"Mutilação genital feminina pode acabar. A escravatura também era uma tradição"
"As jovens como eu não chegam aqui. Leem sobre nós. Mas não nos conhecem", começa por explicar Jaha Dukureh, Voz forte e segura, a fundadora da ONG Safe Hands for Girls nasceu na Gâmbia em 1989, sobreviveu a mutilação genital feminian e foi forçada a casar aos 15 anos. Esta manhã recebeu em Lisboa das mãos do presidente Marcelo Rebelo de Sousa o prémio Norte-Sul do Conselho da Europa ao lado de Damien Carême, eurodeputado francês e presidente da Câmara durante 18 anos da cidade de Grande-Synthe, onde implementou a ecologia social e se destacou no acolhimento a refugiados.
De frente para o hemiciclo do Parlamento português, Dukureh explica como a certa altura percebeu que só podia evitar que outras meninas passassem pelo mesmo que ela se erguesse a sua voz. "Percebi que só podia fazer algo contra isso falando sobre isso. Há milhões de outras jovens como eu. Sentimo-nos tristes ao ouvir as suas histórias. Mas o que fazemos? Por isso decidi dar uma voz e um rosto a estas jovens", explica diante de uma plateia emocionada.
E garante que tanto a mutilação genital feminina como os casamentos infantis forçados são "praticas que podem terminar. A escravatura também era uma tradição e acabou. Podemos acabar com a mutilação genital feminina".
Lembrando os milhares de meninas não tiveram a sua sorte - "Eu sobrevivi e estou aqui. Mas milhares morreram. Milhares foram forçadas a casar e morreram a dar à luz" - Dukureh garante que quando entra em salas como esta "não entro como Jaha Dukureh. Entro para representar milhares de meninas forçadas a casar e mutiladas" E sublinha: "Ao casar uma menina estamos a permitir que seja violada vezes e vezes sem conta". Uma frase forte que foi recebida com fortes aplausos da sala.
No palanque seguiu-se Damien Carême. O homem que presidiu à Câmara de Grande-Synthe entre 2001 e 2019 começou por prestar homenagem ao pai, autarca antes dele e falecido há sete anos, à mãe, que perdeu há quatro, aos filhos e à mulher, os mais prejudicados pelas ausências que a sua escolha de vida implica.
"A minha obsessão durante 18 anos foi que todos no meu município vivessem com dignidade, apesar de 33% dos lares terem dificuldades", começou por explicar. E citando Gandhi, explicou ser essencial um "olhar diferente sobre o mundo". Um mundo que "fez surgir os Bolsonaros, Salvinis, Órban, Kaczynski e outros Putin". Por isso, enquanto autarca trabalhou "com os habitantes para criar soluções". A aposta foi criar uma cidade autosustentável - com eco-pastoreio, jardns partilhados, transportes públicos gratuitos, cantinas com produtos 100% biológicos e locais.
Mas em 2015, quando a Norte de França se encheu de refugiados que tentavam chegar ao Reino Unido, Carême teve de enfrentar outro desafio. "Perante a indiferença das autoridades tive de pedir ajuda aos Médicos Sem Fronteiras para construir um campo de refugiados. Que vergonha em 2015, na Europa, ter de construir um campo de refugiados. Mas em Grande-Synthe ninguém vive na rua!", exclama.
Mas perante os receios naturais, sobretudo numa alture em que França foi alvo de vários atentados terroristas, "Explicámos aos residentes quem eram estas pessoas. Sírios primeiro depois iraquianos. Criámos ligações entre quem chegava e quem estava. Integrámos as crianças nas nossas escolas, jogámos futebol juntos. Cozinhámos e comemos juntos".
O discurso final ficou a cargo de Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente explicou como o mundo atravessa tempos difíceis em matéria de direitos humanos, "ameaçados por formas veladas e subtis de ditaduras", e criticou a indiferença do hemisfério Norte face ao Sul.
O presidente descreveu Portugal como "uma pátria de migrantes", onde existe "um consenso absoluto em matéria de defesa de direitos humanos"."Em Portugal há um consenso absoluto em matéria de defesa de direitos humanos, de defesa do papel do Conselho da Europa, de defesa dos direitos dos migrantes. Somos uma nação de migrantes, somos uma pátria de migrantes, dos que partem e dos que chegam", afirmou.
Em seguida, o chefe de Estado rejeitou a ideia de uma Europa homogénea, contrapondo que "não há europeus puros" e que "a Europa só é grande porque é um cruzamento de culturas e de civilizações, inumeráveis, incontáveis".
Na sua intervenção, Marcelo Rebelo de Sousa disse que este prémio "é um legado de uma Europa aberta, de uma Europa generosa, de uma Europa ecuménica - o contrário da Europa fechada, da Europa xenófoba, da Europa hipernacionalista, da Europa autocontemplativa" e de ser uma oportunidade para se fazer "o ponto da situação dos direitos humanos".
"Vivemos tempos difíceis, digamo-los sem eufemismos. No domínio da consagração, mas sobretudo da prática do respeito quotidiano dos direitos humanos, ameaçados por formas veladas e subtis de ditaduras, questionados por posições ou manifestações radicais ditas populistas, baseadas num discurso da intolerância, da recusa do outro, da não aceitação da diferença, do negação do pluralismo", considerou, sem nomear ninguém.
Depois, criticou "a indiferença com que tantas vezes o Norte olha para o Sul", e reiterou a mensagem de que o diálogo com o Sul "tem de ser uma prioridade para a Europa".
Dirigindo-se aos premiados, o Presidente da República apontou-os como personalidades que "se completam nas suas lutas" e que constituem "exemplos virados para o futuro".
Marcelo Rebelo de Sousa elogiou Damien Carême pela forma como se bateu "por uma França mais solidária para os imigrantes" e Jaha Mapenzi Dukureh pelo seu "exemplo na luta que mantém e que projeta contra práticas arcaicas e desprezíveis como a mutilação genital feminina e os casamentos precoces e forçados".
"Foi devido ao seu permanente empenho que a Gâmbia em 2016 prescreveu a prática mutilação genital feminina", salientou, manifestando a sua admiração pela "liderança e juventude" da ativista.