Sofia Dinger estreia "Uma canção para ouvir-te chegar" no Maria Matos em Lisboa
A partir de uma ausência física de um "pedaço" de si própria e de uma necessidade de consolo com que se confrontou após a morte do pai, em abril de 2017, Sofia Dinger concebeu um espetáculo que vai interpretar agora no Teatro Municipal Maria Matos, integrado na programação do Festival Alkantara, que começou hoje, disse a própria à agência Lusa.
Um espetáculo que "surgiu de uma necessidade de consolo", que construiu como uma música ainda que os acordes sejam os do chilrear das aves, o barulho do choro, do soluçar, do vento ou da projeção de imagens.
"Porque, para mim, todos estes sons são música", sublinhou, realçando a importância da colaboração artística que o saxofonista Rodrigo Amado teve na realização desta composição assim como a de Tiago Cerqueira no desenho de som.
Neste trabalho realizado ao longo de "quase ano e meio", vividos entre Amesterdão e Lisboa, Sofia Dinger tem tentado fazer o luto do pai num percurso em que não receia os "fantasmas que a habitam e com os quais continua a querer brincar", referiu.
"Uma canção para ouvir-te chegar" assenta muito numa ideia de "fantasmagoria, não tanto dos fantasmas que assustam, mas muito naqueles com quem [se quer] continuar a brincar", sublinhou a atriz.
Estratégias "para estar perto dos que ama", mesmo sem os ter fisicamente, porque a "melhor forma de homenagear os ausentes é continuarmos a celebrar vida", argumentou.
Por isso, e apesar de o ter idealizado num percurso de luto e ausência física, este espetáculo não tem a ver com tristeza, disse.
"Tem a ver com o luto, mas é pela celebração da vida. Porque nas travessias há sempre alegria, mas não quero fazer de conta que perdi uma pessoa que nunca vai deixar de fazer parte de mim", invocou.
Isto porque a melhor forma de uma pessoa se libertar "de fantasmas é responder ao seu chamamento".
Um pequeno piano, dois projetores, um bombo e uma pequena resma de livros compõem o cenário da peça, montado à esquerda baixa do palco do Teatro Maria Matos, em torno do qual está uma pequena plateia.
Do escuro, irrompe Sofia Dinger, munida de um instrumento de sopro semelhante a uma ocarina, ao qual chama "assobio de pássaros" e que vai manuseando ao mesmo tempo que vai ondulando o corpo ao mesmo tempo que emite sons de dor e de alegria.
"Esta canção costumava ser/ Esta canção vai ser / Estás Aí?" são alguns dos versos da canção que vai interpretando.
Uma canção em que assume "Estar na vida presa por ganchos", para pouco depois dizer "Não tenhas medo, meu amor" ou "Vem e faz-me feliz".
Uma canção para a qual convocou a presença da amiga Rimah Jabr, uma dramaturga e encenadora palestiniana exilada no Canadá, cocriadora do espetáculo, autora do texto que o cenógrafo Jozef Wouters, estabelecido em Bruxelas, estreará, no dia 31, no S. Luiz Teatro Municipal, também no âmbito do Alkantara.
Etty Hillesum, uma jovem judia cujos diários e cartas descrevem a vida em Amesterdão durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial, foi também convocada por Sofia Dinger para este espetáculo.
Porque foi através dos escritos e dos percursos desta jovem nascida nos Países Baixos em 1914 e morta em Auschwitz, em 1943, que Sofia Dinger "mapeou" a vivência na capital holandesa para entrar nela neste último ano e meio.
"Porque os escritos de Etty são de consolo. Venceu pela Humanidade, pela riqueza interior", disse, parafraseando a jovem escritora holandesa: "Devemos viver o mais convincentemente possível para que os que ficam possam continuar a nossa vida".
Etty e Rimah foram assim as companhias de Sofia Dinger num trabalho em que num diálogo fictício com o pai lhe confessa: "Estou de luto pela minha vida".
Com desenho de luz de Daniel Worm, o espetáculo estreia-se na quinta-feira, às 21:30, e repete na sexta e no sábado, às 19:00.
Numa altura em que celebra 25 anos, o festival Alkantara, a decorrer até 09 de junho, em Lisboa, tem um programa de 22 espetáculos, dez dos quais são estreias mundiais.