A neozelandesa que sonhava tirar as crianças da pobreza. E agora pode fazê-lo

Jacinda Ardern. Fixem este nome. Declarou guerra à pobreza infantil e à especulação imobiliária e num ápice chegou a primeira-ministra. É a mulher mais nova a ser eleita chefe de governo.
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Foi em Murupara, cidade madeireira no Norte da Nova Zelândia, na qual Jacinda passou parte da infância, que compreendeu as desigualdades da sociedade. Via outras crianças (apesar de não o referir, maoris na certa) descalças e sem o que comer. Aos 17 anos entrou na política e duas décadas depois tornou-se o mais novo governante de sempre daquele país do hemisfério sul e na mulher mais nova à frente de uma democracia.

A expressão não foi a mais feliz, mas demonstra como mudou em tão pouco tempo. Há três meses, a número dois dos trabalhistas recusava de forma categórica a hipótese de chefiar o partido, exceto se fosse a única sobrevivente de um atropelamento de um autocarro que levasse os restantes membros da direção. O único acidente que ocorreu foi virtual: as sondagens indicavam que o seu antecessor, Andrew Little, seria incapaz de vencer as eleições de 23 de setembro. E Jacinda Ardern, que por diversas vezes havia recusado chegar ao topo - tendo alegado problemas de ansiedade - acabou por aceitar.

Pegou nas rédeas do partido no dia 1 de agosto e no espaço de um mês as sondagens refletiram a mudança, com a subida do Labour em 19 pontos. Na primeira entrevista perguntaram-lhe se planeava ser mãe. Começou por dizer que iria responder a esse tipo de questões devido às suas funções públicas, mas logo apontou o dedo ao entrevistador e sentenciou: "Para as outras mulheres, é totalmente inaceitável que em 2017 lhes digam que devem responder a essa pergunta no local de trabalho." Com esta desenvoltura e com a promessa de estender progressivamente a gratuitidade ao ensino superior, captou a atenção das mulheres e dos jovens. Ardern sabe do que fala: a dívida dos estudantes equivale a 9,5 mil milhões de euros e enquanto estudante universitária de Relações Públicas da universidade de Waikato trabalhou num supermercado e num estabelecimento de comida rápida para ajudar a pagar as contas.

Foi a grande sensação da campanha eleitoral e quando o então primeiro-ministro e seu contendor, Bill English, num debate a chamou de "pó das estrelas que assentou (settle)", essa desvalorização só atingiu o próprio. "Este pó das estrelas não se acomodou porque nenhum de nós se deve acomodar. A Nova Zelândia não se deve contentar com nada menos do que assumir de frente os desafios que enfrentamos nesta eleição", respondeu, dando outros sentidos à palavra settle.

O efeito jacindamania, como foi designado nos media e nas redes sociais, não chegou para ganhar as eleições: os trabalhistas obtiveram 36,9% dos votos, menos 7,5% do que o Partido Nacional. Mas como estes perderam quatro lugares e o Labour ganhou 14 na Câmara dos Representantes (com 120 lugares), ambos os partidos encetaram negociações com os nacionalistas New Zealand First (NZ First). No caso dos trabalhistas, a maioria na assembleia só se formaria - como acabou por se concretizar - com a participação dos Verdes. A estes comprometeu-se com um referendo sobre o uso recreativo da canábis, em aumentar os recursos para a conservação da natureza e em criar uma comissão independente para a análise das alterações climáticas.

"Para demasiados neozelandeses o capitalismo não tem sido amigo, mas inimigo. Acreditamos que o capitalismo deve voltar a ter uma face humana e essa convicção influenciou profundamente a nossa decisão", explicou Winston Peters, do NZ First, que assim regressa ao posto de vice-primeiro-ministro e à pasta dos Negócios Estrangeiros. E foi neste sentido que Jacinda Ardern falou, na sua primeira entrevista enquanto governante designada, ao falar em "falhanço do capitalismo": "Como é possível reivindicar sucesso quando se tem um crescimento de 3%, mas o pior indicador de pessoas sem casa no mundo desenvolvido?" Um contraponto ao argumento do governo cessante de que atingira orçamentos com superávite e um PIB em contínuo crescendo. "Se temos centenas de milhares de crianças que vivem em casas sem o suficiente para sobreviver, isso é uma falha flagrante." Estima-se que um terço das crianças neozelandesas, cerca de 300 mil, vivam abaixo do limiar da pobreza, um aumento de 45 mil no espaço de um ano.

Jacinda Ardern, que tinha como objetivo ser ministra para esta área, vai acumular esta responsabilidade (e ainda a Segurança Nacional, e as Artes, Cultura e Património). Prometeu tirar 100 mil crianças da pobreza até 2020 ao aumentar o salário mínimo, ao introduzir um abono de família, ao estender a licença parental para seis meses e ao aumentar o subsídio de habitação.

O imobiliário é uma questão que preocupa os kiwis (como são conhecidos os neozelandeses) de todos os estratos sociais, dos que não têm teto aos que foram obrigados a sair de casa. A bolha especulativa é tal que o FMI aconselhou a intervenção do governo anterior. A partir de dezembro, os estrangeiros já não poderão comprar habitações construídas - e os milionários não vão poder contornar a lei comprando a nacionalidade. Palavra de quem vive num estúdio de Wellington com o companheiro, apresentador de televisão, e um gato polidáctilo (os gatos com polegares) e que nos tempos livres passa o tempo com as pequenas sobrinhas ou a fazer de DJ. Agora será mais difícil.

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