O encantador de ovelhas
Uma carrinha, branca, com umas letras meio apagadas na lateral, vai subindo até ao sítio onde estão as ovelhas já presas num redil. Ao chegar, Marty e Susana O"Connell vão começando a montar os equipamentos para a tosquia, enquanto o filho Rowan, com 6 anos, pega num tablet e se afasta da operação. Para ele nada disto é novidade, mas para quem assiste pela primeira vez impressiona. Nas incursões pelo interior do país fomos escutando relatos sobre um neozelandês que vivia no nosso país e se dedicava à tosquia de ovelhas. Sabíamos que tinha uma técnica muito distinta dos tosquiadores nacionais e vivia em Marvão. Por casualidade encontrámo-nos na Herdade da Ribeira de Borba onde tínhamos entrevistado a Paula Taborda, publicada a 5 de julho. Com 53 anos, o neozelandês vai montando um estrado e depois uma espécie de poste que suporta um motor e uma mola de onde desce um arnês.
É aqui que começa o seu trabalho. A mulher, Susana, portuguesa originária de Paço de Arcos, vai montando outro estrado ao lado, que limpa cuidadosamente e prepara para receber a lã. Ela vai retirar as impurezas maiores da lã, como pequenos ramos ou folhas, e certifica-se de que existe separação entre as distintas qualidades de lã. A ideia é aproveitar a maior quantidade possível. Os animais nervosos são retirados do redil pelos homens da herdade mas, quando chegam à mão de Marty, acalmam subitamente. O neozelandês tinha, entretanto, calçado os seus sapatos de feltro, que usa para não sujar a lã. Agora senta as ovelhas, segurando-lhes gentilmente a cabeça e encostando-as junto às suas pernas. À medida que vai cortando, vai conversando com os animais e flutuando, suspenso pelo arnês, retirando todo o casaco de lã, praticamente numa peça inteira. Nota-se que está extremamente focado em retirar o máximo de lã sem ferir o animal. Quando as liberta, as ovelhas dão um salto no ar e afastam-se do local, algumas para irem ter com as crias que assistem à cena: "Tentamos sempre fazer a tosquia às mães primeiro, porque estão em stress por se verem afastadas das crias", explica Susana, enquanto rapidamente vem buscar a peça acabada de cortar.
O neozelandês faz este trabalho desde os 18 anos. Primeiro na quinta da família, depois para uns vizinhos e agora um pouco por todo o mundo. "Já fazia este trabalho há uns dois anos, quando fui para a tosquia de inverno na Austrália e alguns colegas disseram-se que precisavam de tosquiadores na Europa. Comecei a pensar que era uma boa ideia para viajar", relata o neozelandês. Com uma vida de itinerância, levou o seu trabalho um pouco por todo o mundo, desde os Estados Unidos, passando por Suíça, Itália e Escócia - onde conheceu Susana. Numa temporada no nosso país, enquanto ela trabalhava numa agência de viagens, vieram até casa de um amigo em Marvão: "Chegámos de noite e chovia imenso, mas de manhã saímos de casa, vimos aquela natureza toda com a serra e o castelo no topo, enquanto escutávamos os badalos de um rebanho de ovelhas. E dissemos um para o outro: "Isto tem tudo o que procurávamos"."
Em 2012, compraram um terreno em Marvão com uma ruína que reconstruíram enquanto viviam numa tenda tradicional mongol, uma iurta. Naquilo que caracteriza como "uma vida de cigano", Marty continua a trabalhar pela Europa fora e deixa fortes elogios à qualidade da lã do nosso país: "A lã portuguesa tem um bom ADN." Crê que é importante manter a diversidade genética das ovelhas em Portugal, que teme se venha a perder dada a desvalorização de um produto ecológico como a lã e a tentação de investir em espécies capazes de produzir animais mais volumosos, mas menos ricos em termos de produção de lã. Por isso, considera importante este trabalho de exibição da sua arte que tem feito um pouco por todo o país.
Este "chamar a atenção" para potenciar um produto endógeno, que grande parte das vezes as pessoas não aproveitam porque se perdeu esse hábito ou porque financeiramente não é interessante para os proprietários. Mas esta família não vai parar por aqui. "Há 31 invernos que não vou à Nova Zelândia. Neste ano vamos lá passar o dia de aniversário do meu filho e do meu pai", explica Marty. Mas não querem deixar Marvão: "A ideia é irmos fazendo temporadas entre lá e cá", prossegue Susana. Aqui têm uma casa que adoram, o que, aliado ao facto de não terem nenhum empréstimo, lhes permite esta liberdade de rumarem à terra natal de Marty O"Connell. "É como na tosquia: fazes as coisas com o teu ritmo e o teu tempo. Somos livres."
MARVÃO
Entre Castelo de Vide e Portalegre, está situada a tranquila vila de Marvão. A vila e as montanhas escarpadas estão inscritas na lista de candidatos a Património Mundial da UNESCO desde 2000.
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