Heinz, o construtor de sonhos que há 25 anos fez o órgão da Sé de Leiria

No ano em que a órgão comemora bodas de prata, o organeiro alemão que o criou veio a Portugal revisitá-lo. Aos 90 anos, Georges Heinz conta ao DN sobre a marca que tem deixado a partir da Floresta Negra.

Por esta altura, Georges Heinz e a mulher, Rita, já regressaram à pequena cidade de Schiltach, em plena Floresta Negra, na Alemanha, onde ainda se encontra a oficina onde construiu o órgão da Sé catedral de Leiria. Fez agora 25 anos. Heinz lembra-se bem do telefonema que recebeu: do lado de lá da linha, o cónego Ferreira dos Santos. Não podia imaginar que a milhares de quilómetros de distância, nas ruas e lugares que - muitos anos antes - inspiraram "O Crime do Padre Amaro" a Eça de Queirós, corria uma polémica sem precedentes: como é que a Igreja ia gastar 100 mil contos [cerca de 500 mil euros] num órgão?

À distância de um quarto de século, o maestro Paulo Lameiro, que então tomou conta do projeto, sorri, com a certeza de quem anda há três décadas a criar públicos diversos na cidade. É ele quem acaba por facilitar este encontro do DN com o organeiro Georges, atraiçoado pela covid-19 neste regresso a Portugal - e por isso refugiado numa casa de praia em Água de Madeiros. "O contacto com Portugal trouxe-nos muitas coisas boas e esta região da costa portuguesa foi uma delas", conta Rita, a mulher - "uma organista de renome", realça o marido - no dia em que ambos testaram finalmente negativo. O casal está agora nos 90 anos, mesmo que isso pareça inverosímil, aos olhos dos outros.

Chegou a Portugal no início de outubro, para participar do programa de comemorações dos 25 anos do órgão da Sé de Leiria, só que o vírus trocou-lhes as voltas. Ainda conseguiram assistir a um concerto, mas não mais. Aquele foi o único órgão que construiu para uma catedral. Depois disso, fez um outro para uma igreja de Ermesinde, mas nada que se compare com o instrumento de Leiria. "Para nós, no atelier, na empresa, foi uma grande publicidade na época", conta o organeiro, ainda hoje orgulhoso da criação. Ele que começou a tocar órgão aos 14 anos, na pequena aldeia onde morava, perto de Estrasburgo, na Alsácia.

Mais tarde, foi para Inglaterra, depois para a Bélgica, mas seria como construtor de órgãos que se haveria de notabilizar, sabendo que "quem faz um órgão tem que reunir competências muito distintas", como sublinhará mais tarde o maestro Paulo Lameiro, certo de que fazê-lo "é muito mais complexo do que fazer uma guitarra ou até um violino, que já de si é muito complexo". Para percebermos a dimensão desta afirmação, basta imaginar que "daqui a 500 anos, o órgão de Leiria permanece a tocar exatamente da mesmo forma como hoje, porque é como se fosse tudo uma gigante marioneta". Não admira, por isso, que tenha demorado dois anos a ser pensado, um ano a ser montado lá, na Alemanha, e depois voltou a ser desmontado - "parafuso a parafuso" - e durante quatro meses voltou a ser montado em Leiria.

O emotivo reencontro com Paulo Lameiro

Heinz deixou de trabalhar em 2006, mas nos primeiros anos (entre 1997 e 2001) era ele quem vinha regularmente a Leiria acompanhar a revisão de cada tubo, de cada fole, de cada peça. "Ele vinha para fazer a afinação, verificar se o órgão estava bem, estável", conta o maestro, que acompanhou todo esse percurso "e a construção da relação que eles foram criando com o nosso território", sublinha Paulo Lameiro, que o país conhece dos concertos para bebés ou de projetos como a ópera na prisão, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, sempre a partir da SAMP, nos Pousos (Leiria), onde continua a ter responsabilidades.

"Nós visitámos duas vezes a oficina, na Floresta Negra, onde estão os principais construtores de órgãos da Alemanha. E, na verdade, visitámos as florestas de onde foram cortadas as árvores do nosso órgão. Eu tenho as fotografias dos rebanhos de ovelhas em Schiltach, de onde vieram as peles para os foles!", recorda Paulo Lameiro, que visitou os prados, com as vacarias de onde vieram as teclas, o osso que as fez. Embora o processo tenha sido iniciado por Ferreira dos Santos, foi Lameiro quem depois acabou por "fechar o negócio" na pequena cidade alemã. "Depois era preciso formar organistas. E então, já com os alunos de órgão - tive que convencer a Diocese e o Santuário de Fátima a fazê-lo - fizemos uma segunda viagem, inesquecível."

Um mundo encantado

Um desses jovens era João Santos, atualmente o organista titular da Sé de Leiria. É ele quem abre o pano para que o DN possa ver, por dentro, esse instrumento que, de certa forma, mudou a história da música na cidade. São centenas de tubos em madeira e metal, construídos à medida. "Estes aqui são de madeira, como se fossem grandes flautas de Bisel, com seis metros de altura." Quando abre a porta que está ao lado da parte visível do órgão, João Santos desvenda uma espécie de mundo encantado, a que será possível aceder, por marcação, em breve, em formato visita. Há duas escadas de madeira que permitem então ter a dimensão exata do que sucede ali, dentro do instrumento. Porque como sublinha Paulo Lameiro, "é o único instrumento onde é possível tocar dentro dele".

Em 1997, João Santos era um jovem seminarista que, depois, acabou por enveredar pela música. E o órgão foi determinante na hora de decidir entre o sacerdócio e a carreira musical. Hoje é ele o organista titular da Sé, mas é também compositor e músico conceituado. Quando olha para os 25 anos que passaram, rememora várias histórias que o fazem sorrir, mas nenhuma como a daquele homem que o abordou, no final da missa, dizendo-lhe que "era uma vergonha, gastar cem mil contos num órgão, só com meia dúzia de tubos - que era aquilo que via". "Então convidei-o a vir comigo, perceber o que estava lá dentro. O homem achava que lá atrás estavam colunas de som, talvez. Quem não sabe, não pode imaginar." É que o órgão da Sé de Leiria tem essa grande vantagem de estar num piso térreo, ao contrário do que habitualmente sucede. São seis metros de profundidade, cheios de mecanismos.

O mapa da organaria "moderna" em Portugal é simples: começa na Sé de Lisboa (1962), Sé catedral do Porto (1985), Igreja da Lapa (1995) e Sé Catedral de Leiria (1997). Depois disso há ainda a Igreja da Conceição, no Marquês, Porto. Georges Heinz construiu ainda instrumentos de menos dimensão para as Igrejas de Ermesinde e de Vagos.

dnot@dn.pt

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG