Dos tempos áureos de atividade na Manutenção Militar, na freguesia do Beato, a dona Lúcia Carvalho ainda se lembra bem. “Estavam sempre dois porteiros, um do lado, outro do outro, a mandar parar o trânsito para as pessoas saírem das fábricas. Era uma coisa... era um mundo”, conta ao DN, com um tom saudosista nas palavras. Da janela de casa, mesmo numa esquina com a Rua do Grilo, esta senhora de 71 anos, que há cinco décadas vive no mesmo sítio, vê tudo o que se passa na zona e lamenta. “Agora não se vê ninguém. Isto era lindo, mas cada vez está pior”, relembra. No entanto, a novidade do momento traz alguma esperança. “Ouvi falar. Deus queira que isso venha”, diz. A expectativa de dona Lúcia é que seja concretizado o projeto que diversas personalidades da cultura nacional estão publicamente a apoiar, para que as instalações da Manutenção Militar sejam reconvertidas no “Bairro do Grilo”. A esperança desta moradora está depositada na força de uma petição disponível online que, em pouco mais de 24 horas, chegou quase aos 500 subscritores. Neste documento nomes como os músicos Camané, Gisela João, Paulo Furtado, os ilustradores André Carrilho, Cristina Sampaio, as atrizes Inês Castel-Branco e Margarida Vila-Nova, além do autor do projeto, o antigo vereador de Lisboa José Sá Fernandes, pedem que o Governo concretize as ações de requalificação.Complexo subutilizadoA Manutenção Militar é formada por 15 prédios, numa área de sete hectares, com início de funções que datam de finais do século XIX. Um complexo fabril que, com o passar das décadas, teve várias funções, desde produção de alimentos para o Exército até apoiar forças destacadas no estrangeiro com abastecimento de combustíveis e produtos de higiene pessoal. Hoje, muitos dos edifícios não têm qualquer função e o cenário de abandono é visível. A única área de maior movimento, com entrada pela Rua do Grilo, é aquela onde esteve instalado, em abril do ano passado, o Centro de Alojamento de Emergência Municipal para pessoas em situação de sem-abrigo, com utentes antes alojados no Quartel de Santa Bárbara, em Arroios, a serem transferidos para ali. Durante a Jornada Mundial da Juventude, em 2023, que ocupou algumas das salas com equipas da organização do evento, José Sá Fernandes começou a estruturar a proposta do “Bairro”. “Foi nessa altura que me apercebi que aquilo estava tudo vazio, e é um sítio incrível. Há um cineteatro enorme, armazéns vazios”, explica o ex-autarca ao DN. . No final da JMJ, o anterior Governo (PS) nomeou Sá Fernandes para a apresentação da proposta. O futuro “Bairro do Grilo” pretende reunir soluções de habitação acessível e cultura. O antigo vereador cessou as funções no passado 31 de dezembro, entregando o projeto, orçado em 50 milhões de euros, ao atual Governo. “A maior parte dos edifícios não está em bom estado, claro que precisam de obras e de reforços estruturais, mas para a recuperação de tudo tínhamos à volta de 25 milhões orçamentados e para fazer 200 habitações novas outros 25 milhões. Portanto, podíamos ter ali, em 4 anos, mil pessoas a viver, podíamos ter pessoas a ensaiar música, teatro, dança, pessoas para viver uma ‘casa de fotografia’, para viver a ‘casa de ilustração’”, afirma.Com o apoio público ao projeto, a expectativa agora, dos subscritores da petição e de habitantes da zona, é que a reconversão avance. “Eu deixei tudo na Presidência do Conselho de Ministros. Fiz o relatório, entreguei as coisas, as preocupações, e também entreguei esperança. Aquilo não é um projeto meu, é uma coisa boa para a cidade e para o país”, afirma José Sá Fernandes.