Na freguesia da Misericórdia e, em geral, nas zonas históricas de Lisboa vive-se atualmente uma situação insustentável, provocada pelas distorções do chamado "licenciamento zero", que se traduz na proliferação descontrolada de bares, restaurantes e estabelecimentos de diversão noturna, em detrimento do bem-estar dos moradores e de um panorama económico, cultural e social que de outra forma poderia ser bem mais variado e enriquecedor para a cidade e os seus habitantes, sob todos os pontos de vista..Em nome de uma simplificação acentuada da tramitação, orientada para um ambiente mais favorável ao acesso e exercício daquelas atividades, é permitido aos empreendedores que comecem a operar com base numa mera participação eletrónica, sendo-lhes outorgada a presunção do cumprimento escrupuloso das regras a que se comprometeram, a qual, na prática, é dificilmente ilidível, colocando em total desvantagem os moradores..A referida presunção seria em qualquer caso discutível, mas torna-se particularmente injusta quando o sistema está a operar sem quaisquer contrapesos, sendo muito permeável a abusos, uma vez que as autoridades competentes que deveriam fiscalizar os operadores e velar pela boa aplicação da lei não o fazem, ou fazem-no tarde e superficialmente, após denúncia, de forma frouxa e burocrática, e pouca ou nenhuma informação e apoio prestam aos residentes..Neste contexto, é feita vista grossa a atropelos vários, como a alteração do uso de fracções cujo título constitutivo prevê destinarem-se a comércio, sendo nelas exercidas outras actividades para as quais não podem ter licenciamento camarário. No caso dos bairros históricos, como o Bairro Alto e a Bica, acresce a existência de um Plano de Urbanização que legalmente condiciona a abertura e laboração de atividades de restauração e bebidas, precisamente com o objetivo de "disciplinar a ocupação, uso e transformação do solo na área de intervenção", por se considerar necessário o equilíbrio entre a função habitacional e a função comercial nestes bairros..Assiste-se assim a uma total subversão da iniciativa "licenciamento zero", a qual, tal como está a funcionar, menospreza os direitos dos moradores, relegando-os para segundo plano, sem que, em compensação, lhes dê as indispensáveis garantias, em violação do direito à integridade pessoal previsto no artigo 25.º da Constituição. Sobre os residentes, entregues exclusivamente a si próprios, recai o ónus de restaurarem os seus direitos a posteriori, se o conseguirem, suportando entretanto os custos morais e materiais da sua violação..Acontece que entre os moradores dos bairros históricos de Lisboa não abunda o dinheiro, nem os contactos nas "altas esferas", nem muitas vezes a instrução e informação elementares para saber por que vias optar e que instrumentos utilizar para reagir aos abusos, pelo que a derrapagem é inevitável, como se constata, em violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição..Acresce que, uma vez instalado o abusivo facto consumado, que se prolonga e consolida pela inoperância das autoridades, não raramente os operadores invocam as expectativas geradas, os investimentos feitos, os postos de trabalho criados, etc., para resistirem à correção das irregularidades de que são responsáveis. Isto quando tais argumentos não são acompanhados de pressões e ameaças mais ou menos veladas dirigidas aos residentes queixosos, como já aconteceu, sem que, pelo contrário, sejam tidas em conta as expectativas goradas de quem adquire uma fracção habitacional num edifício cujo uso se destina a habitação e, no máximo, comércio, e se vê - repentinamente - perante uma alteração estrutural ilegal..Todos conhecemos na pele o (des)funcionalismo público português, que na sua versão municipal parece ter condensado e refinado os seus defeitos típicos e antigos, incluindo agora, como novidade, um dédalo de portais e aplicações informáticas autistas e de misteriosos acrónimos em endereços de correio eletrónico, culminando na proverbial dificuldade em dar a cara, assumir as responsabilidades e agir eficazmente em tempo útil..No que respeita aos bairros históricos de Lisboa, e independentemente da má qualidade da legislação que regula o "licenciamento zero", fica a pergunta: Não foi precisamente para instaurar a justiça, a equidade e a transparência democráticas, banir as arbitrariedades e abrir as portas ao desenvolvimento que se fez o 25 de Abril?.Se assim é, faz algum sentido que o modelo de desenvolvimento que os poderes instituídos reservam para aquelas comunidades passe pela sujeição dos cidadãos à ditadura dos bares, restaurantes e estabelecimentos de diversão noturna incumpridores, resultando em enormes prejuízos para a saúde mental e física dos cidadãos, de que são co-responsáveis, nos termos do Artigo 22º da Constituição, as entidades públicas que deveriam velar pelos seus direitos, liberdades e garantias?.Não podemos portanto aceitar este estado de coisas e solidarizamo-nos com a angústia e o desespero suportados, tantas vezes em silêncio, por um número crescente de munícipes dos bairros mais afetados..É que o problema não se limita aos casos específicos deste ou daquele munícipe e respetiva família, mas já atinge centenas ou milhares de pessoas, e está a afetar gravemente o tecido social, económico e cultural do casco histórico de Lisboa, que constitui um dos principais atrativos das muitas centenas de milhares de turistas que todos os anos nos visitam, contribuindo, em muito, para a economia nacional..Mercê dos abusos à lei e da ineficiência da fiscalização, os bairros históricos da capital estão a degradar-se, a descaraterizar-se e a despovoar-se de moradores, transformando-se gradualmente num parque mono-temático destinado aos visitantes. Este processo passa pela asfixia de quaisquer outras atividades económicas e culturais, comprometendo, inclusivamente os estabelecimentos concorrentes que cumprem a lei. A seu tempo, esta situação afastará também os turistas..Perante isto, e sem prejuízo da desejável revisão urgente da lei pelos poderes centrais, é de exigir uma atitude mais proativa e enérgica da parte das autoridades com competências na matéria, nomeadamente a CML, a APA, a Polícia Municipal e a ASAE..Face às queixas recorrentes dos munícipes, estas autoridades tendem a invocar a falta de meios e/ou competências para atuar, assistindo-se àquilo que poderia definir-se como um conflito negativo de competências, mas que alguns, em português simples e porventura mais certeiro, preferem designar de "passa-culpas"..Na realidade, é evidente para quem está dentro destes assuntos que aquelas autoridades, a começar pela CML, podem e devem fazer muito mais com os meios e competências legais de que dispõem..Se o problema está numa melhor coordenação entre as autoridades, pois que se promova essa coordenação ao mais alto nível. Apurem-se definitivamente os instrumentos legais aplicáveis e as competências respetivas, faça-se um plano operacional, se necessário redistribuam-se os meios, e atue-se sistematicamente..Não se exige que tudo aconteça de um dia para o outro, mas no imediato há que começar por algum lado e apresentar resultados concretos. Não devemos ter pudor, nem medo, de agir em nome da lei democrática, e muito menos quando se trata de salvaguardar o bem-estar e a segurança dos cidadãos, de cujo poder soberano aquela emanou, além de promover o desenvolvimento sustentável do núcleo histórico da nossa cidade..Caso contrário, a impunidade instala-se e consolida-se, como está a acontecer, o Estado de direito fragiliza-se, e o futuro fica comprometido..Associação de Moradores AQUI MORA GENTE