivamente para os refugiados e que a migração económica irregular para a UE deve ser reduzida de forma significativa".
Proposta Original
A proposta original, que desencadeou a apresentação de outras propostas alternativas, foi apresentada pelo espanhol Juan Fernando López Aguilar, membro do grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, em nome da comissão Libe "Exorta os Estados-Membros a evacuarem rapidamente os centros de detenção na Líbia e a transferirem migrantes, incluindo para a UE" e "instando-os (...) a manterem os seus portos abertos a navios de ONG".
"Insta os Estados-Membros da UE a reforçarem as operações de busca e salvamento proativas, disponibilizando navios e equipamento suficientes especificamente dedicados às operações de busca e salvamento e pessoal, ao longo das rotas em que possam contribuir eficazmente para a preservação de vidas, quer sob a égide de uma operação coordenada pela Frontex, quer ao abrigo de operações internacionais ou de operações nacionais ou regionais independentes, de preferência de caráter civil", levando a maior parte da direita parlamentar a considerar que o texto não só "equipara ONG a Estados", ao mesmo tempo que "insta a Comissão a apoiar política e financeiramente estas iniciativas".
Todas.
As resoluções dos grupos "são separadas" e não pretendem "chegar a uma versão consolidada". A versão consolidada "é a que saiu da Libe, visto ter sido negociada e votada por diferentes grupos em sede de comissão parlamentar", esclarece o Parlamento Europeu, em resposta ao DN/TSF.
Na proposta consolidada - com votos nominais - votaram a favor todos os deputados do Partido Socialista, do Bloco de Esquerda - com exceção de José Gusmão, ausente por razões familiares -, os do PCP e o do PAN. No PSD, Paulo Rangel, Cláudia Monteiro de Aguiar e Lídia Pereira votaram a favor, ao passo que Álvaro Amaro e Graça Carvalho - inadvertidamente - votaram contra. Nuno Melo, do CDS, também se opôs. E, o social-democrata José Manuel Fernandes absteve-se.
Três dos grupos políticos apresentaram as suas próprias propostas, na sequência da proposta de resolução original apresentada pela comissão Libe. Esta proposta foi rejeitada por dois votos contra. Curiosamente, a delegação do PSD dividiu-se e não votou toda no mesmo sentido. Paulo Rangel, Cláudia Monteiro de Aguiar e Lídia Pereira, por exemplo, votaram favoravelmente. José Manuel Fernandes absteve-se. Ao passo que Álvaro Amaro e, por lapso tardiamente corrigido, Graça Carvalho rejeitaram à proposta da Comissão Libe, tal com fez o deputado CDS, Nuno Melo.
"As resoluções dos grupos políticos foram apenas votadas por braço no ar, não houve votação nominal, por via eletrónica, pelo que não há registo de como votaram os eurodeputados", esclareceu o Parlamento, remetendo para o texto em que constam os resultados gerais.
Após a votação, a deputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias reagiu, expressando a sua "frustração" face ao resultado de um voto "sobre a criação de mecanismos europeus de proteção de vidas no Mediterrâneo", resultado de uma negociação longa que colmatou numa votação também ela longa e muito dividida".
Num texto originalmente publicado no DN, lamentou "o impensável", que foi a "proposta de salvar vidas" chumbada por dois votos. "Pensei para comigo: há mesmo uma maioria de representantes que quer que continuem a morrer pessoas no Mediterrâneo?", questiona.
Ao mesmo tempo, a deputada socialista Maria Manuel Leitão Marques fez o relato indignado, nas redes sociais, sobre o voto da "direita do Parlamento Europeu juntamente com a extrema direita", contra a resolução com a qual se "pretendia uma política europeia mais efetiva para salvar vidas no Mediterrâneo", tendo igualmente vincado que "por dois votos foi perdida esta oportunidade de melhorar os meios de salvamento".
Nuno Melo afirma que "em primeiro lugar" está "a pretensão de ter ativistas políticos - muitos deles à esquerda - tratados ao nível dos Estados", em matéria de responsabilidade na busca e salvamento.
Em "segundo lugar, o não tratamento adequado da questão da cooperação com países terceiros por forma a combater as causas que levam ao êxodo que rotunda em migrantes e refugiados". O deputado justifica a sua oposição a "uma política de portas abertas", que para si estava implícita na proposta de resolução.
Melo considerou ainda que a proposta que rejeitou não apresentava "uma resposta adequada no sentido de pôr fim a um modelo perpetuado por traficantes e por grupos criminosos". Também sublinha "a recusa de distinguir migrantes de refugiados, que é uma coisa diferente do resgate no Mediterrâneo". Melo afirma que "o resgate tem de ser feito em relação a toda a gente".
"Tudo isto misturado numa resolução, justificou o voto contra do PPE" que, maioritariamente, rejeitou a proposta da Libe.
Por sua vez, Álvaro Amaro considera que o voto favorável à proposta apresentada pela sua família política "demonstra bem a [sua] preocupação e o forte compromisso", relativamente à "intensificação da ajuda (...) a todos os cidadãos de países terceiros que arriscam as suas vidas, na esperança de chegar ao nosso continente", considerando por isso que "a defesa da vida humana não esteve nunca em causa em nenhuma discussão no PE".
"Infelizmente", a resolução apresentada pela comissão Libe "não teve em conta a posição do meu Grupo Politico- PPE", razão pela qual decidiu "votar contra", admitindo rever o sentido de votos se for redigida "uma nova Resolução que possa expressar a pluralidade de opiniões existente neste Parlamento".
Entretanto, a deputada Maria da Graça Carvalho veio "esclarecer que é falso que tenha tomado posição contra o auxílio aos refugiados", já que a sua rejeição à proposta se deveu "um erro técnico", que a levou a "votar contra aquilo que queria votar favoravelmente". A deputada retificou mais tarde o seu sentido de voto, embora sem efeitos práticos, já que a votação em plenário é aquela que fica registada.
"A justificação tem por base uma decisão da Mesa do Parlamento Europeu, composta pelo presidente e vice-presidentes do PE", que data de 3 de maio de 2004, a qual refere que "qualquer pedido de correção do voto encaminhada por um Membro deve ser exarada em ata, mas o resultado da votação não será alterado".
O deputado José Manuel Fernandes decidiu abster-se, classificando como "uma vergonha que o Parlamento Europeu numa resolução sobre o salvamento no Mediterrâneo não tenha sido capaz de chegar a um texto que fosse consensual", acusando os deputados de "uma esquerda campeã da demagogia" de terem votado contra uma resolução do PPE "que também defendia o salvamento de vidas".
Paulo Rangel, um dos poucos deputados do PPE que votaram a favor da proposta da comissão Libe, considera "totalmente inaceitável e uma enormidade" afirmar que quem a rejeitou é contra o salvamento de pessoas no Mediterrâneo. "O PPE apresentou uma resolução" em que coloca o auxílio a pessoas em perigo como "uma obrigação decorrente do direito internacional", tendo havido, porém, "muitos deputados da esquerda - para não dizer quase todos - que votaram contra", afirmou. Acrescentou que, no entanto, "ninguém está a dizer que eles são contra o salvamento de pessoas".
"Não há uma única pessoa no PSD que esteja contra o salvamento de vidas", afirma Rangel, garantindo que sobre esse aspeto da resolução "toda a gente está de acordo". O líder da bancada do PSD em Bruxelas admite que votou "a favor, mas com reservas", uma proposta relativamente à qual "tem as maiores discordâncias".
Na declaração de voto, chega a dizer que "teve muitas hesitações sobre qual deveria ser o sentido final, como outros colegas [do PSD] tiveram reservas no sentido contrário", justificando que a razão é que "esta resolução é irrealista".
"Em muitos casos, em vez de ajudar ao salvamento, vai impedir o salvamento", lamenta, lançando acusação à esquerda por a posição do seu partido não estar refletida numa proposta que pretendia conciliar as diferentes sensibilidades, num parlamento fragmentado politicamente.
"Bastava que esses deputados que estão numa forma errada - muito errada e intrinsecamente errada - a acusar deputados do PSD ou outros, tivessem votado favoravelmente as emendas propostas pelo PPE", e, nesse caso, Rangel acredita que a "proposta tinha sido aprovada".
Por sua vez, a deputada Cláudia Monteiro de Aguiar considerou que, do seu ponto de vista, "não fazia sentido" votar contra uma proposta, tendo na sua declaração de voto defendido que "a Comissão Europeia deve apresentar orientações para que os Estados Membros limitem a criminalização indevida de pessoas que prestam auxílio, nomeadamente os comandantes e os membros da tripulação, que não deverão sofrer sanções penais pelo simples facto de terem socorrido pessoas"
Não. Esta pode voltar a ser discutida. A Libe é a comissão competente nestas matérias de migração e asilo.
Também não. Na legislatura anterior, o Parlamento Europeu levou a discussão uma resolução em matéria de migração e asilo, que foi aprovada em 2016, com 390 votos a favor, 175 contra e 44 abstenções.
Noutro texto, os eurodeputados defenderam que "a reforma das regras europeias de asilo deve incluir um mecanismo centralizado para a receção e a atribuição dos pedidos de asilo a nível da UE, em que cada requerente solicitaria asilo ao conjunto da União e não a um Estado-Membro específico".
As propostas dos eurodeputados para a reforma das políticas europeias de migração e asilo estão incluídas num relatório da comissão parlamentar das Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos, elaborado por Roberta Metsola (PPE, Malta) e Kashetu Kyenge (S&D, Itália). O documento foi aprovado em plenário por 459 votos a favor, 206 contra e 52 abstenções.
Uma resolução do Parlamento Europeu, de 12 de abril de 2016, sobre a situação no Mediterrâneo, defendia a "necessidade de uma abordagem holística da União Europeia em relação à migração", referem os serviços do Parlamento Europeu, num esclarecimento enviado ao DN/TSF.
"Malta está constantemente envolvida nos esforços de salvamento de migrantes que se estão a afogar no mediterrâneo", relatava ao DN/TSF, em Bruxelas, a relatora do texto, que viria a aprovar no Parlamento. A eurodeputada maltesa, a conservadora Roberta Metsola, chamava a atenção para os "inúmeros pedidos de ajuda de navios e embarcações que enviam sinais de SOS", razão pela qual esperava "que todos os primeiros-ministros voluntariamente assumam a responsabilidade e concordem que, uma vez que já aceitaram uma ação militar no Mediterrâneo, também devem alcançar um acordo em matéria de solidariedade".
"Como advogada, consigo compreender, de um ponto de vista legal [o problema]. Mas, politicamente o problema existe. Um país que não pertence ao sul da União Europeia, não deve estar exonerado de olhar por essas pessoas que vem para Europa por uma vida melhor", afirmou, apelando a mecanismo de solidariedade de redistribuição de migrantes e refugiados pelos países da União, que mais tarde veio ser criado mas está, até hoje, sem resultados efetivos dadas as resistências nos países do leste da Europa.
Em relação à proposta de revisão do regulamento de Dublin - a legislação europeia que determina qual o Estado-Membro responsável por lidar com os pedidos de asilo -, o Parlamento Europeu aprovou a sua posição em novembro de 2017, mas as negociações com o Conselho ainda não começaram porque este ainda não chegou a uma posição evidenciando as diferenças entre os países nesta matéria.