“Shimon Peres, meu pai, dizia para nunca desistirmos da paz”
Álvaro Isidoro / Global Imagens

“Shimon Peres, meu pai, dizia para nunca desistirmos da paz”

Zvia Valdan, filha do antigo presidente israelita, esteve em Lisboa há um ano, mas a conversa não chegou a ser publicada pois deu-se o 7 de Outubro. Agora, com a reação ao ataque do Hamas, aqui está.
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Como é ser a filha de Shimon Peres, que foi um dos fundadores de Israel, primeiro-ministro duas vezes, presidente durante sete anos e prémio Nobel da Paz?
Eu sou a filha mais velha. Os meus pais tinham 23 anos quando nasci. Depois, houve várias fases na carreira do meu pai. A primeira foi quando teve de lidar com a Defesa e de assegurar que Israel sobreviveria, porque de início foi uma luta pela sobrevivência. Nessa altura, tudo era secreto, e de certas coisas nunca podia falar com ele. Porquê? Porque quando eu tinha dez anos ele estava a procurar ajuda de França, em 1956. Havia um embargo de armas e o meu pai decidiu que era preciso alguém ajudar, e França era o melhor lugar para procurar ajuda. Na altura o meu pai não falava uma palavra de francês e nunca tinha estado em Paris, mas sabia História.

A  ajuda de França foi decisiva?
Naquele momento foi crucial. França sentia-se culpada devido à Segunda Guerra Mundial, e com razão, porque os franceses colaboraram com os alemães e sentiam-se culpados por isso. Portanto, tentaram recompensar Israel e era por isso que tinham mais vontade de ajudar do que outros. Tinham de limpar o nome de França em relação a qualquer coisa que fosse contra o povo judeu.

Foi o primeiro momento chave na carreira política do seu pai?
Exatamente. O meu pai foi a Paris com [David] Ben-Gurion que era o primeiro-ministro de Israel e o pai fundador. Reuniram-se com o primeiro-ministro e o ministro dos Negócios Estrangeiros e o meu pai olhou para Ben-Gurion e disse-lhe que talvez aquele fosse o momento certo para lhes pedir ajuda, não apenas a ajuda normal, como também o conhecimento nuclear. Ben-Gurion disse-lhe para avançar e o meu pai disse aos franceses que precisávamos de conhecimento nuclear para criar um centro de pesquisa nuclear.

Era muito próximo de Ben-Gurion? Ambos eram judeus da Europa de Leste, falantes de iídiche.
Nessa altura ele trabalhava muito com Ben-Gurion e este apoiava o meu pai para que ele fosse mais longe. As pessoas perguntavam a Ben-Gurion como é que podiam confiar naquele jovem, porque o meu pai era muito novo, em 1956 ele tinha 33 anos.

A relação com Golda Meir não era   boa, pois  Yitzhak  Rabin era o preferido dela entre os mais jovens?
Havia muita gente que perguntava porque é que Ben-Gurion lhe tinha dado carta branca, por um lado e, por outro, havia muitas movimentações de bastidores, mas Ben-Gurion disse ao meu pai para avançar. Golda Meir não gostou de ser ultrapassada. Mas Ben-Gurion disse duas coisas sobre o meu pai e sobre as razões por que confiava nele: em primeiro lugar porque o meu pai nunca dizia mal de ninguém e, em segundo lugar, porque quando ele aparecia com uma ideia já sabia que era para ser concretizada imediatamente e, por último, porque o meu pai tinha sempre mais ideias do que qualquer outra pessoa. Portanto, Ben-Gurion apoiava-o muito.

Quando o seu pai se tornou ministro,  em 1969, já era adulta. Foi um momento pelo qual já esperava?
Sim. O meu pai era um civil que trabalhava no Ministério da Defesa e que criou, nos bastidores, as infraestruturas para as Forças Armadas de Israel.

E recorda-se de quando foi eleito primeiro-ministro?
Ele esteve 12 vezes no Knesset, o parlamento, foi ministro de quase tudo, mas primeiro-ministro foi só em 1984. Foi uma época em que a política em Israel estava muito equilibrada, metade direita, metade esquerda, e o meu pai percebeu que em vez de dividir, eles se deviam unir. Ele sugeriu uma estrutura que ninguém tinha pensado antes dele, o que era uma das suas especialidades, ter ideias que nunca tinham sido implementadas ou experimentadas…

Está a falar da aliança do Partido Trabalhista com o Likud?
Sim. Entre 1984 e 1986 houve aquilo a que chamámos o Governo de Unidade Nacional. O meu pai reuniu-se com [Yitzhak] Shamir do Likud e os dois decidiram que iriam alternar. Assim, no início do Governo o meu pai seria primeiro-ministro e Shamir seria ministro dos Negócios Estrangeiros e depois trocariam de lugar. Infelizmente, no que me diz respeito, porque quando o meu pai foi ministro dos Negócios Estrangeiros conseguiu alcançar um acordo com a Jordânia. Israel já tinha um acordo com o Egipto, mas não com a Jordânia e o meu pai queria muito esse acordo. Ele fez o esboço do acordo e encontrou-se com o rei Hussein na residência de Lord Mishcon em Inglaterra, pois este tinha sido colega de escola de Hussein. Lord Mishcon telefonou a Hussein e perguntou-lhe se ele se queria encontrar com Shimon Peres e com o diretor-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel. Hussein voou para Inglaterra e encontrou-se com o meu pai em segredo. Depois de jantar, lavaram a loiça porque tinham mandado todos os empregados embora…

O seu pai estava sempre a tentar arranjar uma solução pacífica para o conflito israelo-árabe?
Sim. Neste caso, depois de lavarem a loiça juntos, o meu pai perguntou porque é que não redigiam um acordo imediatamente. Hussein respondeu que sim. Redigiram um acordo manuscrito a que se chamou o Acordo de Londres. Infelizmente, quando o meu pai regressou a Israel, Shamir, que era o primeiro-ministro, recusou-se a aceitar o acordo. Portanto, Israel demorou mais dez anos para fazer por fim a paz com a Jordânia.

Em relação aos Acordos de Oslo , que valeram o Nobel ao seu pai como ministro dos Negócios Estrangeiros, a Rabin como primeiro-ministro e a Yasser Arafat pelo lado da OLP, quando foi à cerimónia,  enquanto israelita e não só como filha de Peres, estava otimista em relação à paz?
Completamente e vou-lhe dizer porquê. Celebrámos já os 30 anos dos Acordos de Oslo, que foram extremamente importantes no sentido em que pela primeira vez houve uma aceitação recíproca, mútua. Portanto, em Oslo, pela primeira vez, o lado palestiniano reconheceu a existência de Israel. Israel tinha, na altura, 45 anos e precisava desesperadamente de um acordo de paz. Assim, pela primeira vez na História, os palestinianos reconheceram Israel e Israel reconheceu a Palestina. O grande, grande erro de Golda Meir foi ter recusado a existência da entidade palestiniana. Não se pode chegar a um lugar onde vivem pessoas há seis, sete, oito, dez gerações e dizer que essas pessoas não existem como uma entidade. É verdade que eles não tinham infraestruturas. Estamos a falar de coisas como a escola politécnica. Israel só foi criado em 1948, mas a nossa politécnica foi criada em 1912. Portanto quase 40 anos antes de o Estado de Israel existir, Israel já tinha uma escola técnica, uma biblioteca, uma universidade. Os palestinianos estavam sob um sistema que dava muito poder, não ao povo, mas a gente que os explorava de muitas maneiras. 

Depois da morte de Rabin em 1995 o seu pai foi novamente primeiro-ministro e, mais tarde, presidente. Apesar de defensor da  solução de dois Estados, em algum momento acreditou na possibilidade de um Estado que misturasse palestinianos e israelitas?
Não. A ideia que sempre subsistiu foi a de uma confederação. O meu pai nunca teve qualquer dúvida sobre o direito de os palestinianos terem um Estado. 

Como é que o seu pai via os árabes israelitas,  cidadãos israelitas, de certa forma divididos porque muitos são palestinianos?
O meu pai sempre considerou que os cidadãos árabes de Israel, que gostavam de ser chamados cidadãos palestinianos de Israel, como cidadãos iguais e como parceiros, nunca os diferenciou. Eles são iguais, porque cresceram em Israel. Os palestinianos que vivem do outro lado, infelizmente não têm um Estado próprio e vivem em condições muito precárias, os palestinianos que são cidadãos israelitas sentem que os podem ajudar, mas não querem viver fora de Israel, que é o seu país e onde têm todos os direitos.

Celebraram-se em 2023 os cem anos do nascimento do seu pai. O seu pai  nasceu no que é hoje território bielorrusso e penso que a sua mãe era da Ucrânia…
Sim, a minha mãe era da Ucrânia e o meu pai era de Vishnyeva que agora é Bielorrússia.

Sei que é linguista. Qual foi a importância da língua hebraica para criar esta nação com judeus  vindos da Ucrânia, do Iémen, Marrocos, Etiópia, etc.?
O meu pai cresceu em Vishnyeva na Bielorrússia, mas a sua escolaridade foi feita em hebraico. A língua falada em casa - estamos a falar de 1923, quando ele nasceu - era o iídiche. Depois, foi para a escola em Vishnyeva onde a língua era também o hebraico, era uma escola que fazia parte de uma rede de escolas hebraico-judaicas.

Era já o movimento sionista?
É importante que as pessoas compreendam que Israel foi fundado e criado graças ao movimento sionista e não devido à Shoa. A Shoa veio depois e ajudou os outros países a votarem por Israel, mas a criação do Estado de Israel deve-se ao movimento sionista.

Voltando à língua hebraica, foi na criação da escola politécnica de que falou, o Technion, que tinha muitos professores alemães, que o voto pelo hebraico foi decisivo?
Sim, foi decisivo e introduziu a ideia de que o hebraico moderno era uma língua de ciência e não apenas uma língua da filosofia e da religião. Essa é a grande, grande diferença. Outra coisa que aconteceu ao mesmo tempo foi a forma como se tornou uma língua materna novamente. Não há outro caso em todo o mundo.

Seria como recuperar o latim para a vida de todos os dias?
Exatamente.

Foi necessário introduzir novas técnicas de ensino? Há  investigação no domínio da linguística?
Sim. Foi isso que fiz na primeira parte da minha carreira, ensinar hebraico a pessoas acabadas de chegar a Israel. Na segunda parte da minha carreira estive a investigar como é que o hebraico se tornou uma língua materna e descobri que foi graças às mulheres. E porquê? Porque as mulheres trabalham como professoras nos jardins infantis, nas escolas, etc. e isso tornou o hebraico uma língua materna de uso diário. É uma história espantosa porque foi um grupo de mulheres jovens que fez uma revolução total em poucos anos. Há pessoas que vêm ter connosco a toda a hora, da Noruega, de França, de Espanha, de todo o lado, porque querem compreender o segredo. A outra coisa que é única e que está intimamente ligada a Portugal é que quando os judeus fugiram da Península Ibérica criaram aquilo a que chamamos uma nova língua judaica.

O ladino?
Exatamente, o ladino. Existem 32 línguas judaicas. Em todo o mundo, onde houvesse uma comunidade de judeus que queriam manter os seus rituais e os seus hábitos, especialmente o ano judeu e celebrar as festas segundo o ano judeu, as comunidades criaram uma língua própria que se torna uma língua judaica. O que é uma língua judaica? Vejamos o ladino, por exemplo: se for falante de espanhol introduz no espanhol palavras hebraicas, cerca de 10% ou 15%, geralmente palavras que são necessárias para a religião, para o calendário, etc., para manter o judaico vivo e assim cria o ladino. Na maioria dos casos é escrito em caracteres hebraicos.

Com o iídiche passa-se o mesmo?
A mesma coisa, na mesma percentagem. O hebraico é injetado no alemão e a língua viaja de uma comunidade para outra na Europa e é sempre escrita em caracteres hebraicos. 

Quando olha para os desafios atuais de Israel , pensa que o legado do seu pai ainda sobrevive?
Completamente. Nós fundámos um centro para a paz e inovação para dar continuidade ao legado em duas direções fundamentais. Uma delas é a paz. O meu pai dizia para nunca desistirmos da paz, continuar sempre a tentar.

Espera que um dia haja paz total com os palestinianos?
Tivemos uma iniciativa, que foi chamada a Iniciativa de Genebra, em que juntámos um grupo de 40 palestinianos e 40 israelitas numa mesma sala donde ninguém saía antes de estar assinado um tratado de paz. Conseguimos! Assinámos um tratado de paz. Ainda não foi adotado, mas está em cima da mesa, digamos assim. O tratado foi lançado pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros do meu pai, que, na verdade, foi o homem que elaborou o Acordo de Londres de que falávamos há pouco.

Há quem diga que o chamado campo da paz  é agora politicamente muito fraco em Israel.
Quem diz isso está enganado. Hoje em dia, a esquerda e a direita no país estão muito equilibradas, com pequena vantagem para a direita, mas quando são feitas sondagens descobrimos sempre uma grande maioria a favor dos dois Estados. Portanto, apesar de haver uma leve maioria de direita, o lado da paz é sempre maioritário.

O seu pai acreditava que os palestinianos também queriam a paz. Agora estão divididos entre o Hamas, a Fatah, a OLP. Continua a pensar que é possível encontrar um líder entre os palestinianos com quem negociar a paz?
Sem dúvida que sim. Em primeiro lugar, é preciso uma liderança que luta pela paz, além de que o mesmo fenómeno que acontece em Israel também acontece na Palestina - por muito divididos que estejam, também existe uma maioria que quer a paz. Acredito que querem fazer a paz com Israel, mas querem que Israel reconheça a identidade deles, a sua existência, a sua autonomia. Esse reconhecimento já foi assinado há 30 anos nos Acordos de Oslo. Agora, há outra coisa que pode ajudar que são os Acordos de Abraão. O meu pai costumava ir a todos aqueles países  árabes, como os Emirados, o Bahrein, Omã… Portanto o meu pai lançou os alicerces dos Acordos de Abraão. Os Acordos de Abraão abrangem os países muçulmanos que desejem falar da paz com Israel, que reconheçam totalmente Israel, mas Israel também tem de reconhecer totalmente a Palestina. Claro que sou filha do meu pai, mas também sou uma ativista pela paz.

É uma otimista?
Claro, sou mulher! Falando de linguística digo que o hebraico e o árabe são línguas irmãs, muito próximas uma da outra. Embora o árabe seja falado por todo o mundo e o hebraico só tenha 10 milhões de falantes, continuam a ser línguas irmãs. Portanto, Israel tem de se assegurar que a região do Médio Oriente se torne no que o meu pai sempre disse: o Novo Médio Oriente. 

Depois do massacre de mais de 1200 israelitas a 7 de outubro de 2023 mantém a crença na paz?
Bem, acho que o que aconteceu ilustra ainda melhor o quão importante é resolver a questão desde as suas raízes, desde o desacordo básico. É extremamente importante. Então, se Israel tivesse resolvido esse problema, talvez não estivéssemos na situação em que estamos agora. Enquanto não houver uma resolução para viver juntos, Israel e Palestina lado a lado, não haverá paz. Isso é claro

Faltam as tais novas lideranças?
Sim, do lado israelita e do lado palestiniano. Os povos preferem viver em paz.

Shimon Peres nasceu em 1923 na Polónia, numa aldeia hoje parte da Bielorrússia. Em 1948, viu nascer Israel ao lado de David Ben-Gurion. Foi ministro de quase tudo, primeiro-ministro e presidente. Nobel da Paz 1994, com Rabin e Arafat, foi casado com Sonia durante 66 anos. Tiveram três filhos, Zvia, Yoni e Chemi. Morreu em 2016.

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