"Tudo quanto acontece em Portugal é importante para Espanha"

Marta Betanzos Roig, nascida nas Canárias mas com raízes na Galiza, é a primeira mulher a chefiar a Embaixada de Espanha. Ao DN fala das relações bilaterais, do carinho por Saramago, mas também da Catalunha.

Acabou de entregar credenciais de embaixadora de Espanha ao Presidente da República e tem certamente muito para falar sobre as relações bilaterais, mas vamos ter de abordar em primeiro lugar a Catalunha. O referendo separatista não autorizado foi há um ano e, mais uma vez, nesta semana, houve problemas nas ruas de Barcelona, muita agitação política. O problema do separatismo catalão tem solução a médio prazo no quadro da unidade espanhola?

A primeira reflexão que me vem à mente com esta pergunta - absolutamente lógica e pertinente - é que estamos a fazer a entrevista precisamente porque estou a assumir agora o meu posto, num país que é importante para Espanha e para a sua política externa; e, no entanto, quando deveríamos começar por falar do grande tema, quer dizer, das relações entre Espanha e Portugal, a atenção centra-se, lamentavelmente, no que está a acontecer na Catalunha. Obviamente, segunda-feira não foi um dia normal, porque foi um dia em que se pôde observar de novo a violência. Neste momento, creio que se está a demonstrar cada vez mais que a solução está nas mãos dos catalães. A sociedade catalã é uma sociedade dividida, muito fragmentada e, dentro da fragmentação, há muitos níveis de fragmentação, até chegar a um núcleo que, creio, é o que dá as posições mais beligerantes, no sentido de reivindicativas da independência, que também estão divididas entre si. Penso que foi o que ficou manifesto nesta semana. Não posso mais do que recordar aqui as palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, grande conhecedor da realidade catalã, reconhecendo as dificuldades de uma solução a curto prazo para o sentimento catalão.

Do ponto de vista de Portugal, as entidades portuguesas, nomeadamente o chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, sempre mostraram solidariedade com o Estado espanhol. Isso é importante para Espanha?

Fundamental. É importantíssimo porque creio que se há países que conhecem Espanha, pela proximidade e pela história, e pelas múltiplas afinidades, é Portugal. Portugal sempre teve isto bem presente e, além do mais, não deixou passar a oportunidade de o manifestar e de o expor. Creio que isso tem muito significado porque é uma forma de demonstrar o apoio e a partilha dos valores que não manifestamos só teoricamente e que também defendemos, quando chega o momento da verdade, a democracia, o Estado de direito e, sobretudo, a submissão à primazia da lei; acho que Portugal tem isso muito claro.

Espanha, tal como Portugal, passou por um período de muitas dificuldades económicas e, de uma forma ou de outra, teve a necessidade do apoio da Europa - Portugal mais do que Espanha; hoje em dia, Espanha está novamente no sentido do crescimento e desenvolvimento económico. Crê que o seu país está no bom caminho?

O caminho faz-se andando, todos os dias. Eu creio que avaliar o caminho pontualmente não é talvez muito acertado, há que olhar para trás para saber de onde vimos e ter uma perspetiva, uma perspetiva de futuro, não muito longínquo, mas uma perspetiva e, nesta, não há um só caminho, mas muitos. A globalidade faz-nos estar interconectados pelo que não há um só caminho, há que confluir com o caminho de vários. Como é que se está a comportar Espanha economicamente? Penso que razoavelmente bem tendo em que conta que vimos de uma situação muito difícil. Mas, em todo o caso, os números estão aí e não são números de fake news, são números verdadeiros que falam de um crescimento económico e que falam de recuperação. O caso de Portugal é exatamente igual ou mais ainda, porque não é por acaso que Portugal ocupa a atenção e o interesse de muitos meios de comunicação, não só porque seja um país que está na moda, mas sim porque é um país que demonstrou estar a saber fazer as coisas bem feitas e que conseguiu uma apreciação da população muito positiva; há apoio e reconhecimento deste processo tão positivo. Creio que em Espanha também.

Na sua ideia, o sucesso de Portugal e de Espanha estão totalmente ligados? Para nós é óbvio porque se Espanha estiver mal, um país pequeno que tem Espanha como principal parceiro não fica bem; para Espanha, Portugal pesa menos, mas também é importante que haja sucesso económico aqui?

O que é fundamental é que a estabilidade e o crescimento gerem uma tal sensação de confiança e de credibilidade nas políticas dos respetivos governos que tenha um efeito de nos reforçar a crença em nós próprios, mas também no plano externo. Se os dois países, que além do mais são vizinhos, tiverem um bom ou muito bom desempenho, não apenas se reafirmam a si próprios como ao mesmo tempo têm a capacidade de comunicar e expor interesses e posições com muito mais solidez. Penso que o êxito é uma coisa que faz reforçar as nossas relações.

Fala-se muito de economia, mas há muito mais do que economia nas relações, por exemplo, vai haver dentro de dias uma homenagem conjunta a José Saramago em Lanzarote, por ocasião dos 20 anos do Nobel, com os dois primeiros-ministros, Costa e Pedro Sánchez. Isto significa que é possível os países compartilharem cultura, figuras, personalidades, sentirem um orgulho ibérico?

A figura de Saramago é muito conhecida em Espanha, é conhecida e muito apreciada e, além de ser muito apreciada, creio que é bastante entendida. Saramago em Espanha é um pouco de todos. Assim como há nobéis que foi preciso fazer um esforço para os apresentar no nosso meio cultural e criativo, não foi esse o caso de Saramago. Para mim é um exemplo claro de que tudo quanto acontece em Portugal é importante para Espanha. Há palavras que neste momento são um pouco tabus, por exemplo, o iberismo; já percebi que é melhor evitar mencionar essa palavra. Espero que no futuro assim não aconteça, já que temos uma comunidade com semelhanças linguísticas, históricas, interesses comuns e êxitos comuns, e a constatação de que são muito mais as coisas que nos unem do que as que nos separam. Isso faz que nós, Espanha e Portugal, Portugal e Espanha, tenhamos motivos suficientes para caminhar juntos em muitíssimos contextos. A União Europeia é uma demonstração disso, com a UE saímos reforçados, não só como países individuais, mas mutuamente reforçados.

O europeísmo ainda é popular em Espanha?

Absolutamente, Espanha é dos países mais europeístas que há. Apesar da crise, apesar das medidas restritivas que vivemos até há pouco tempo em muitos países, principalmente naqueles que, como nós, tinham problemas de equilíbrio orçamental, Espanha nunca deixou em momento algum de ser um país europeísta. Portanto, creio que um dos exemplos em que vemos Espanha e Portugal reforçados é nesse contexto da União Europeia. Como este exemplo há outros, no âmbito cultural, por exemplo. Claro que uma das minhas ambições é que em Espanha haja muitos mais Saramagos conhecidos e apreciados.

Dentro de uns meses, vai haver uma cimeira entre Portugal e Espanha e, a senhora, como embaixadora, terá um papel na preparação. Há algum tema mais sensível nas relações entre os dois países - há uns meses falou-se muito da questão ambiental?

É um tema sensível, mas eu não utilizaria a palavra sensível em termos negativos. Obviamente é um tema que, como todos os temas de carácter transfronteiriço, tem uma repercussão imediata, nas zonas fronteiriças, nos habitantes dessas zonas, na economia e no meio ambiente, claro. Classificar um tema como sensível não quer dizer que seja negativo ou difícil, simplesmente que é importante. É importante porque chega diretamente às pessoas.

E desse ponto de vista?

Desse ponto de vista, claro que tudo o que é meio ambiente é importante. Como sabemos, para o meio ambiente não há fronteiras e tudo tem repercussão mais ou menos imediata. Dito isto, creio que temos mecanismos que cheguem para que os temas sensíveis possam ser abordados e tratados condignamente. Os acordos sobre as bacias hidrográficas, o Tratado de Albufeira, o Tratado de Valência, servem para canalizar as relações institucionais de modo a que estas possam abordar de maneira suficientemente profunda os temas sensíveis. E a cimeira é uma demonstração disso. Espanha e Portugal têm trabalhado de modo continuado - tirando algumas interrupções esporádicas - nesses assuntos.

Quando se fala da questão ambiental estamos a falar da central nuclear de Almaraz que é na Extremadura, mas a Extremadura e o Alentejo têm uma relação muito boa. É possível também que além da relação Estado a Estado, Portugal e Espanha tenham interesse nestas relações entre regiões, que é uma forma também de estreitar os laços entre os dois países. Acha isso positivo?

Sim, absolutamente. Penso que uma coisa não exclui a outra, pelo contrário devem ser complementares; é fundamental que haja uma comunicação e que haja mecanismos para que as propostas que surgem a nível local, regional ou, no nosso caso, autonómico, tenham um caminho de um lado para o outro.

Por exemplo, na Extremadura há milhares de jovens que estão a aprender português, porque lhes interessa a relação com Portugal, mais do que em outras partes de Espanha que são mais longínquas.

Sim, sim.

É algo que o Estado espanhol incentiva?

Creio que o que o Estado espanhol incentiva é que os jovens espanhóis tenham cada vez mais educação e uma educação que os prepare mais para o mundo atual e se querem aprender português, força. Eu entendo muito bem que nas regiões mais fronteiriças tenham um particular interesse pela cultura em Portugal e vice-versa. É muito bom que haja um intercâmbio não apenas entre estudantes com o Erasmus luso-espanhol, mas também na formação profissional, num turismo, digamos, preferencial. Eu sobretudo gostaria - e esta é uma ambição mais pessoal, mas também profissional - que Portugal estivesse mais presente em Espanha.

Mais presente de que forma?

Mais presença na cultura, mais presença no trabalho intelectual, na investigação tecnológica, universitária, que houvesse uma maior ligação; provavelmente ela existe e sou eu que não a conheço muito. Eu gostaria que fosse uma realidade e que o trabalho conjunto abarcasse muitíssimo mais áreas.

A senhora, como embaixadora, tem algumas limitações no que pode comentar a nível mais político, mas é apenas a terceira vez que há primeiros-ministros socialistas em simultâneo nos dois países, primeiro foi com Mário Soares e Felipe González, depois Zapatero e Sócrates e agora António Costa com Pedro Sánchez e penso que havia até uma relação pessoal anterior a serem os dois primeiros-ministros. A parte pessoal, a parte da existência de uma coincidência ideológica, é importante numa cimeira ou é apenas um pormenor e a cimeira será sempre importante independentemente disto?

Penso que há unicamente uma diferença: é mais agradável com os sinais de empatia, de amizade e confiança, mas cimeiras são sempre cimeiras e têm de se manter porque são, digamos, a plataforma onde se reveem periodicamente todos os temas que integram as relações bilaterais, e reveem-se não só pontualmente, nesse momento, mas dá-se-lhes seguimento ao longo do ano. E são fundamentais porque, além do mais, fazem que os níveis intermédios - não só exclusivamente a nível de governo -, mas também em todos os âmbitos da administração setorial, ministério a ministério e, dentro de cada ministério, os respetivos responsáveis tenham uma possibilidade permanente de continuar a aprofundar os assuntos; e onde houver vazios, porque os há, acabar com eles. Por isso penso que as cimeiras, ou cumbres como nós dizemos - noutros países têm outras denominações, mas não há país que tenha a ambição de aprofundar e diversificar as relações bilaterais que não tenha constituído um mecanismo deste tipo -, são um modelo muito bom porque implica uma relação estratégica.

O tema das migrações vai estar na cimeira? É um tema muito importante sobretudo para Espanha, porque nós em Portugal não sentimos o problema das pateras, essas embarcações improvisadas que chegam à costa andaluza. A senhora foi embaixadora em países dessa região, nomeadamente no Mali. Foi também diplomata na Líbia, por isso tem uma experiência própria deste fenómeno. Portugal tem aqui algum papel para ajudar Espanha? A solução tem de ser europeia? Que pensa das migrações ilegais?

Desde logo, a solução tem de ser europeia. O modelo que a Espanha tem tido é considerado na União Europeia como um modelo bastante exemplar e do qual se podem extrair alguns ensinamentos. Eu vivi-o pessoalmente por isso conheço aquilo em que consiste e as dificuldades que derivam deste problema migratório, mas é um modelo que tem resultado relativamente bem na luta contra a migração. Este era o modelo nacional até agora. Mas é necessário encontrar um modelo coletivo, a nível europeu. Estão a ser postas muitas propostas na mesa: controlo das fronteiras, dar mais competência à Frontex, criar uma agência europeia para as migrações, modificar o tratado de Dublin, o regime de asilo e refúgio... enfim, existem muitas propostas e, desde logo, esse modelo se chegar a progredir. Não o teremos sobre a mesa imediatamente mas será objeto de vários debates. Mas sei, e não sou só eu mas todas as pessoas que veem a realidade, que nenhum país poderá sozinho fazer frente à crise migratória.

É evidente que nenhum país poderia fazer frente a esta crise migratória sozinho...

A pressão migratória, vimo-la na Grécia, na Itália, vemo-la em Espanha de modo recorrente e vimo-la também nos países do norte da Europa com grandes movimentos de populações derivados dos conflitos, da situação síria, afegã, etc., e onde praticamente tiveram uma reação muito pouco coordenada gerando-se, como consequência, um efeito dominó que não foi bom para ninguém.

A senhora viu o outro lado, por exemplo, quando foi embaixadora no Mali. As pessoas, os jovens, olham para a Europa como o eldorado, mas têm consciência do que realmente é a Europa, das dificuldades? Há possibilidades de desenvolver estes países para que não haja esta força migratória tão grande?

Sim.

Qual é a sua experiência? As pessoas olhavam para si como uma privilegiada que vinha do primeiro mundo, do eldorado europeu?

Existem muitas contradições que se sobrepõem. Fazer frente a estas contradições sem recursos ou apelo é difícil. Não me deixava de fazer impressão quando no caminho até casa passava pelos bairros dos arredores. Em plena escuridão via as pessoas a viver em casinhas que nem casinhas eram, eram abrigos sem luz, e dei com um gerador que estava a alimentar um pequeno televisor onde a comunidade, as crianças, as cabras, bem todos, estavam a ver Dallas ou uma coisa assim. São realidades tão contrapostas que não percebemos como é que convivem.

E isso é uma forma pela qual as pessoas alimentam a ideia de que tudo é Dallas.

Claro.

A senhora é a primeira mulher embaixadora de Espanha em Portugal. Em Espanha, sobretudo quando o Partido Socialista está no poder, há uma estratégia de igualdade muito forte. Com Zapatero claramente, e agora também com Sánchez. A senhora defende que para que as mulheres progridam na nossa sociedade ainda são necessárias quotas?

Dei muitas voltas a essa pergunta, muitíssimas. E dói reconhecer que não tenho uma resposta. Não gosto delas. Preferia que não existissem. Mas percebo que em determinadas áreas de trabalho e em determinados níveis de educação sejam possivelmente necessárias. Para mim há uma coisa que é bastante significativa e essa é que na escola não há quotas, e não sei qual é a taxa de êxito feminina em comparação com a masculina. Mas penso que nunca foram precisas quotas para que as raparigas tivessem boas notas. O que se tem de fazer é que simplesmente tenham uma educação aberta e acessível. Penso que às vezes não é tanto uma questão de quotas e sim uma questão de ter um sistema educativo e de formação que não elimine previamente certos setores.

Em termos da diplomacia espanhola, há muitas mulheres embaixadoras. A senhora não é uma exceção na diplomacia espanhola hoje em dia...

Não, não sou uma exceção. Há muitas mulheres que são embaixadoras. Eu já o sou pela terceira vez, portanto não posso dizer que tenha sido uma exceção, mas é certo que fazem falta mais mulheres, mas não só mais mulheres embaixadoras mas mais mulheres em embaixadas importantes. Penso que é disso que se trata, e mais mulheres em cargos de decisão; de decisão em matéria de estratégia política e não só em cargos diplomáticos. Mas sim em cargos diplomáticos de relevância com capacidade de deixar uma marca. Isto está a fazer-se e já tem vindo a fazer-se, mas penso que se tem de continuar a dar impulso. Há cada vez mais mulheres na profissão e consta que são igualmente bem formadas e capazes como os homens, mas ainda não há igualdade. Estamos a caminhar para lá, é muito bom o que está a acontecer mas ainda há caminho a percorrer. Eu gostaria que me valorizassem não como mulher embaixadora, mas como profissional. Da mesma maneira que não se valoriza um homem porque é homem e sim porque é profissional. Gostaria que fosse a mesma coisa.

A senhora embaixadora apresentou credenciais já e agora tem uma missão de anos pela frente. Há mais alguma coisa que queira dizer sobre Portugal e Espanha?

Sim. A mim parece-me que há uma realidade da qual se deve tirar partido, ter consciência da importância e de que às vezes as coisas se enquadram de uma maneira muito benéfica. Temos chefes de Estado e de governo que têm uma relação estupenda e, para além disso, temos dois países cujas economias estão a evoluir positivamente. Temos também dois países que têm os tecidos empresarial, económico e social cada vez mais interligados. Temos uma avalanche enorme de turistas espanhóis em Portugal. Temos toda uma tendência muito positiva. E, para além disso, temos muitos desafios em comum que não são meramente retóricos, temo-los ao virar da esquina, como arranjar uma maneira de contribuir e desenhar um modelo europeu que nos convença a todos. E aí, devido a todas as afinidades que temos, Espanha e Portugal devem ambicionar ter essa capacidade. Como há tantas coisas boas a nosso favor, creio que temos de aproveitar esse impulso.

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