Das marchas populares ao turismo. Alfama, um bairro que já não é o que era
"Quem a olha julga-a deitada à sorte, mas não deixa de a interrogar para que a perceba melhor." Esta é a primeira frase do livro Marcha de Alfama, da autoria de Ricardo Gonçalves Dias, que em 1998 foi a mascote da marcha daquele que é bairro onde nasceu. Esta tradição lisboeta já se tornou inclusive parte da família, pois a sua irmã foi marchante durante cinco anos e ainda hoje o pai ajuda a construir os arcos que desfilam na avenida da Liberdade, todos os anos, na noite de 12 para 13 de junho.
O livro retrata, de forma direta e livre, nove décadas de história da marcha e do bairro de Alfama. "A marcha é um fenómeno cultural muito forte e muito importante, pelo que merecia ser explorado. Tem muitas vitórias e era importante tentar perceber o percurso desde o início das marchas", diz Ricardo Gonçalves Dias em conversa com DN.
Alfama marchou pela primeira vez em 1932 e atualmente conta com 21 vitórias no concurso anual de Lisboa, sendo que é o único bairro a conseguir manter o título de melhor marcha durante cinco anos consecutivos.
Para fazer esta obra, Ricardo Gonçalves Dias teve de recorrer aos arquivos municipais e à Torre do Tombo, mas fez ainda várias entrevistas informais a protagonistas da história da marcha de Alfama. "Descobri coisas que não sabia. Há muitas histórias relacionadas com os bairros entre si", revela o escritor.
Um das descobertas que faz questão destacar remonta a 1970, quando o ensaiador da marcha da Mouraria, José Ramalho, foi para Alfama, apesar da grande rivalidade entre os bairros. "Na altura, José Ramalho deu uma entrevista ao Diário de Notícias a dizer que ia para onde lhe pagassem mais. Às vezes os bairros têm mais ligações entre si do que julgam", acrescenta.
É com muitos meses de antecedência que a marcha é preparada. Por exemplo, julho é chamado o mês da "ressaca", depois das festas de Santo António. No final do ano, começam as ideias para o tema das Marchas de Lisboa e, em janeiro, começam as inscrições dos bairros. "A maior parte do ano estamos sempre a trabalhar nisto", assegura Ricardo Gonçalves Dias.
Ao longo do anos, as marchas lisboetas têm evoluído. "Por exemplo, nos anos de 1990 a chegada do ator Carlos Mendonça contribuiu para a evolução das marchas populares. Os próprios temas também evoluíram porque inicialmente era a Câmara Municipal de Lisboa que escolhia", assegurou o autor do livro. Este ano, tema da marcha de Alfama foi "A Sina do Estivador", numa homenagem aos técnicos de arrumação de carga nos porões, que é uma profissão muito típica de bairro que fica ali bem perto do rio Tejo.
"Ver o bairro no dia 12 de junho e ver a marcha de Alfama a descer as ruas para apanhar o autocarro é sempre algo mágico. Existe uma simbiose de características únicas. O bairro cheio de turistas, as pessoas de cá e o cheiro de sardinha assada", comenta.
Se há um mês o bairro de Alfama enchia-se de pessoas por causa dos Santos Populares, agora ainda há muito movimento devido aos restaurantes e às casas de fado, que atraem os turistas para este bairro lisboeta, que tem uma parte na freguesia de Santa Maria Maior e outra na freguesia de São Vicente.
Ricardo Gonçalves Dias diz que o bairro está descaracterizado, pois perdeu uma parte da sua cultura popular. "Tem um tecido urbano muito envelhecido, os prédios muito desgastados, muitas pessoas decidiram sair do bairro e ficaram pressionados pela atividade turística", lamenta, destacando que há o lado positivo da reconstrução urbana, bem como mais postos de trabalho.
O autor do livro destaca que o alojamento local é algo que ameaça o bairro porque contribui para que muitos deixem Alfama e vão para outras zonas da cidade. Além, disso, para quem ainda vive no bairro, a proximidade entre os habitantes também mudou. "É um bocadinho diferente morar hoje em Alfama daquilo que era há uns anos. A rede de vizinhança e de entreajuda que existia também se perdeu um bocado", explica o escritor. "As pessoas continuam a preocupar-se muito umas com as outras e perguntam quando ficam sem ver alguém durante uns dias. Mas já não era como antes", acrescenta.
A única forma de reverter a situação é com "uma política pública que permita às pessoas pagar rendas de forma social e equilibrada e não através do mercado livre e liberal". No entanto, o autor acha que poderiam ter sido feitas políticas de apoio ao bairro há mais tempo, porque agora já tarde.
O livro de Ricardo Gonçalves Dias quer, por isso, relembrar o passado glorioso de Alfama. "Como se a marcha vencesse sempre e aqui não se morresse nunca", como diz o livro.
mariana.goncalves@dn.pt