Já não é proibido proibir

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Tendo em conta a opinião avulsa de juízes do Supremo Tribunal Federal, a posição da ministra da Cultura e a saída de cena de Chico Buarque com um "ok, perdi", terá terminado com a derrota de músicos brasileiros do primeiro escalão a "guerra das biografias" que ocupou nas últimas duas semanas mais espaço nos principais jornais do país do que as contradições económicas do governo Dilma, os lances políticos duvidosos da oposição ou os protestos violentos de jovens anarquistas que se julgam modernos.

Prosseguiu em 2011, quando o Sindicato Nacional

dos Editores de Livros decidiu entrar com uma ação direta de

inconstitucionalidade (ADIN) no Supremo Tribunal Federal contra o

artigo 20.º, baseando-se noutro artigo, desta vez do principal

documento legal do país, a Constituição Federal, que impede a

censura e proíbe restrições ao pensamento e à informação.

Agora, nas vésperas da ADIN chegar ao Supremo,

músicos internacionalmente reconhecidos, como Caetano Veloso, Milton

Nascimento, o já referido Chico e outros, juntaram-se a Roberto

Carlos e formaram o bloco Procure Saber que defende a permanência do

artigo 20.º.

Do Rio de Janeiro a São Paulo, passando por

Frankfurt, para onde parte da intelectualidade brasileira viajou a

propósito da feira internacional de literatura que este ano foi

dedicada ao país, o gesto do grupo de músicos foi amplamente

criticado. E, à medida em que o Procure Saber contra-argumentava

(com total inabilidade, aliás), chegou a ser ridicularizado.

No fundo, em choque estão a (eventualidade de)

calúnia, de um lado, e a censura, do outro. Uma e outra são graves

mas a segunda é indiscutivelmente mais grave do que a primeira em

estados democráticos de Direito.

Porque proibir a publicação de biografias é

o que, em tese, está na origem da proibição da imprensa livre, por

exemplo. Os jornais, as rádios, as televisões e, sobretudo, o

universo digital de vez em quando não dizem a verdade, enganam-se,

mentem, difamam. Que fazer? Proibí-los? Lembra a doutrina das

"guerras preventivas" como no faroeste americano em que alguns

colonos dizimavam aldeias índias não fossem os índios vir a

planear algum ataque - uma política seguida séculos mais tarde

por George W. Bush no Iraque.

Ou seja, em democracia quem se sente ofendido

usa os tribunais para ser ressarcido - não pode impedir a priori

que os outros falem, por mais que isso custe e por mais que a justiça

demore.

Mais: mantendo-se em vigor o artigo 20.º,

apenas seriam publicadas biografias bajuladoras de líderes políticos

e outras figuras históricas com elevados custos para a memória

coletiva do país.

Do lado dos apoiantes do artigo 20.º houve

ainda argumentos financeiros. O músico Djavan defendeu que os

biografados lucrassem com aquelas obras, dando a entender que afinal

ser eventualmente difamado já não era tão problemático desde que

fosse previamente pago.

Resumindo: por alguma razão nos EUA, no

Canadá, em Espanha, no Reino Unido ou em França não existe

restrição para publicação mas na Rússia, da China e na Síria

existe.

No limite, o caso lembra a crítica ao

estalinismo de Orwell no popular O Triunfo dos Porcos (A

Revolução dos Bichos, na versão brasileira, ou Animal"s

Farm, no original inglês de 1945), no qual animais explorados

pelo homem se revoltam mas acabam por criar uma sociedade tão

autoritária como a anterior.

Opositores ferozes da ditadura militar, parte

dos enriquecidos e aclamados músicos em causa, agem agora como se

fossem os novos generais do Brasil. Incluindo Caetano, o autor de

tantos hinos contra a ditadura militar como o "É Proibido

Proibir".

Jornalista

Escreve à quarta-feira

Crónicas de um português emigrado no Brasil

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