Não há grandes dúvidas sobre o que aconteceu a 25 de Abril de 1974, mas continua a haver debate sobre o como, o porquê e o que aconteceu a 25 de Novembro de 1975. É esse o principal interesse da data?Irene Flunser Pimentel (IFP) - Penso que é o principal interesse. Ramalho Eanes disse há uns tempos que as datas fraturantes, como o 25 de Novembro, não são para comemorar, são para estudar e discutir. E é justamente isso que deve ser feito. E daí o papel dos historiadores, não é? Devem ouvir as várias partes. O 25 de Novembro é estritamente militar. Não há população nas ruas, como no 25 de Abril, e existe a tentativa de dizer que era uma tentativa revolucionária, à semelhança dos bolcheviques em 1917. Já estive em mesas de moderação com militares de Abril, alguns deles de Novembro, do Grupo dos Nove. Cada um contava a sua verdade, e não quer dizer que estivessem a mentir..É uma questão de perspectiva, portanto.IFP - Acho que sim. Por isso mesmo é que penso que Ramalho Eanes aceitou ir agora a esta comemoração, mas disse que não a apoiava..Há algo de estruturalmente errado em comemorar o 25 de Novembro na Assembleia da República? IFP - Eu acho que há, porque quem tomou a iniciativa de comemorar foi a direita e a extrema-direita, que está neste momento em maioria na Assembleia. Por outro lado, são figuras que não participaram no 25 de Novembro, ou então, quando participaram... Por exemplo, um dos deputados do Chega estava nessa altura no Exército de Libertação de Portugal (ELP), porque também houve uma tentativa de participação da extrema-direita durante o 25 de Novembro. Quem participou verdadeiramente foram os moderados do Grupo dos Nove e o PS. Pacheco Pereira (PP) - Eu não veria em princípio inconveniente em que se comemorasse o 25 de Novembro, desde que fosse de uma forma rigorosa. Ao colocar o 25 de Novembro na Assembleia da República, inevitavelmente coloca-se como um paralelo ao 25 de Abril. O carácter oficial daquelas comemorações, na prática, confronta o 25 de Abril. Se se quisesse comemorar com rigor histórico o 25 de Novembro, é evidente que tem um papel, como vários acontecimentos daqueles anos, na consolidação de um caminho democrático numa altura de grande confusão política e de confrontos enormes. Querem comemorar? Comemorem o Costa Gomes. Tem um papel fundamental.IFP - Exatamente.PP - Coisa que a direita, obviamente, não quer fazer. Comemorem o Vasco Lourenço e os militares dos Nove. Coisa que, evidentemente, também não querem fazer, porque acham que isso é uma sombra para o Jaime Neves, que é o único que eles querem comemorar. Comemorem o Mário Soares e o PS. Comemorem, de alguma maneira, os partidos políticos que conduziram o movimento de resistência à esquerdização, digamos assim, do PREC naqueles anos. Se querem comemorar, comemorem com essas pessoas..O PS tem tido uma posição saudável em relação ao 25 de novembro?PP - Não tem, de todo. Podia ter feito um esforço de fazer comemorações rigorosas. Inclusive, referindo o seu próprio papel, o papel do Mário Soares, do Salgado Zenha e de uma série de pessoas do PS. IFP - Para o ano, são os 50 anos do 25 de Novembro. Este ano são 49.PP - A ideia de comemorar este ano é para confrontar o 25 de Abril.IFP - Mas tens toda a razão. Não se percebe a atitude do PS.PP - É uma mistura de ignorância, pouco respeito pela História...IFP - De gente que não se quer identificar com a direita, mas assim tem a narrativa que a direita faz do 25 de Novembro, que não é verdadeiramente o que se passou...É quase como uma derrota por falta de comparência. PP - É pior do que falta de comparência. Ao procederem como procedem, deixam o terreno livre.IFP - Por exemplo, acho péssimo, do ponto de vista do PCP, não estar presente na Assembleia. Toda a gente devia estar presente, e os deputados aproveitarem aquele momento..Essa ausência do PCP não é muito contraproducente quando a tese de que o partido quis implantar uma ditadura, naquela altura, começa a desaparecer?IFP - Exatamente. O que é que se sabe do 25 de Novembro, e que claramente são factos? A saída dos paraquedistas de Tancos para as várias bases militares. Diziam eles que era para informarem os seus camaradas do que lhes estava a ser feito pelo chefe de Estado-Maior da Força Aérea, que era o Morais e Silva. Em princípio, iriam para o Exército, o regimento ia ser dissolvido, e isto era uma coisa até profissional. Eles provavelmente foram manipulados. Depois, há a atitude do Otelo. Sabemos que foi para casa e não fez nada, que não acionou o Copcon.PP – E a mesma coisa com a Marinha. Informou o Costa Gomes de que não iria participar.IFP - Não iriam, e o próprio Martins Guerreiro foi, com o Rosa Coutinho, suponho, aos fuzileiros dizer-lhes “não intervenham”. Entretanto, os paraquedistas não tinham nem armas, nem aviões, nem nada, porque já tinha ido tudo para a Base de Cortegaça. Inclusive os oficiais. Estavam só sargentos e o major Pessoa, que não sei se ainda era capitão. E isto foi o que se passou. Alguém acredita que o PCP fez um golpe de Estado e ninguém os viu nas ruas? Estavam mobilizados nas sedes? Evidentemente. Como em qualquer daquelas outras ocasiões.PP – Tinha sempre um pé dentro e um pé fora.IFP – O próprio PCP, e isto já é uma interpretação, percebia muito bem que Portugal não iria ficar fora do campo ocidental, até por razões internacionais, pois havia uma détente entre os Estados Unidos e a União Soviética. O que se sabe é que houve desmobilização. E disso há muitos testemunhos. Cheguei a entrevistar o Manuel Pedro, do PCP. Ele chorava, anos depois, dizendo que teve que desmobilizar os seus camaradas. Mas evidentemente que aquilo era uma panela de pressão. Temos que dar o contexto do 25 de Novembro. Todos os dias se falava em guerra civil, em golpe de Estado, contava-se espingardas....E qualquer coisa como uma linha divisória de Portugal, em Rio Maior...PP - O mérito do 25 de Novembro é travar o caminho para a guerra civil. IFP – O Costa Gomes é fundamental. Ele e o Grupo dos Nove travaram os da direita e da extrema-direita.PP – Há duas derrotas. A do dia 25, que é a derrota da ala esquerdista das Forças Armadas, a dos gonçalvistas e dos Copcon, e a de dia 26, que foi a da tentativa de ilegalizar o PCP.IFP – E o que aconteceria depois? Guerra civil. O PCP organizava-se clandestinamente, e as organizações de extrema-esquerda também eram todas ilegalizadas.PP - Há quatro coisas que condicionam a posição do PCP. A mais importante é a perda de influência no MFA. Cunhal faz uma intervenção no Comité Central, de que durante muito tempo só se conheceu parte, em que refere exatamente essa perda de influência.IFP – E no Conselho da Revolução.PP – E em que Cunhal refere a estratégia da ronha. O PCP tem esse fator, que é dominante, tem os ataques às sedes – e tinha resolvido travar aquilo, nem que fosse pela força -, tem a competição com os esquerdistas na rua, que também é um fator de condicionamento, e tem a posição da União Soviética. São os quatro fatores que condicionam a posição do PCP. Depois, na prática, tem sempre uma atitude que é ter um pé dentro e um pé fora. Fala-se muito pouco da estrutura paramilitar do PCP, os Comités de Defesa da Revolução. Estudei um dos casos mais importantes dos CDR, que era Loures. Os serviços municipalizados de Loures, na altura um feudo completo do PCP, tinham um sistema de comunicações próprias, tinham material pesado e tinham uma enorme quantidade de trabalhadores organizados..E armamento? Tinha ou não? PP - O PCP tinha armamento. E, pela primeira vez, estava disposto a usá-lo se houvesse assaltos às sedes. Mas, em muitos casos, armamento de muito pequena importância se houvesse um conflito militar. Tinha era unidades militares que lhe eram próximas. O armamento que existia, chamemos-lhe assim, vinha dessas unidades militares. Mas, na altura, havia armamento de todo o lado. No 11 de Março, a minha organização saiu da clandestinidade porque havia a notícia de que no RALIS se distribuíam armas com bilhete de identidade. Quando lá cheguei, e os outros lá chegaram, já não era preciso bilhete de identidade. E havia um verdadeiro caos naquelas camionetas, porque os tipos da LUAR tinham cartucheiras e tudo. O problema é que o armamento não correspondia às munições (risos). Teve de haver ali um trade-of entre o armamento e as munições. Na altura, era bastante comum as organizações da extrema-esquerda e o PCP terem armamento. Mas é preciso ter em conta que os aparelhos militares e paramilitares do PCP têm duplo controle. Muitos deles foram formados na União Soviética e, aliás, saíram todos em massa. Quando é que o Cunhal percebeu que a União Soviética lhe tinha tirado o tapete? Não é quando sai meia-dúzia de intelectuais, de quadros ou de funcionários. É quando saem em massa os aparelhos militares, os aparelhos de segurança. Ele aí percebeu que alguém os tirou de lá. .Além do risco de aparecer um regime de direita, Cunhal tinha um grande receio de poder haver uma deriva revolucionária muito mais à esquerda, que pudesse tomar o poder e pôr em causa o próprio PCP?PP - O PCP participou em manifestações com palavras de ordem contra o social-imperialismo. A sua principal preocupação era a correlação de forças dentro do MFA. Mas na rua tinha a competição dos esquerdistas. E muita gente do PCP estava também entusiasmada com a rua. Isto era difícil de gerir. Do ponto de vista político, as pessoas esquecem-se de que o 25 de Novembro não alterou nada fundamental. O PCP continuou no Governo, continuou a haver nacionalizações importantes, como nos transportes.IFP - E a extrema-direita, o ELP, continuou a fazer ataques terroristas até 1977.PP - O que verdadeiramente dissolve o esquerdismo são as eleições para a Constituinte. O peso das eleições e dos resultados eleitorais é um factor que vai condicionar...IFP - Mas isso é antes do 25 de Novembro. Porque mostra que a legitimidade eleitoral está na mó de cima. Já não a revolucionária..E depois as legislativas de 1976 cimentam tudo isso, até com sinais maiores de apoio para os partidos moderados.PP - As presidenciais já são mais complicadas. O [Octávio] Pato tem um resultado miserável.IFP – O Otelo tem 16% e há quem ache que foi bastante bom. Mas são 16%. PP - Se quisermos falar da estabilização da democracia, é um processo longo, que verdadeiramente só acaba quando termina o Pacto MFA-Partidos, quando termina qualquer espécie de tutela militar. IFP – E com o fim do Conselho da Revolução.PP - E a eleição de um civil para a Presidência da República [Mário Soares, em 1986]..Se a direita quisesse ter uma data fundadora deveria ser a aprovação da Revisão Constitucional de 1982?IFP – Provavelmente.PP – O esforço de Sá Carneiro na AD não é tanto um esforço de governação. É um esforço institucional para poder acabar com os restos do MFA. No Arquivo Ephemera temos o espólio de Sá Carneiro, e o convite ao PS para fazer parte da AD. E os reformadores, que eram para dar um certo contexto. IFP – Medeiros Ferreira, António Barreto...PP – Os conflitos com o CDS na AD são enormes. E Amaro da Costa é que tem um papel de equilíbrio. Do meu ponto de vista, a eleição de Soares termina o processo. Porque a primeira volta acaba com todos os restos que vinham do PREC. A Pintassilgo ou a tentativa do PCP, com o Salgado Zenha, de manter um sistema de quatro ou cinco partidos equilibrados nos seus resultados eleitorais.IFP – E incluída na transição para a democracia em Portugal, que se iniciou com um golpe de Estado e com o processo revolucionário, está a desmobilização.PP – Um livro do Pereira Marques sobre a LUAR, que se chama “Desejo da Revolução”, fala extamente do luto do efeito de desmobilização que tem o 25 de Novembro.IFP - E os grandes triunfadores do 25 de Novembro? Isso também é importante, não é? O Grupo dos Nove, o PS e Costa Gomes..E também a extrema-esquerda?IFP – Uma parte da extrema-esquerda. O MRPP, o PCP-ML e a OCMLP. Lembro-me da discussão que houve no próprio 25 de Novembro com o Pedro Batista, na sede aqui de Lisboa. “Mas querem dar o poder ao PCP?”, dizia ele..Mais valia a democracia tal como hoje a temos? PP - O PCP estava a crescer de uma forma agressiva. Grupos de extrema-esquerda, que tinham tido uma formação política e teórica antirrevisionista, que se tinham formado depois da dissidência com os chineses, combatiam o fascismo e a ditadura, mas também combatiam o papel do PCP desde antes do 25 de Abril.IFP - E sabia-se que iria ser tudo preso pelo PCP. O MRPP foi preso pelo Copcon. PP - Essas coisas nunca são lembradas, porque existe uma certa visão da História. Quando a gente pergunta qual é a fonte que têm, é muito interessantes que seja a entrevista da Oriana Fallaci, que é manipulada. A Iniciativa Liberal, o CDS, estão todos com a entrevista em que o Cunhal diz que não vai haver democracia em Portugal.IFP – Mas Cunhal também diz que Portugal não sairá da NATO, provavelmente, o que é muito interessante. É uma das perguntas dela.PP - Ela prometeu divulgar as gravações. E nunca o fez. Eu conheço bem o pensamento do Cunhal. É uma coisa um bocado arrogante, mas conheço. E há ali respostas que ele nunca daria. E algumas das respostas que ele nunca daria são aquilo em que hoje a direita pega. Não há mais nada. Conheço bem o que faz a direita. No CDS e na Iniciativa Liberal. E em alguns think tanks, até com ligações universitárias IFP – E em rádios e jornais online, como o Observador.PP – Que tem uma perceção muito rigorosa do papel da rádio, coisa que o Trump também tem nos Estados Unidos. É um papel muito mais eficaz, às vezes, do que o comentário na televisão.Conseguem imaginar este período revolucionário, que ambos viveram, mas com redes sociais, com TikTok, Facebook e Instagram?IFP - Nem telemóveis. Era extraordinário como nos reuníamos. Para já, reunir com muita gente era difícil. E não era imediato. Apesar de que os militares tinham as comunicações, ao contrário dos civis. Comunicações que são fundamentais desde o 25 de Abril. Estamos nas instalações do Rádio Clube Português, que foi o primeiro local a ser tomado, para o MFA poder falar com a população, a dizer para não sair à rua - e saiu. No próprio 25 de Abril, no posto de comando o Otelo ouviu as comunicações do regime..O 25 de Novembro cria uma figura mítica para a direita.IFP - O Jaime Neves? Também não entendo muito bem. Vendo bem toda a atividade do Jaime Neves, muitos dos que não gostam, evidentemente, chamam a atenção de que ele - os militares utilizam este termo, que é horrível - borregou várias vezes. Ou seja, fugiu várias vezes. Por outro lado, o Jaime Neves quis acicatar as questões no 25 de Novembro. PP - É um dos que recebe Cunhal no aeroporto.IFP – Nas vésperas do 25 de Novembro, reunindo ainda com o Grupo dos Nove, o Jaime Neves quer que o Governo e todos vão para o Porto, mas o Vasco Lourenço e os outros dizem que não. O que é que ele queria? Queria ficar para resolver militarmente a “Comuna de Lisboa”. Imagine que ele tinha feito isso. E depois há outras questões. Há três mortos, não só dois. Porque o deputado [Paulo] Núncio só cita os dois mortos dos Comandos. Então, o do outro, da Polícia Militar, não é morto, não é português? E o ataque ao Regimento de Polícia Militar é no dia 26 de novembro, quando tudo já estava resolvido. PP - O Vasco Lourenço estava em contacto com a Polícia Militar, e pelos vistos estava mais ou menos acertado que haveria uma rendição.IFP – Se querem fazer do Jaime Neves um herói, então analisem tudo o que ele fez..É o herói que a direita tem mais à mão?IFP – E, se calhar, também o Ramalho Eanes. Aliás, o Vasco Lourenço diz sempre que ele é que dirigia e o Ramalho Eanes era o seu adjunto.PP- Se quisessem fazer uma verdadeira homenagem, era a Ramalho Eanes. IFP – E ao Vasco Lourenço. E outros que ainda vivem, como o Rodrigo Sousa e Castro. Essas pessoas que fizeram alguma coisa, de facto, e também não deixaram que a direita e a extrema-direita tomassem a dianteira. Mas o problema é que já morreu Costa Gomes..Quais são os piores cenários que poderiam ter acontecido a 25 de Novembro?IFP - Tenho sempre muita dificuldades nisso. Os historiadores não profetizam.PP - Os historiadores fazem prognósticos no fim do jogo. IFP – A História contrafatual tem algum interesse, mas não tem nada a ver com a História. Porque nós só nos baseamos no que aconteceu e que temos de interpretar. PP – E há o fator do acaso. Uma das razões por que às vezes o 25 de Novembro parece confuso é porque há ali coisas subjetivas e pessoais. Um era mais corajoso e outro menos. Não gostava daquele ou não gostava do outro. Eu não acho que aquilo que não se sabe em detalhe altere a interpretação do que aconteceu. O que se passa é que hoje, à direita, o 25 de Novembro foi transformado num fator de luta política por perda de legitimidade. Porque eles não podem falar do ELP, nem do MDLP, não podem falar das bombas e dos assaltos, da mesma maneira que não podem ter o antes do 25 de Abril como referência. Eles têm um buraco na legitimidade em muitos aspetos. Então tem que preencher esse vazio com uma ou outra figura, e ocultar 100. É evidente que isso transforma a comemoração na Assembleia da República..Podcast recupera dias quentes.Irene Flunser Pimentel e Pacheco Pereira, tal como Jaime Nogueira Pinto e Maria Inácia Rezola, aceitaram o desafio do podcast De Abril a Novembro - Os Dias Quentes da Revolução, da Rádio Comercial e da M80, que transporta os ouvintes, com sons de época, explicações de historiadores e a narração de João Reis, a 1974 e 1975..Ao DN, o autor dos textos e entrevistas, Rui Tomás, explica que pretendeu explicar aos mais novos o que sucedeu durante uma “espécie de bebedeira de liberdade”, com muitos sonhos políticos que as pessoas “achavam que podiam realizar”..Irene Flunser Pimentel e Pacheco PereiraLisboa, 22/11/2024 - A historiadora Irene Flunser Pimentel e Pacheco Pereira falam acerca do 25 de Novembro.Irene Flunser Pimentel e Pacheco Pereira(Gerardo Santos)Gerardo Santos | Gerardo Santos