Foi na Padaria do Povo, situada em Campo de Ourique, Lisboa, que em julho de 2022 se reuniram pela primeira vez 30 pessoas inconformadas com a crise habitacional da capital. Com ideias e energia para reverter a situação, o grupo rapidamente cresceu, começou a circular por faculdades, coletividades e associações culturais da cidade e tornou-se o Movimento Referendo pela Habitação (MRH). Cerca de dois anos e meio depois daquele primeiro encontro, o movimento ganhou corpo e forma, consolidando a trajetória com o referendo pelo fim do Alojamento Local que foi aprovado pela Assembleia Municipal de Lisboa (AML) na última terça-feira (dia 3)..“A primeira assembleia foi muito curiosa: muitos reconheciam os rostos por frequentarem os mesmos círculos, mas nunca tinham falado uns com os outros. No início, nós nem sabíamos que era possível fazer um referendo por iniciativa popular, como noutros países. Quando descobrimos, determinamos: queremos usar a ferramenta do Referendo por Iniciativa Popular para tentar combater a crise da habitação e fazer com que consigamos viver em Lisboa. Toda a gente ficou entusiasmadíssima”, relembra Ana Gago, membro do MRH, em conversa ao DN. .A partir do primeiro encontro, foram seis meses de discussões em assembleias semanais para o grupo decidir como seria formulada a estrutura do referendo. Formaram-se grupos de trabalho que funcionam de forma horizontal e foi feita uma estratégia quanto aos locais e momentos em que o movimento atuaria..Ana Gago conta que o Movimento Referendo pela Habitação se inspirou num referendo de iniciativa popular formulado em Berlim no ano de 2021. Na ocasião, os berlinenses fizeram aprovar um referendo que permitia a coletivização de casas na capital alemã que estavam nas mãos de gigantes imobiliários privados. Recentemente, Budapeste, capital da Hungria, assistiu a um referendo similar ao de Lisboa aprovado..“O mote do referendo de Berlim era de que cada bairro poderia organizar a habitação nos seus bairros. Inspirámo-nos muito nesta possibilidade e, de repente, pensamos: ‘Será que aqui dá para fazer o mesmo?’”, recorda Ana..Desde a oficialização do referendo em Lisboa, foram mais de 6000 as assinaturas de cidadãos lisboetas contra o Alojamento Local recolhidas, o que permitiu o ocorrido esta semana na AML..De todos os momentos que teve enquanto integrante do movimento nos últimos anos, Ana destaca a solidariedade de moradores dos mais diferentes bairros lisboetas. Além da presença em manifestações e dos pontos fixos para recolha de assinaturas na cidade - especialmente as coletividades e associações culturais parceiras -, o movimento também promoveu assinaturas noutros bairros da cidade..“A questão do AL tem sua maior problemática em bairros como Alfama, Mouraria, Castelo, Estrela e Campo de Ourique e tínhamos receio de que isso não chamasse tanto a atenção de bairros municipais, como Chelas, por exemplo. E aconteceu justamente o contrário. Os moradores desses bairros têm outros problemas, mas eles entenderam que, através deste referendo, poderemos também ter impacto na cidade como um todo, nomeadamente no preço das rendas”, pontua..Após a aprovação na Assembleia Municipal de Lisboa, o Tribunal Constitucional tem agora 25 dias para se pronunciar sobre o referendo. Mesmo que existam deputados da AML que já frisaram que o processo não será aprovado, do lado de quem participou no processo o sentimento é de ânimo e otimismo..“Achamos que só a discussão, em si, já será muito positiva, colocámos este tema na mesa e estamos confiantes de que legal e constitucionalmente as questões que colocamos têm muita consistência. Pode acontecer o Tribunal Constitucional fazer voltar o documento para fazer algumas alterações, mas não acredito num chumbo. Vai haver referendo”, finaliza com otimismo Ana Gago..nuno.tibirica@dn.pt