A nação startup tem raízes no exército

Exportações de alta tecnologia sustentam sucesso da economia de Israel e até parecem uma realidade alheia ao conflito com os palestinianos, mas não é assim. Geopolítica ajuda a explicar a vaga de empreendedorismo.
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Não se avistam campos agrícolas nem gado a pastar, apenas um centro comercial, que inclui uma loja Toys"R"Us e um restaurante McDonald"s. As luzes já estão acesas, pois a noite começa a cair e o dia em Israel foi de chuva Anexo ao shopping, fica um edifício de escritórios, no qual está instalada a Zebra Medical Vision, empresa que alia informática e saúde, fundada em 2014 por Eyal Gura. Sim, este é o Kibbutz Shefayim, entre Netanya e Telavive, fundado por judeus polacos nas décadas anteriores à criação de Israel. E sim, agora se percebe porque é um dos mais prósperos kibbutz, dos poucos que para manter vivo o ideal de aliar sionismo e socialismo não teve de pedir ajuda governamental. Até inclui um parque aquático e no passado teve uma fábrica de plásticos e uma de biotecnologia, além de outros investimentos.

"Não temos ligação direta ao kibbutz. Apenas arrendamos um espaço para a Zebra", esclarece Gura, de 39 anos, antigo comandante submarinista, formado em Empreendedorismo pela Universidade de Herzliya e que já apareceu numa revista como um dos "40 líderes israelitas com menos de 40 anos". De seguida mostra como funciona a tecnologia de Deep Learning que a sua startup está a desenvolver, uma forma de diagnóstico do cancro da mama através da comparação de um exame com milhões de raios-x e que promete ser "mais eficaz do que o melhor dos radiologistas".

Que um kibbutz não dependa já de fazer crescer plantas no deserto mas viva de arrendar espaço a micro-empresas com ambições globais mostra bem como Israel se transformou de um país de pioneiros agrícolas num país de pioneiros da tecnologia de ponta. Já em 2009 um livro de Dan Senor e Saul Singer falava de Israel como A Nação Startup, procurando explicar o sucesso económico do pequeno país criado em 1948 e quase sempre em guerra com os vizinhos árabes.

Por coincidência, 2009 foi o ano da depressão generalizada nos Estados Unidos e na Europa, "mas mesmo assim o PIB israelita cresceu 1,3%. Desde então, a média é de 3,5%, bem acima da OCDE", garante Ofer Fohrer, diretor de Estatística do Ministério da Economia, num jantar com jornalistas europeus em Neve Tzedek, o bairro judeu construído junto à velha cidade árabe de Jafa e embrião da futura Telavive, fundada em 1909.

À mesa, a partilhar pratos médio-orientais como o húmus, está também Chemi Peres, presidente do Centro Peres para a Paz, destinado a defender o legado do seu pai, Shimon Peres, que foi presidente e primeiro-ministro, além de ter recebido o Nobel pelos Acordos de Oslo com os palestinianos em 1993, um ano de raro otimismo na região. "O meu pai foi um dos fundadores de Israel. Teve a oportunidade de criar um país com Ben Gurion. O meu pai nasceu na Polónia e quando veio tinha 11 anos. Veio para cá com a mãe e o irmão. Navegou de Istambul para Jafa. Contava que era uma terra seca. Afinal, dizia ele, que se podia esperar de uma terra entre dois lagos, um morto e o outro a morrer, e entre eles um rio, o Jordão, com mais história do que água? Sem recursos naturais, os pais fundadores de Israel apostaram no poder do cérebro", conta o homem que criou a Pitango, financeira especializada em investir nas startups, com um portfólio de 1,5 mil milhões.

Peres filho fala do tempo áureo dos kibbutz, do plano da ONU de partilha da Palestina que os árabes rejeitaram, do novo Estado e de como os israelitas tiveram de inventar a rega gota a gota para aproveitar a escassa água disponível. E relembra como o seu pai, que foi pela primeira vez primeiro-ministro na década de 1980, teve de lutar contra o colapso da economia.

A receita foi apostar forte na ciência e na tecnologia, aliar o saber dos militares e da universidade. "Ainda hoje muitos israelitas depois da tropa e da universidade criam empresas", realça este engenheiro formado pela Universidade de Telavive e que, através da Pitango, tem apoiado centenas de startups e ajudado ao sucesso das exportações de alta tecnologia, que representam metade das vendas.

Os jovens israelitas cumprem serviço militar obrigatório aos 18 anos. Estão abrangidos todos os rapazes e raparigas judeus (com exceção de alguns grupos de ultraortodoxos) e os drusos, parte da comunidade árabe (que inclui ainda muçulmanos e cristãos). Só depois fazem estudos universitários.

"No exército há uma grande mistura de pessoas. E uma grande exigência. Os mais dotados são colocados em unidades tecnológicas e usam depois esses conhecimentos quando vão estudar ou trabalhar. E há também a rede de relações que criamos e que para quem quer criar empresas é muito valiosa", conta Eran Shir, criador da Nexar, uma app que ajuda a conduzir com maior segurança. É já a terceira startup deste doutorado em Física, com 44 anos e três filhos apesar do ar quase adolescente, reforçado pelo polo às riscas. Sobre a sua experiência militar acrescenta não ter dúvidas de que o ajudou a chegar onde está (incluindo uma passagem pela Yahoo), pois depois de operar uma bateria de mísseis anti-aéreos na fronteira com o Líbano puseram-no numa unidade tecnológica "das mais exigentes".

Shir estudou na Technion, a primeira universidade de Israel, criada em 1912 em Haifa, quando a cidade pertencia ainda ao Império Otomano. Hoje continua a ser uma das escolas científicas de elite (com o Instituto Weizmann, a Hebraica e a de Telavive), a ponto de Boaz Golany, responsável pelas relações externas, afirmar que "nenhuma universidade no mundo tem tanto impacto no seu país como a Technion em Israel". E para reforçar a mensagem, o antigo reitor nota que "tivemos já quatro Nobel da Química desde o início do século XXI". A parecer uma minicidade nas colinas que rodeiam Haifa, cidade com fama de coexistência pacífica entre judeus e árabes, a Technion testemunha bem a estreita ligação entre os mundos militar, académico e empresarial, basta relembrar, nota Golany, que quando Israel se libertou dos britânicos e derrotou os exércitos árabes "Ben Gurion escolheu o chefe do Estado-Maior para presidente da universidade".

Um jornalista europeu visitante regular de Israel não tem dificuldades em sintetizar como a situação geopolítica do país se reflete na economia: "Com um país pequeno, sem recursos e rodeado de inimigos, os israelitas tiveram de aprender a defender-se, criando tecnologia militar. E por serem pequenos, isolados, tiveram também de apostar na exportação de tecnologia, que muitas vezes começa por ter aplicação militar e depois passa para uso civil. E é preciso não esquecer a forte tradição empresarial judaica".

Se há área em que a experiência militar conta é a da chamada Inteligence e cibersegurança. Também nestes campos Israel tem empresas líderes, como a Fifth Dimension, que tem à frente Benny Gantz, ex-chefe do Estado-Maior israelita, e como consultor principal John G. Allen, o general americano que entre 2014 e 2015 liderou a luta contra o Estado islâmico. "Usamos o Deep Learning para prever tudo, até ataques terroristas", afirma Guy Caspi, fundador da Fifth Dimension, que fala num 28.º andar de um arranha-céus de Telavive com vista para o Mediterrâneo, sede de uma empresa-irmã, pois não são autorizados jornalistas nas instalações. Quanto a regras, diz seguir um princípio simples: "O que é bom para a empresa e Israel. E isso permite-nos ter um leque interessante de clientes". É uma conversa tensa, com alguns "não posso comentar", mas Caspi acaba por revelar que "50% do pessoal vem das forças armadas", valor quase tão impressionante como 85% serem doutorados.

Quatro vezes mais pequeno do que Portugal, Israel é um daqueles países em que as distâncias importam pouco, indo-se de Jerusalém a Telavive numa hora e de Telavive a Haifa noutra. O próprio aeroporto Ben Gurion fica mais ou menos a meio entre a antiquíssima Jerusalém (o rei David conquistou-a por volta de 1000 a.C.), que os israelitas insistem em ser a sua capital, e a moderna Telavive, fundada pelos sionistas em 1909 e até hoje sede das embaixadas. Airport City é assim um parque empresarial estratégico, que acolhe a Autoridade Israelita de Inovação, dotada de 500 milhões de dólares anuais para incentivar o empreendedorismo . A conversa é com Avi Hasson, cujo título é cientista-chefe de Israel. "Em Israel celebram-se os empreendedores e não só os tipo Zuckerberg. Apoiamos quem assume riscos e até achamos que alguns fracassos podem ser positivos. Interessa é falhar rápido, para que novas ideias surjam", explica este antigo oficial dos serviços de informação das forças armadas, que antes de ser nomeado em 2011 pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu trabalhou numa financeira e numa empresa tecnológica.

"O sucesso da Mobileye, vendida por 15,3 mil milhões de dólares aos americanos da Intel, deve fazer-nos refletir. O que é uma empresa israelita? Uma que tem base em Israel? Uma que faz negócio em Israel? Uma que tem acionistas em Israel? Para mim, interessa se tem ou não impacto económico no país. Se tem, então é uma empresa israelita", comenta Hasson, logo acrescentando que "não temos o sindroma do "cuidado os investidores estrangeiros vêm aí"".

Entusiasta do atual caminho da economia, como a passagem nas últimas décadas "de uma sociedade quase socialista e centralizada para uma nação startup", o cientista-chefe admite que há um esforço a fazer pelo governo para "tornar o crescimento económico mais inclusivo". Admite que "é preciso trazer mais população para o sistema, pois os árabes são 21% dos oito milhões de israelitas mas só 3% dos trabalhadores das empresas de high-tech. É um caminho que está a ser feito, com os estudantes árabes a aumentarem nas universidades técnicas". Mas mostra-se preocupado com os judeus ultraortodoxos, cuja educação deixa muito a desejar. "Começa logo pela falta do inglês".

Com base no seu passado militar, Hasson admite que "a experiência na tropa é importante na criação da mentalidade empreendedora, mas convém não a sobrestimar".

A realidade parece desmentir o cientista-chefe. Em Telavive, o Bank Hapoalim cede por umas horas um dos seus espaços no coração para o The 8200 Social Program. Centenas de participantes, idades variadas, alguns casais com bebés de colo. O ambiente é descontraído, bebe-se café, tudo como se fosse um reencontro de velhos amigos. Ou, melhor, é um reencontro de antigos camaradas de armas, pois "a 8200 é a unidade de cibersegurança de Israel e nós defendemos o Social Tech", explica Neta-li Meiri, organizadora do encontro. Expressão curiosa: neste mundo das startups israelitas o hebraico, que o movimento sionista tanto lutou para reviver, habituou-se a coexistir com o inglês. E por isso, cada ex-militar da 8200 apresenta em inglês o seu projeto social, em busca de investidores. Moshe Roth fala do Novotalk, que ajuda a combater a gaguez, e Yair Moneta dá a conhecer a Inspecto, que deteta se os alimentos estão contaminados. É provável que deste evento nasçam negócios. É o que promovem também plataformas como a SOSA em Telavive, que liga as startups com as multinacionais, ou a JVP em Jerusalém, que angaria fundos para investimento em novos projetos. Há ainda a Ourcrowd, que usa o financiamento via net para apoiar startups.

Mas se passar pelo exército, com a noção de risco que se ganha, está a ajudar a fazer de Israel um caso de sucesso económico, como conseguir que os palestinianos, ainda à procura de um Estado, e os vizinhos árabes mais pobres do que Israel, beneficiem e deixe de haver tanto conflito no Médio Oriente? "O sonho do meu pai era Israel garantir a paz e a segurança através da ciência", responde Chemi Peres. E garante que "há mais cooperação entre Israel e os palestinianos do que se possa pensar, até uma empresa que tem uma unidade de investigação e pesquisa na Cisjordânia". Porém, acrescenta, "a Autoridade Palestiniana, liderada por Mahmud Abbas, não quer a normalização económica antes de se alcançar um acordo de paz". O filho do antigo presidente israelita, falecido no ano passado com 93 anos, lamenta que hoje seja "pouca a vontade de mudar algo no Médio Oriente. Todos estão à espera".

Em Jerusalém, Telavive e Haifa

O DN viajou a convite da EIPA - Associação de Imprensa Europa-Israel

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