Adegas, vinhas e ruínas. Nova rota do vinho de talha une 22 concelhos do Alentejo

O objetivo é divulgar e proteger a história milenar deste vinho, feito em grandes recipientes de barro poroso, dando a conhecer produtores e adegas enquanto se chama turistas à região. Projeto ajuda a consolidar candidatura a Património Imaterial da Humanidade.

Assim que se entra na casa é impossível não reparar nelas: são seis enormes talhas, com capacidade para produzir cada uma à volta de 400 a 500 litros de vinho, seguindo à risca o método tradicional introduzido pelos romanos na Península Ibérica há cerca de 2000 anos. Em cada talha estão expostos os nomes das castas ali colocadas e às mais conhecidas, como a Trincadeira ou a Antão vaz, juntam-se outras menos comuns como Perrum, Dedo de Dama, Roupeiro ou Larião. Quem controla toda a operação é José Galante, 60 anos, que há cinco passou a dedicar-se "à paixão de sempre", que já corria na família, pela produção de vinho de talha. José é um autêntico "faz tudo": cuida da vinha, faz a vindima, limpa e higieniza as talhas, mói a uva e acompanha a fermentação até ao resultado final, desvendado com a abertura da talha e a prova do vinho a 11 de novembro, como manda a tradição, dando sentido ao provérbio: "Dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho".

Mas José Galante não ficou por aqui. Aos poucos, tem vindo a recuperar o espaço, que decorou com os retratos da família, muitas bicicletas antigas e peças de artesanato. Abriu-o ao público, em Vila de Frades (uma freguesia da Vidigueira, que é denominada capital do vinho de talha), e hoje recebe grupos na Adega do Zé Galante a quem serve o seu vinho e petiscos regionais que vai selecionando ao calcorrear o Alentejo. Tudo complementado com uma unidade de alojamento local, D. Teresinha (o nome é uma homenagem à avó), a funcionar na porta ao lado.

É precisamente este tipo de histórias e produtos que a nova rota do vinho de talha quer dar a conhecer. A iniciativa une 22 concelhos do Alentejo (ver lista), que já trabalhavam juntos na candidatura da "técnica de produção ancestral do vinho de talha" a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO. Este processo, liderado desde a primeira hora pela câmara da Vidigueira, teve recentemente um importante avanço com a confirmação da inscrição no Inventário Nacional, passo que precede a candidatura junto da UNESCO agora conduzida pelo Estado português. A criação e divulgação da rota reforça esse desígnio, mostrando obra feita.

"O dossier da candidatura já está completo. Com a inscrição da candidatura no Inventário Nacional do Património Imaterial concluiu-se esta primeira fase. Mas durante este processo fomos aproveitando tudo aquilo que pudemos, associado à candidatura. A criação desta rota surge nessa sequência, no aproveitamento do protocolo que já existia com 22 municípios e sete entidades que assim se associam num produto turístico que agrega todo o Alentejo, independentemente de alguns dos concelhos serem ou não produtores de vinho de talha. Isso não foi fator de exclusão. Acredito este produto local vai contribuir bastante para a economia do território no seu todo", explica Rui Raposo, 44 anos, presidente da câmara da Vidigueira (eleito pela CDU) a cumprir o segundo mandato.

Como diz, há um objetivo que une todos os autarcas do Alentejo, independentemente da cor política: "Queremos inverter os resultados daquilo que tem sido a desertificação do território, poder contribuir para a economia local e fixar cada vez mais pessoas na região".

A rota tem mais de 80 pontos de interesse identificados e assenta em sete propostas diferentes de itinerários, pensadas para um ou dois dias. A informação pode ser solicitada em postos de turismo ou por email - info@rotadovinhodetalha.pt - e estará também online (site em desenvolvimento). As experiências ao dispor dos visitantes, tendo sempre como pano de fundo o vinho de talha, são vastas e vão desde provas a visitas guiadas a adegas, vinhas centenárias e ruínas romanas, bem como assistir ao fabrico das talhas de barro em olarias artesanais, com muitos petiscos e brindes pelo meio e em contacto direto com os 24 produtores que lhe estão associados (entre eles José Galante, que hoje já possui mais de 30 talhas e produz cerca de 12 mil litros, com destaque para o "Portal da Adega", certificado desde o ano passado).

O Centro Interpretativo do Vinho de Talha, em Vila de Frades, inaugurado a 11 de novembro de 2020, quer ser a casa de partida para a rota. A ideia é que no espaço museológico o visitante se municie de informação sobre a história do vinho, a forma tradicional de o fazer, os produtores da região, etc, para que, depois, possa escolher os próximos destinos a visitar, consoante o seu interesse pessoal e disponibilidade.

Neste centro, além das enormes talhas - recipientes de bairro poroso, que em média têm um volume entre os 800 e os 1000 litros - que podemos observar e tocar, explica-se ao detalhe as quatro fases desta técnica ancestral de produzir vinho. Tudo começa, nos meses de verão, com a limpeza e higienização das talhas, sendo que, quando necessário, é preciso realizar a pesgagem, um processo impermeabilização do interior do recipiente com recurso a resina natural e cera de abelha (tal como na época dos romanos). Segue-se a colocação do mosto na talha (à massa líquida que resulta do esmagamento das uvas junta-se também parte dos engaços que ajudam a filtrar o vinho). Um a dois dias depois, tem início a fermentação, que normalmente dura à volta de três semanas e exige especial cuidado por parte do produtor para manter sempre a temperatura entre 17 e 18 graus, mexendo aquela massa duas a três vezes por dia com um "rodo" (ferramenta em madeira em forma de T). O último passo é a abertura da talha, pelo fundo da mesma, e respetiva prova do vinho.

Um dos items mais curiosos em exposição é um punhado de grainhas de uva romana, encontradas durante a escavação arqueológica num dos principais pontos de interesse desta rota. Falamos das Ruínas de São Cucufate, em Vila de Frades, que estão classificadas como monumento nacional desde 1947. O sítio arqueológico, cujo edificado remonta ao século I, nasceu como casa agrícola no tempo dos romanos, uma obra grandiosa dotada de mansão com dois pisos, templo próprio, jardim, termas, necrópole, olaria, lagar e adegas. O espaço seria mais tarde ocupado por frades, que tinham São Cucufate como padroeiro, antes de ser votado ao abandono durante séculos (o último registo de um capelão ali presente data de 1723). Em 1947, iniciaram-se os trabalhos arqueológicos e entre os achados estavam não só as grainhas como diversas ferramentas usadas na produção vinícola que ajudaram a comprovar a existência milenar de vinho de talha naquele território, o que acabou por ser um elemento histórico fundamental para reforçar a candidatura a Património Imaterial da Humanidade.

Voltar a casa para inovar

O contacto direto com quem faz vinho de talha é, indiscutivelmente, uma mais valia que a rota oferece, pela dupla possibilidade de mergulhar fundo na história deste tipo de produção e nas histórias de quem a mantém viva. Um desses personagens é a jovem Teresa Caeiro, de 27 anos. Ela é o rosto da Gerações da Talha, também em Vila de Frades, empresa que fundou com a mãe. O coração do projeto é a antiga adega do século XVIII nas mãos da família há quatro gerações, onde estão presentes cerca de 50 talhas já centenárias. Teresa recebe-nos à entrada da adega e começa por espantar-se com a dimensão do grupo. "Não estava à espera de tanta gente. Espero que consiga explicar tudo bem", diz a sorrir. Fá-lo com desembaraço e saber, sotaque alentejano bem presente, recordando a história da família e enumerando todas as fases da produção do vinho, bem como a escala que ali se pratica: "Aqui é tudo manual, muito caseirinho, é a família que conduz o processo todo".

A produção de vinho - entre eles o "Farrapo", nome inspirado na forma como são conhecidos os habitantes de Vila de Frades, os farrapeiros - está no cerne da Gerações da Talha, mas a atividade da empresa é diversificada, oferecendo programas de enoturismo que vão desde as simples visitas à adega com provas de vinho e petiscos, aos passeios de barco pelo Alqueva, passando por piqueniques nas vinhas e outras experiências que tiram partido das características da região e dão maior estrutura ao negócio familiar.

O percurso de Teresa Caeiro é também a história de um regresso feliz às origens. A jovem empresária começou por fazer uma licenciatura em Engenharia Geológica e de Minas, em Lisboa, mas o afeto pelos vinhos levou-a a estudar viticultura e enologia em Évora, acabando por regressar a Vila de Frades com novas competências para abraçar um desafio profissional. Este "regressar a casa" de muitos jovens da Vidigueira é, aliás, uma tendência que o autarca Rui Raposo tem registado nos últimos anos. "Além do interesse crescente dos estrangeiros, o que temos vindo a observar é o aumento do número de jovens que querem regressar à sua terra para trabalhar, formar família e, muitas vezes, o próprio negócio. Viram no seu território uma oportunidade e muitos regressam aqui já com uma formação especializada, seja no setor do vinho, seja no turismo ou outros ramos, o que tem sido muito interessante para a região", diz ao DN.

É outro jovem, Ruben Honrado, 32 anos, quem dá a cara pela Honrado Vineyards, empresa que fundou com o pai, António, e que além de produzir vinhos gere dois espaços em Vila de Frades: o restaurante País das Uvas e a Adega-Museu Cella Vinaria Antiqua. Da cozinha do restaurante saem para a mesa iguarias regionais como os Ovos com Silarcas (cogumelo silvestre), o Cozido de Grão ou as Bochechas de Porto Preto estufadas, acompanhadas pelo vinho das talhas que fazem parte da imagem de marca desta casa, produzido há quase duas décadas por António. O desejo de alargar a produção levou à procura de um novo local para acomodar mais talhas e a solução estava logo ali ao lado, num antigo café que dividia paredes com o restaurante.

Com o início das obras, em 2017, para o transformar em adega, começaram a surgir vários sinais de que aquele espaço tinha, afinal, uma história bem mais surpreendente. Os materiais usados, a estrutura em arcos, o chão inclinado em direção ao "ladrão" (um recipiente enterrado que recolhia e aproveitava o mosto no caso de alguma talha rebentar), um poço de 17 metros de onde seria retirada a água para a higienização e até um canal subterrâneo usado como sistema de refrigeração do solo (algo que já era praticado pelos romanos) indicavam que ali teria funcionado uma adega no passado, para surpresa dos novos proprietários.

"Costumo dizer que descobrimos um tesouro que estava enterrado. E verdade é que hoje temos vinhas na mesma terra onde os romanos as tinham (junto a São Cucufate), produzimos vinho da mesma forma que eles produziam e temos uma adega que é de inspiração romana", sublinha Ruben Honrado. O espanto com a descoberta levou a uma reformulação de planos e avançaram com uma cuidadosa recuperação do local, devolvendo-o à sua forma original. Agora produz-se ali vinho, preservando intacta a técnica para o fazer, e realizam-se jantares temáticos, visitas guiadas, workshops e seminários, entre outras atividades ligadas ao enoturismo. A Honrado Vineyards começou a produzir o vinho "Talha" em 2016, com 4000 garrafas que eram para consumo no restaurante. Hoje já atingiu as 15000 garrafas, conta com 12 referências no mercado e exporta boa parte da produção.

Vinho. Um motor económico para a região

A feitura de vinhos na Vidigueira está bem documentada historicamente e o setor é hoje fundamental para o tecido económico da região, como reconhece Rui Raposo: "Temos 314 km quadrados de território e 14 adegas a produzir vinhos de excelência. Faz parte do pilar daquilo que é a economia local".

A Adega Cooperativa da Vidigueira, Cuba e Alvito é dos principais empregadores locais. Inaugurada em 1960, conta com cerca de 300 associados e detém 1500 hectares de vinha nestes três concelhos do distrito de Beja. Trabalha, sobretudo, com a casta Antão Vaz, a quem chamam "a musa inspiradora" da adega, e tem hoje uma produção de aproximadamente seis milhões de litros de vinho por ano e oito milhões de quilos de uva por vindima.

As atividades de enoturismo e a Casa da Talhas, um espaço polivalente onde, mais uma vez, não só se prova o vinho ("Vidigueira Vinho de Talha DOC", com as castas Antão Vaz, Roupeiro, Manteúdo, Diagalves, Larião e Perrum, algumas delas quase em extinção) como se pode conhecer toda a sua história, deram à adega um lugar nesta nova rota, que transmite saber e sabor, promovendo e explorando o filão que o património do vinho de talha oferece.

OS MUNICÍPIOS

São 22 os concelhos unidos nesta rota. A saber: Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Arronches, Borba, Beja, Campo Maior, Cuba, Elvas, Estremoz, Évora, Ferreira do Alentejo, Marvão, Mora, Moura, Mourão, Redondo, Reguengos de Monsaraz, Santiago do Cacém, Serpa, Viana do Alentejo e Vidigueira.

O DN viajou a convite do município da Vidigueira

pedro.sequeira@dn.pt

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