Na Muxagata, António e Rita encontraram uma tela em branco
Quando, em junho de 2019, apareceu este casal de estranhos na festa da aldeia pensou-se, na povoação, que eram dois turistas que por ali passavam e teriam aproveitado a ocasião. Outros pensaram que eram parentes de alguém emigrado para a França ou para a Suíça, como muitos outros filhos da terra que partiram ao longo da última década. Foi então com curiosidade generalizada que em 2019 os habitantes da Muxagata, no concelho de Fornos de Algodres, perceberam que António Morgado e a companheira Rita Ferreira se fixaram numa casa que estava vazia no centro da aldeia, ali a uns 500 metros da igreja.
Vindos da cidade, o casal de conservadores restauradores estava habituado a assentar arraiais junto das obras de restauro de conventos e igrejas durante longas temporadas. O trabalho de António é recuperar e conservar as cantarias, ou seja, trabalhar com elementos de pedra que podem estar presentes em estruturas do património edificado, mas também pode passar pela recuperação de peças de estatuária com dimensões variáveis. Este tipo de trabalho, além de tecnicamente muito exigente, implica ficar longas temporadas fora de casa, pelos menos durante as empreitadas.
Certo dia, a ideia surgiu-lhes: e "se fôssemos viver ali para o centro do país?" A busca passou por um território vasto no interior do país, do Alentejo ao Douro, onde o casal tinha laços familiares. Contudo, existiam regras muitos específicas para a demanda, nomeadamente, ser um espaço inserido na natureza, ter um terreno que pudesse comportar um ateliê... e a casa tinha de ser de pedra, pois claro. A ida à festa da aldeia serviu para confirmar que estavam no sítio certo, conhecer os futuros vizinhos e "o ideal romântico de repovoar o interior concretizou-se no espaço físico", remata António. A casa na Muxagata "ainda tinha um bónus: os tetos e soalhos de madeira" que o casal anda diligentemente a recuperar. Antes da decisão de partir, havia neles a necessidade uma nova etapa, um sentimento de que estava na hora de abandonar Lisboa: "Mandávamos uma moeda ao ar e desde que não fosse uma grande cidade, ficávamos bem."
Estavam saturados de andar sempre a equilibrar o orçamento que oscilava de cada vez que o custo de vida aumentava e a situação se tornava incomportável. Sobretudo face aos excessos na subida do preço das rendas das casas em zonas históricas, com muita procura por parte de turistas, como era o bairro da Graça onde moravam. Na Muxagata, onde agora se encontram, a região é rica em património, especialmente em pedra. Também demonstrou ser um local capaz de lhes fornecer trabalho. A pandemia refreou um projeto de agricultura biológica que tinham pensado lançar com uns amigos, que também se mudaram para o concelho contíguo de Gouveia, e foram as boas relações de vizinhança, que tinham estabelecido com as comunidades locais que lhes garantiram trabalho durante este período.
Hoje em dia têm trabalho regular. Começaram, inclusive, a trabalhar com uma empresa do setor, sediada em Viseu, a uns escassos 50 quilómetros do ponto onde nos encontramos. Mais importante - "tornámo-nos uma família", afirmam. Enquanto não avança o outro projeto, o casal ocupa todo o tempo livre a (re)construir a casa com que tanto sonharam. O contacto íntimo com a natureza despertou-lhes o interesse pela diversidade paisagística deste vale da Muxagata. Numa localização privilegiada, com o rio Mondego a apenas dois quilómetros, têm uma vista singular para o maciço central da serra da Estrela, onde nos dias mais claros se observa o cume repleto de neve. Esta região, que é de uma enorme riqueza em fauna e flora, fê-los descobrir uma nova paixão: a observação de aves.
Com orgulho, António conta-nos da inauguração de uma estação da biodiversidade (EBIO) na ribeira com o mesmo nome da aldeia. Um percurso pedestre curto, de três quilómetros, mas representativo dos habitats característicos desta região. Neste trilho é possível admirar a diversidade de flora e, sobretudo, observar uma enorme variedade de aves e insetos.
Este projeto, num concelho como Fornos de Algodres, com um vasto território e baixa densidade populacional e com dificuldades em atrair o empreendedorismo, assume especial importância. Com um vasto património natural, o concelho persegue agora a inventariação e a catalogação de toda a fauna e flora presente no território.
Este tipo de projeto, como o EBIO da Ribeira da Muxagata, pode bem vir a ser parte de uma resposta para esta região que vê o potencial existente em turistas de natureza. Estes visitantes são muito distintos do turismo de massas que caracteriza cada vez mais as grandes cidades. Preocupam-se, acima de tudo, com questões ambientais, com a proteção da vida terrestre e a biodiversidade. Para Rita e António, esta é já uma aposta ganha: entre a riqueza natural e as relações que estabeleceram com a comunidade, sentem que aqui "as pessoas ouvem com atenção e dão-te valor". Quando vieram para zona, sentiram que estavam perante uma tela em branco que começaram a preencher no momento em que meteram a chave na porta da nova casa. Ainda falta concluir muita coisa, mas têm uma certeza: "Há pouca gente e queremos ajudar a pôr crianças na aldeia."
Muxagata
É uma das 12 freguesias do concelho de Fornos de Algodres, no distrito da Guarda. Segundo os Censos de 2011, moravam 241 pessoas em Muxagata, situada ao fundo da serra do Belcaide.
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