Turismo, segurança, espaços verdes. O que tem Belém e falta à Ajuda?

São vizinhos e ficam na zona ocidental de Lisboa. Mas basta percorrer as ruas para ver as diferenças, desde logo na habitação, mais velha e degradada na Ajuda. Há jardins em Belém e a população tem-se renovado. Uns queixam-se dos bairros sociais; outros, dos turistas.
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Belém é muitas vezes notícia pelo património e funerais de celebridades. Ajuda esteve recentemente nos noticiários pelo apedrejamento a um autocarro. Freguesias vizinhas que se revelam muitas diferentes, desde logo, quanto à segurança. Os da Ajuda sentem-se inseguros; os de Belém seguríssimos. Uns queixam-se dos bairros sociais; os outros, dos turistas. Mas quem lá vive, não mudaria.

Os dois barros ficam na zona ocidental de Lisboa, com Monsanto nas costas e o rio Tejo aos pés. Basta percorrer as ruas para ver as diferenças, desde logo pelo tipo de habitação, mais velha e degradada na Ajuda (ver mapa). Há mais espaços verdes em Belém, cuja população se tem renovado e tem mais poder de compra, a avaliar pelo comércio e as vivendas. Muito mais luxuosas que as moradias do bairro da GNR, na Ajuda. Fernanda e Filomena representam as duas realidades.

Fernanda Paula, 73 anos, trabalhou no Estabelecimento Prisional do Linhó, foi para a Ajuda com 8 anos. Os pais migraram do campo para a cidade, para viver numa casa na Quinta do Gaspar - a tia era caseira -, autoconstrução que proliferava na altura em Lisboa. Hoje habita num prédio em frente e vai sempre à casa onde cresceu. Vê se está em ordem e cumprimenta a vizinha, Pureza Bastos, de 87 anos.

Saco na mão e boa disposição, tem resposta na ponta da língua. "Este bairro já foi 5 estrelas, agora tem 4 ou 3. Vieram pessoas de outras partes, deixou de ser uma família, não há aquela entreajuda, mas, de resto, não tenho razões de queixa."

Tem "autocarros, o comércio à porta, só é pena terem fechado as mercearias". Sente-se segura: "Nunca tive problemas". Pureza, a vizinha de infância, completa: "Está cada um na sua casa, ninguém se mete com ninguém". Nasceu em Vale de Cambra (Porto) e veio para Lisboa com 19 anos. "Quando me prenderam", uma metáfora para dizer que se casou.

Filomena Rios, 70 anos, geóloga, construiu a vida profissional em Angola. Há dez anos escolheu Belém para viver. Habita numa vivenda e passeia a Leba, um cão de água. "É muito calmo, vive-se na cidade com um ambiente de campo, tem muitos jardins. Vivia em Algés, que tem muitos prédios, as ruas muito sujas, aqui não, é tudo limpo e sossegado. Estamos numa zona privilegiada e com o rio ao lado."

Percebe por que se sentem tão seguros. "Há muita segurança, as embaixadas e, também, casas que têm segurança. Sabemos que há um segurança atrás dos portões."

Investigadores da Universidade Nova, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, estudaram o sentimento de segurança na capital e nas suas 24 freguesias. O relatório final foi publicado em agosto - O sentimento de segurança e a vitimação na cidade de Lisboa.

Concluíram que os moradores da Ajuda são os que se sentem mais inseguros na cidade e estão nos três piores no que diz respeito ao sentimento de insegurança à noite em casa e na zona onde vivem. Já em Belém ninguém diz sentir-se inseguro em qualquer dos três indicadores.

Maria Rosário Jorge é a coordenadora do estudo e, apesar de sublinhar que precisariam de mais dados sobre cada bairro, não estranha o facto de os residentes da Ajuda, assim como no Beato, Santa Maria Maior e São Vicente, revelarem sentimentos de "muita insegurança".

"Explica-se pelo resultado da vitimação e pelo perfil dos moradores. Em regra, as freguesias onde há mais sentimento de insegurança são onde há mais vitimação. Ajuda tem a maior taxa de vitimação [25,6 %]". Em Belém, apenas 2,3 % dos entrevistados disseram ter sofrido um roubo/furto, assalto e outras agressões. A equipa não perguntou onde ocorreram esses crimes.

E existem fatores sociodemográficos. "As freguesias com sentimentos de maior insegurança têm mais idosos, desemprego, mais dificuldades socioeconómicas, rendimentos e escolaridade mais baixos", salienta a socióloga.

A freguesia vizinha é o oposto. "Às vezes, territórios contíguos têm populações muito diferentes, é o caso de Belém. É uma população mais jovem, veem menos televisão - quem vê mais e dependendo dos canais sente maior insegurança -, têm menos preocupação com a segurança", diz Rosário Jorge.

A partir das respostas, construíram três tipos de perfis e Belém corresponde ao perfil 1, os que se sentem muito seguros e não sofreram vitimação ou tem valores baixos. Ajuda corresponde ao perfil 2, mais vítimas e mais inseguros.

"As freguesias onde mais se destaca o primeiro perfil de inquiridos (face a uma média de 77,3% para a amostra da cidade) são Belém, Campolide, São Domingos de Benfica e Campo de Ourique. Em contrapartida, menores proporções de inquiridos com este perfil foram identificadas na Ajuda e no Beato. Essas freguesias destacam-se pelo valor muito elevado de inquiridos correspondentes ao perfil 2 (o perfil onde se incluem as vítimas), com 25,6% e 23,5% face aos 7,3% da amostra total", refere o estudo.

Realizaram 1500 entrevistas em 2019, "amostra representativa da população residente em Lisboa ", das quais 43 na Ajuda e 43 em Belém. Oitenta por cento declararam-se seguros na cidade. Dados muito diferentes de um estudo idêntico realizado em 2000, em que 62% dos lisboetas se sentiam inseguros. Em 2019, apenas 20% o referiram. A mesma diferença em relação à segurança sentida na área de residências - os inseguros desceram de 34,1% para 17,5%.


O padre Francisco Santos está na Ajuda há 49 anos (tem 84). "A Ajuda é um conjunto de bairros, entre os quais dois sociais, o do Casalinho e o 2 de Maio. Este último tem sido conotado nos últimos anos com o negócio da droga. É marcada por uma população proletária, muitos vindos da província para trabalhar nas fábricas, gente pobre e que hoje em dia está muito envelhecida. Há muitos anos que não se fazem casas, os filhos tiveram de ir para fora. Ficaram os mais antigos que agora têm problemas sérios, como a solidão, o desamparo."

Os idosos são a preocupação da paróquia. Tem um lar, um centro de dia, apoio domiciliário, além de uma creche e jardim-de-infância. Servem cerca de 400 refeições por dia. "Há um ou dois idosos por casa, têm muita falta de apoio social. Há 49 anos, a população do bairro era à volta de 25 mil pessoas."

O padre Francisco não sente que seja uma zona insegura, mas percebe que os moradores o sintam. "Estão isolados. Há algum tempo, com a venda de droga, com os toxicodependentes, houve notícia de assaltos, mas a polícia tem dado conta das situações. Tenho ouvido menos relatos ultimamente."

A igreja fica na Boa-Hora, o centro da freguesia, e em baixo é o mercado. Muitos vendedores ainda se lembram da venda na rua e de andarem a fugir à polícia. Hoje têm bancas cobertas, o que falta "é dinheiro para os clientes comprarem".

Ana Pires, 63 anos, pertence à 3.ª geração de vendedores. Tem fruta e legumes, na banca "Anita do caracol". Nascida e criada no bairro, tem sete irmãos. "Antigamente, era diferente. No verão, dormíamos na rua. Hoje é mais complicado, vieram outras pessoas e há sempre quem estrague o bairro. O problema é não terem nada para fazer."

Não que alguma vez tenha tido problemas de segurança. "Não temos nada que dizer desta comunidade, há duas ou três ovelhas ranhosas, a polícia sabe quem são."

É casada com Carlos Pires, 67 anos, um transmontano que chegou com 8 anos. "Começámos a namorar tinha eu 14 e ele 17, casámos há 46 anos, temos um filho de 42", diz a Ana.

Já Alexandra Santos não é do bairro, mas vai para lá desde que nasceu. "Há uma foto minha em bebé do Diário de Notícias em que estou deitadinha numa caixa de peixe", conta a peixeira, de 53 anos. Tem o marido com ela, também o filho nos dias de folga deste. Moram no Seixal e estão à meia-noite no mercado abastecedor, em Loures. Chegam ao mercado por volta das 04.00 e este só abre às 06.00. Ficam na carrinha a dormir até que abra. "Nunca tive problemas - às vezes tenho problemas é com os clientes".


Sandro Soares, 22 anos, está a tirar o mestrado em Gestão do Território. Os pais mudaram-se de Alcântara para a Ajuda há cinco anos. Passeia o cão junto ao Palácio da Ajuda.


"Ajuda é marcada por ter dois bairros sociais, tem o Palácio e o Jardim Botânico, podia ser melhor a nível de transportes. Do ponto de social, não vejo grandes problemas", sintetiza. Mas percebe que possam existir sentimentos de insegurança. "Pode ter a ver com os bairros sociais, com a desconfiança em relação à etnia cigana, pode ser complicado para a população mais idosa."

Aproxima-se a hora do almoço e há pouca gente nas ruas do Bairro 2 de Maio. Trindade Curto, 80 anos, vive ali desde que foi ocupado, sete dias depois do 25 de Abril de 1974. Os de fora acusam que "é um mercado da droga"; que até "a polícia não gosta de lá entrar".

Trindade contrapõe. "Vive-se bem, há o bom e o mau, como em todo o lado. Aqui é um bocadinho pior, mas nunca tive problemas. Sinto-me segura, aqui ou noutra zona de Lisboa. E saía de noite para ir trabalhar."

Fez limpezas, começava às 06.00 no Palácio da Ajuda e acabava na Escola de Hotelaria do Estoril. Teve quatro filhos (estão vivos dois), tem netos e bisnetos.

A etnia cigana habita maioritariamente nos bairros 2 de Maio e do Casalinho. Negam que exista problemas, eventualmente só à noite, com os jovens que podem gerar confusão. "Deito-me cedo, não sei o que acontece à noite. Sei que as pessoas se dão bem, o que mais gosto no bairro é da união, da irmandade", assegura Paulo Carmo, 58 anos.

Não quer foto, tal como Isabel Franco, 42 anos, há 26 no bairro, doméstica, três filhos e uma neta. "É um bairro calmo, não é muito grande. Nos bairros grandes há mais confusão, aqui não."

Ana Jorge, 22 anos, frequenta o mestrado de Ciências Laborais e Relações do Trabalho e tirou Gestão de Recursos Humanos na Universidade de Lisboa, que fica ao lado do 2 de Maio. Acabou por ser uma das suas residentes. Ela e duas amigas alugaram um T3 (gastam 300 euros cada uma por mês, com despesas). Os pais de Ana, que moram em Torres Vedras, ficaram preocupados com a mudança. Ela tranquilizou-os. "Nunca vi nada de preocupante, os meus colegas dizem que já foi pior. Gosto muito dos meus vizinhos, são muito simpáticos."

O Bairro do Casalinho fica depois do descampado em direção ao rio Tejo. Blocos e blocos de cimento, sem um espaço verde por perto. Percebem-se diferentes fases de ocupação: primeiro, os camponeses que trouxeram a aldeia para as casas; depois a etnia cigana; mais recentemente os imigrantes.

Maria Luísa Romão, 57 anos, coberta de preto, vive no bairro há 23 anos. "Gosto de viver aqui. Os meus dois filhos vivem comigo, tenho dois netos. O pior é não haver espaços verdes para as crianças."

Continuando a descer pelo Casalinho, quem apanha transportes públicos recorda o apedrejamento do autocarro há pouco mais de uma semana. Há dúvidas sobre quem o fez. "Há gente muito boa no bairro, mas também há gente que não interessa."

Jorge Marques, presidente da Junta de Freguesia da Ajuda, estranha o sentimento de insegurança, contrapondo o estudo com as "poucas ocorrências policiais". Mas admite que existam problemas e têm a ver com os bairros sociais, que necessitam de uma intervenção conjunta das entidades envolvidas.

"Com os bairros sociais, resolveram o problema do alojamento, mas não os outros: falta a integração. Há um problema de saúde mental grave, mas cada um está a trabalhar na sua instituição. Era preciso uma equipa de proximidade e já nos disponibilizámos. Somos quem melhor conhece o território", defende.

O policiamento foi reforçado após o apedrejamento, o autarca considera que não é suficiente. "O território junto aos bairros é monofuncional, só tem estudantes, professores e um descampado. Precisa de ser reforçado com outro tipo de utilização, nomeadamente, habitação."

No lado oposto aos bairros sociais e, em direção ao Alto de Santo Amaro e a Belém, vive Carlos de Oliveira, 51 anos, motorista TVDE (transporte de passageiros). Habita na Ajuda há 30 anos, com interregnos quando emigrou. Lê o bairro pelo seu prédio. "São oito apartamentos e está quase tudo vazio. É preciso renovação." Gosta do local: "É muito central, perto de tudo, é seguro e ainda não se paga estacionamento."


A reorganização administrativa de 2012 juntou Santa Maria de Belém e São Francisco Xavier na Freguesia de Belém. "É uma população muito diversificada e com diferentes estratos sociais, desde pessoas ligadas à antiga zona de pesca, até estratos sociais muito mais elevados, com as embaixadas e grandes moradias. Talvez seja um dos locais onde é mais elevado o custo da habitação. O Bairro do Restelo foi construído como bairro económico nos Anos 40 do século passado, mas hoje nada tem de económico. Tem havido uma renovação, os proprietários faleceram e vieram novas famílias, mais jovens. Há muitas crianças, ainda que haja uma população idosa considerável", explica o padre Zé Manuel Ferreira, há 28 anos na paróquia.

Não sente necessidade de a paróquia promover equipamentos sociais - o padre justifica que há vários tipos de oferta, nomeadamente privada. Têm apenas um Centro de Convívio para idosos e prestam apoio domiciliário a 40 pessoas. Não têm razões de insegurança, no entanto, durante a pandemia houve notícia de assaltos de dia e carros vandalizados à noite. "Pode ter sido pontual, não há um clima de grande preocupação."

Isabel Mesquita, 60 anos, e Fernanda Pereira, 57, trabalham na Century 21, confirmam que é uma zona cara. Um T3 custa entre 500 mil e 600 mil euros. O que é que o justifica? "Toda a envolvência de espaços verdes, os monumentos, é uma zona muito tranquila, não tem comércio em excesso, tem todo o tipo de escolas, públicas e privadas. É ainda um bairro familiar e há muita procura por parte da nova geração e de estrangeiros."

Margarida Cordeiro, 23 anos, vive há oito anos em Caselas com os pais. Está a tirar o mestrado em Eventos e desloca-se de autocarro (a outra opção é o comboio). "Há poucos transportes, não há metro, levo uma hora e meia até à faculdade, de carro seriam 30 minutos." Lancha na esplanada de um café que é conhecido pelos croissants - as mesas estão ocupadas, há velhos e novos por ali, crianças a brincar no jardim.

Partilha a mesa com Pedro Abrantes, 24 anos, que estuda para programador e vive no Alto do Restelo, nos prédios da EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa). Nasceu na Ajuda e os pais mudaram para Belém. "É tranquilo, não tem a confusão de bairros, não há grupos nem escolas problemáticas. É muito seguro. Aliás, Portugal é um país muito seguro comparativamente aos outros."

Margarida concorda: "É um bairro muito calmo, com muitas famílias. A partir do momento que entro no Restelo já me sinto segura."

"Não há confusão porque estão lá para cima, na zona das vivendas, aqui não posso dizer o mesmo", protesta José Parente, 75 anos, ex-bancário. Vive num prédio na Rua de Pedrouços, muito trânsito e turistas. "Há dois períodos, antes e depois dos turistas. Antes, era ótimo, as pessoas viviam felizes e contentes. Agora, os navios-cruzeiro trazem 3 a 4 mil passageiros, é malta do Facebook. O que lhes interesse é tirar fotografias à frente dos monumentos, nem os apreciam. E é uma confusão. Sei que o turismo resolveu o problema de reabilitação das casas em Lisboa, mas é um exagero. Os turistas deviam pagar uma taxa para entrar em sítios como este. Quem paga é quem cá vive, está tudo descaracterizado."

ceuneves@dn.pt

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