Mistérios da Comenda. A quinta centenária de Setúbal onde o espaço público hídrico está vedado

O fundo imobiliário Seven Properties, com ligações à Mirpuri Foundation, adquiriu a Herdade da Comenda em 2019 e garantiu à câmara municipal que nunca haveria exploração turística nos 600 hectares da propriedade, inserida em pleno parque natural.
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Passaram quase dois anos desde que a Herdade da Comenda foi comprada aos herdeiros de Xavier de Lima por 16 milhões de euros e chegou o momento que os setubalenses mais temiam, o acesso ao parque de merendas e à praia foi-lhes negado. Apesar de sempre ter sido propriedade privada, pelo menos quatro gerações de setubalenses ali mergulharam, pescaram e piquenicaram, desde a década de 1930 até ao passado dia 27 de setembro.

No dia a seguir às eleições autárquicas que trouxeram mais uma vitória para a CDU em Setúbal, o espaço inserido no domínio público hídrico amanheceu com vedações. Segundo os proprietários revelaram ao DN, a Câmara Municipal de Setúbal (CMS) terá recebido a 24 de setembro um ofício acompanhado de um parecer da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) a explicar a situação.

André Martins, o recém-eleito presidente da Câmara de Setúbal, diz desconhecer os contornos do projeto que os proprietários da Herdade da Comenda têm para a propriedade com 600 hectares, localizada em pleno Parque Natural da Arrábida (PNA) e recorda o investimento de 130 mil euros que autarquia fez no parque em 2019, instalando novas mesas, bancos e instalações sanitárias.

O DN remeteu o pedido de esclarecimentos à Mirpuri Foundation, que a comissão política concelhia do PS Setúbal apontou em comunicado ser a proprietária, mas a resposta chegou da sociedade de investimentos imobiliários Seven Properties, cujo presidente do conselho de administração é Fernando Manuel Neves Gomes, advogado e amigo de Paulo Mirpuri, presidente da famosa Mirpuri Foundation.

A administração da Seven Properties informa que, após a aquisição da herdade em 2019, "a Câmara de Setúbal, bem como o Parque Natural da Arrábida, entre outras entidades reguladoras, foram informadas da intenção de se proceder à recuperação e à requalificação do património construído e do parque florestal, que se encontrava num estado de ruína e abandono" e até com "esgoto a céu aberto".

A recuperação dos espaços verdes e arqueológicos da herdade surge "na sequência da instrução do processo de licenciamento para o restauro do Palácio da Comenda", que estava e continua em processo de classificação pela Direção-Geral do Património Cultural, entidade que exigiu "a realização urgente de trabalhos de arqueologia na zona envolvente". Em julho deste ano a empresa terá sido notificada da "autorização para a realização desses trabalhos". E, na sequência desta informação, terá passado a "prévia informação para as entidades oficiais, incluindo a CMS e o PNA-Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas".

Com estas contradições fica por esclarecer porque só agora a Seven Properties revelou esta notificação e se a Câmara de Setúbal já tinha conhecimento sobre ela.

Os novos trabalhos na Herdade da Comenda vão incidir sobre a frente ribeirinha do Sado, sujeitas, diz a ativista ambiental Estela Lúcio, "à gradual subida do nível das águas que ocorrerá até 2050". Além disso, devido à sua posição geográfica "aquela área devia ser considerada espaço público hídrico".

Diz a Agência Portuguesa do Ambiente que são espaço público hídrico "as margens e os leitos das águas públicas, à exceção das parcelas reconhecidas como propriedade privada, quando demonstrado que já eram privadas antes de 1864". Isto porque, em 1864, D. Luís I "tornou públicas as águas do mar e respetivos leitos e margens, os portos de mar e praias, os rios navegáveis e flutuáveis com as suas margens, os canais e valas, portos artificiais e docas existentes ou que se viessem a construir".

Os proprietários do espaço contrapõem esta classificação alegando que, "existem fortes indícios e muitos vestígios de que a Herdade da Comenda foi outrora, há cerca de dois mil anos, um importante centro de atividade de preparados piscícolas do Império Romano, e poderá esconder um vasto e único património histórico e arqueológico que importa estudar".

Os proprietários garantem também que, após a conclusão dos trabalhos de arqueologia, "em função do que vier a ser descoberto e autorizado pelas entidades reguladoras, a Seven propõe-se a investir no Arqueossítio da Comenda, incluindo a criação de um núcleo interpretativo, centro de exposições, anfiteatro romano para espetáculos culturais e um parque de merendas requalificado. Será também ponto de partida para passeios lúdicos dos visitantes pela quinta, cuja floresta será entretanto recuperada".

Com a conclusão dos trabalhos em curso e cooperação das entidades reguladoras envolvidas, diz a Seven Properties que a Herdade da Comenda poderá "trazer uma nova dinâmica à Arrábida, como um novo polo de atração turística". Serão ainda "criados centenas de novos empregos".

Um plano que mais uma vez contraria a posição inicial da Câmara de Setúbal e a defesa do interesse público que Maria das Dores Meira, autarca que está nos últimos dias do seu último mandato, sempre disse que iria ser defendido.

Em julho de 2020 dizia a ainda presidente da Câmara que os atuais proprietários haviam apresentado um protocolo para a utilização pública do parque de merendas, acesso ao troço do Caminho de Santiago e Capela de São Luís, "impossível de cumprir". No documento exigiam à autarquia a responsabilidade financeira sobre todos os estragos que viessem a ser feitos no coberto vegetal, iluminação ou vedações.

Em resposta, Maria das Dores Meira garantiu que estava preparada para um processo de expropriação de algumas áreas da herdade, entre as quais o parque de merendas agora vedado. A autarca confirmou mesmo que tinha "advogados a trabalhar no caso", mas estava consciente de que poderia "não ser possível" expropriar e impedir as exigências de um casal que seria o novo proprietário da Comenda e estava a ser representado pela Seven Properties.

Questionada pelos vereadores do PS e PSD sobre a finalidade que seria dada à herdade de 600 hectares e ao palacete datado de 1903 com arquitetura de Raul Lino, Dores Meira disse que, após reunir com os proprietários, ficou claro que o espaço "serviria apenas para habitação particular". Ficava afastada a ideia de um investimento turístico. A traça original do palacete seria mantida e a floresta, localizada em plena reserva do Parque Natural da Arrábida, também permaneceria intacta. Estas são, contudo, garantias que o plano atual apresentado pela Seven Properties coloca em causa.

Em janeiro de 2021 o debate sobre a Herdade da Comenda voltou à Câmara de Setúbal, mas a posição de Maria das Dores Meira já foi diferente. Em plena sessão pública disse que "o assunto seria debatido à porta fechada". O motivo? A presença da comunicação social. Segundo a autarca havia o risco de serem publicadas informações que "podiam prejudicar o bom entendimento e as negociações com os proprietários da Comenda". Desde então, nada mais chegou ao conhecimento público ou da oposição PS e PSD.

Depois de meses de silêncio do executivo da CDU sobre o processo de expropriação ou um possível acordo com os proprietários da herdade, as vedações erguidas ao redor do parque de merendas na manhã seguinte às eleições autárquicas levou a comissão política concelhia do PS Setúbal a levantar um conjunto de questões sobre um processo em que "a falta de transparência é gritante", acusam os socialistas.

No comunicado a que o DN teve acesso, o PS questiona "o envolvimento da Câmara Municipal de Setúbal com os novos proprietários" e "o papel do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas [ICNF] em todo o processo". Por fim, deixam outra questão: "Porque não foi ainda apresentado o processo de expropriação anunciado?"

Também Fernando José, deputado socialista eleito pelo círculo de Setúbal e candidato à presidência da Câmara vencido nas últimas eleições autárquicas diz que a autarquia "deveria ter atuado há mais tempo, mas não o fez. Nem no tema da Comenda, nem no tema do Palácio do Comendador".

O caso da Herdade da Comenda parece ser uma história repetida no concelho de Setúbal. Longe do rio, mas também em plena reserva do Parque Natural da Arrábida, o edifício Bacalhôa Berardo Collection foi erguido às portas de Vila Fresca de Azeitão. De nada valeram os pareceres negativos do ICNF e da DGPC, alegando incompatibilidades arquitetónicas com a zona protegida. A Câmara terá mesmo deixado o processo decorrer de forma branda, tendo Maria das Dores Meira chegado mesmo a dizer que o novo Plano Diretor Municipal iria permitir que a construção avançasse.

Com trancas à porta e aproveitando o protesto de cerca de 300 setubalenses realizado no último domingo em frente ao parque de merendas, André Martins, que sucede agora a Dores Meira na presidência da Câmara de Setúbal, diz que vai pedir reuniões às entidades que têm competência e responsabilidade sobre o território "a começar pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, depois pela Administração dos Recursos Hídricos [em referência ao departamento da Agência Portuguesa do Ambiente] e em terceiro lugar à Direção-Geral do Património Cultural".

O DN pediu esclarecimentos à DGPC e ao ICNF no sentido de saber para que projeto havia sido autorizada a licença e que utilização final será dada aos 600 hectares da Herdade da Comenda, localizada em área protegida do Parque Natural da Arrábida, mas não houve qualquer resposta destas entidades até ao fecho desta edição.

"A Comenda é nossa", foram as palavras de ordem dos setubalenses durante o protesto de domingo em frente às vedações de aço. Exigiram saber o que restará para uso público, algo para o qual ainda ninguém sabe a resposta. Os proprietários dizem que tudo depende do tipo de achados arqueológicos. A Câmara de Setúbal alega desconhecer o processo.

Entretanto, a despedida gradual da Comenda já leva quase dois anos, embora os setubalenses ainda acreditassem que a Câmara conseguiria vencer todos os obstáculos, mesmo quando os primeiros portões e vedações começaram a ser erguidos no início deste ano.

Um dos momentos de maior clivagem entre a população e os novos proprietários aconteceu em julho de 2020 quando, por alguns dias, foi exigido o Registo Criminal ou Cartão de Cidadão no acesso ao parque de merendas e à praia. Momento ultrapassado com a diplomacia camarária.

Agora, o cartaz que anuncia a construção do Arqueossítio da Comenda licenciado pela DGCP não convence quem sempre viu na Comenda um refúgio pessoal.

Helena Mendão viveu décadas entre o parque e a cidade e conta ao DN que ali estão "as recordações da sua família". Os filhos "foram feitos lá dentro", aponta. Os anos passaram e "cresceram entre convívios e mergulhos na Comenda". Quando ergueram as vedações "foi como se ficasse perdida uma parte da nossa vida e agora resta esperar qual será o aspeto final do parque depois desta obra, ou melhor, o que restará de acesso livre para os setubalenses, se restar".

Luís António, condutor de passageiros em viatura particular, vai mais longe e aponta o dedo à Câmara. "Deviam ter começado a agir de forma mais agressiva logo quanto apareceram os primeiros sinais de má vontade, por parte dos proprietários".

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