Vinte protagonistas para a independência de Timor-Leste

O primeiro Estado soberano a nascer no século XXI, durante anos resquício de uma descolonização desastrada e vítima da lógica da Guerra Fria, cumpre 20 anos de independência, numa cerimónia que conta com o chefe de Estado português.
Publicado a

No recinto de Tasi Tolo, onde há duas décadas foi oficializada a transferência de soberania das Nações Unidas para a República Democrática de Timor-Leste, decorrem na manhã as comemorações da independência do 192.º país da ONU e a cerimónia da tomada de posse do novo presidente, José Ramos-Horta.

Para assistir ao regresso à presidência do homem que foi a voz no exterior da causa timorense estarão delegações de dezenas de países. A comitiva portuguesa é chefiada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e inclui o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, e a vice-presidente da Assembleia da República Edite Estrela. Rebelo de Sousa e o governador-geral da Austrália David Hurley serão agraciados com a Ordem de Timor-Leste pelo presidente cessante, Francisco Guterres Lu-Olo, antes de cessar funções. Nos últimos dias, Lu-Olo distinguiu 80 timorenses que se insurgiram contra a ocupação indonésia e cinco portugueses que se destacaram pelos seus serviços de assessoria.

A chegada de Ramos-Horta, de 72 anos, à presidência augura novos tempos. Os últimos anos foram marcados por divisões mais extremadas entre partidos políticos e não falta quem augure que o governo de Taur Matan Ruak estará por um fio, embora o novo chefe de Estado tenha dito que irá trabalhar no sentido de fomentar o diálogo e a inclusão.

Escrevia, em 2000, Xanana Gusmão: "A pátria maubere está libertada. O que é que lhe permitiu reivindicar - e alcançar - o estatuto de independência? Foi a sua identidade, uma identidade assente em três componentes fundamentais: a histórica, a cultural e a religiosa. A língua portuguesa e a religião católica são os pilares dessa identidade. Este é o património que constitui a soberania timorense. Uma soberania que será preservada com a mesma dedicação e sacrifício com que foi alcançada a independência. É nesta base que consideramos ser crucial reafirmarmos a nossa personalidade, numa região tão heterogénea em termos de culturas, etnias e trajetos históricos".

A Ramos-Horta cabe agora o papel de dar forma a essa heterogeneidade.

JOSÉ RAMOS-HORTA

Quando a FRETILIN declara a independência de Timor-Leste, em 28 de novembro de 1975, já Ramos-Horta trocara a arma com que tentara deter, em Batugadé, o não declarado avanço indonésio pela diplomacia: estava na Austrália, na sua missão, tantas vezes solitária, de despertar o mundo para a causa timorense. Quando passava por Lisboa, até ao autarca João Soares proporcionar um escritório, fez do Expresso e do DN o seu. A sua distinção como Prémio Nobel da Paz, a par de Ximenes Belo, deu um decisivo empurrão na luta pela independência. Regressa agora à presidência, depois de ter sido MNE e primeiro-ministro.

PETER COSGROVE

Em Camberra, o regime indonésio encontrava o seu maior defensor no que respeita à anexação de Timor. A Austrália deu uma cambalhota com o desenrolar dos acontecimentos e acaba por liderar a missão armada, sob os auspícios da ONU, para assegurar a pacificação do território. O general Cosgrove comandou a missão internacional até à chegada de capacetes azuis. O sucesso da missão ficou manchado com alegações, de militares da Nova Zelândia, de que o comando australiano fazia uso de um centro de tortura secreto.

ALI ALATAS

Ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia entre 1987 e 1999, foi o rosto diplomático do ditador Suharto precisamente nos anos decisivos da causa timorense. A sua experiência na ONU, pela qual havia sido enviado especial no Camboja e na Birmânia, acabou por ser insuficiente para manter Timor-Leste como a 27.ª província indonésia. Ao visitar Timor-Leste independente, lamentou "tanta violência e vítimas" e disse que sempre procurou uma "solução política".

JORGE SAMPAIO

Aquando da sua morte, os media internacionais relevaram o papel do Presidente Sampaio - as suas intervenções nas Nações Unidas e na CNN são disso exemplo -, que no início do seu primeiro mandato, em 1996, declarou ter como objetivo a autodeterminação de Timor. "A questão de Timor-Leste é sobre um povo e sobre o essencial: o essencial da dignidade humana, do direito internacional e da consciência moral e universal", disse na ONU um dos mais incansáveis partidários do povo timorense.

SÉRGIO VIEIRA DE MELLO

José Ramos-Horta contou em certa ocasião ter pedido ao secretário-geral da ONU que o seu representante em Díli não podia ser "um burocrata sem coração". A resposta de Kofi Annan foi "a pessoa certa para resolver qualquer problema". O diplomata brasileiro foi na prática o último administrador da região, entre novembro de 1999 e maio de 2002, ao serviço das Nações Unidas. A sua carreira brilhante acabaria num atentado terrorista em Bagdad, em 2003.

ANA GOMES

Começou a seguir o dossiê timorense era assessora diplomática do Presidente Eanes. Com a queda de Suharto, em 1998, integra as negociações chefiadas por Fernando Neves. É depois enviada para a Indonésia, primeiro para a secção de interesses na embaixada dos Países Baixos, por fim como embaixadora, onde permaneceu até 2002. Visitou Xanana Gusmão na prisão e traduziu a sua defesa, que viria a ser publicada no The Guardian, e desempenhou um papel de liderança, quer antes do referendo, quer depois, ao ajudar os deslocados em Timor ocidental a regressar, ainda que sob risco da integridade física. A sua incansável atividade não se limitou à defesa do povo timorense, tendo também normalizado as relações entre Lisboa e Jacarta.

KOFI ANNAN

O diplomata ganês, sucessor de Boutros Boutros-Ghali na chefia da ONU, teve um papel determinante no sucesso das negociações entre Portugal e a Indonésia. Designou o paquistanês Jamsheed Marker seu representante especial para Timor. Mas foram outros altos funcionários, como Tamrat Samuel ou Francesc Vendrell, a fazerem a diferença. Mais tarde, foi Ian Martin quem se distinguiu na Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET).

VÍTOR MELÍCIAS

O padre franciscano desempenhou as funções de primeiro e único comissário para o apoio à transição em Timor-Leste, um cargo criado em 1999 pelo governo de Guterres. A ajuda humanitária não se limitou ao território timorense, tendo também financiado o exílio de timorenses que se encontravam em território indonésio. Outro clérigo português que se distinguiu pela causa timorense foi o bispo de Setúbal Manuel da Silva Martins.

ANTÓNIO GUTERRES

Foi chefe do governo português mais empenhado na questão timorense. Com Jaime Gama à frente do MNE e uma equipa de diplomatas que recuperou o tema desde o mandato na Comissão dos Direitos Humanos da ONU, iniciado em 1987, o PM e o Presidente Sampaio não pouparam esforços para alcançar a vitória diplomática. Ao apresentar a sua candidatura a secretário-geral da ONU, em 2016, indicou o caso timorense como uma inspiração para se juntar às Nações Unidas.

MANUEL CARRASCALÃO

Como Xavier do Amaral, Nicolau Lobato ou Xanana Gusmão, estudou no seminário. Mas, ao contrário dos restantes, foi partidário da integração na Indonésia, depois de ter fundado a UDT com os irmãos Mário e João. Anos depois reconhece ter sido um "fantoche dos indonésios" e funda, em 1998, o MURPTL, movimento pela independência. Durante a repressão das milícias acolhe centenas de refugiados em casa, que acaba por ser visada, resultando na morte do seu filho.

TAUR MATAN RUAK

José Maria Vasconcelos, conhecido pelo seu nome de guerra, foi o primeiro chefe do Estado-Maior General das Forças de Defesa de Timor-Leste, herdando na prática as funções que detinha nas Falintil. O antigo guerrilheiro, que sucedera a Konis Santana, passa para a política. Eleito presidente em 2012, está por trás da fundação do Partido Libertação Popular, através do qual chegou, em coligação, a primeiro-ministro, em 2018.

B.J. HABIBIE

Engenheiro aeroespacial com longa ligação ao regime ditatorial (ministro da Investigação e Tecnologia durante 20 anos), foi chamado em 1998 para a vice-presidência durante a crise que acabaria por levá-lo ao topo da hierarquia dois meses depois. Ao fazer a transição da Indonésia para a democracia, começou por oferecer uma autonomia especial a Timor e, meses depois, anunciou um referendo para os timorenses escolherem entre autonomia e independência. No leito da morte, recebeu de Xanana um abraço que fica na história.

MARI ALKATIRI

Em 1970 partiu para Angola para prosseguir os estudos, mas já então criara um grupo clandestino pela libertação de Timor. Em 1975 regressa a África, desta vez para Moçambique para estabelecer ligações, mas a invasão indonésia obriga-o ao exílio. Em 1996, participa na reunião fundadora da CPLP. Regressado a Díli, lidera a Fretilin e torna-se no primeiro governante do novo país, até 2006, cargo que repete durante poucos meses, entre 2017 e 2018.

WIRANTO

O homem conhecido somente como Wiranto foi o odioso comandante das forças armadas indonésias durante o período de violência e desestabilização de Timor, antes e depois do referendo de 1999, que levaram à fuga de umas 250 mil pessoas. Investigadores das Nações Unidas reuniram "milhares de páginas de provas" contra o general, mas Díli preferiu as boas relações com Jacarta à justiça. Ex-candidato à presidência, Wiranto chefia o Conselho Consultivo do presidente.

BILL CLINTON

Com receio de que Timor-Leste se transformasse em mais um território vermelho, em 1975 Gerald Ford e Henry Kissinger terão dado luz verde à invasão da antiga colónia portuguesa. Washington muda de posição em 1999, quando Madeleine Albright visita Xanana na prisão e pressiona para uma missão de paz da ONU. Quando se espera o pior das milícias pró-indonésias, o presidente dos EUA adverte Habibie e, em paralelo, o secretário da Defesa William Cohen e o comandante do Pacífico, almirante Dennis Blair, apertam com o comandante das Forças Armadas indonésias, Wiranto.

MAX STAHL

Em novembro de 1991, no cemitério de Santa Cruz, o jornalista inglês, que entrara no território como turista, capta imagens do massacre das tropas indonésias e muda o curso da história. A cobertura de jornalistas como Adelino Gomes ou Jill Jolliffe, ou o assassínio de seis repórteres anglófonos, em 1975, não desencadeara a comoção internacional do vídeo de Stahl, que morreu exatos 30 anos depois de Sebastião Gomes, o jovem assassinado pelas forças indonésias e que levou a multidão a dirigir-se ao cemitério.

XANANA GUSMÃO

Antigo guarda-redes da Académica de Díli, militar do exército português e poeta (assinava Shá Na Na), foi durante o extermínio de 78/79 um dos três sobreviventes do comité central da Fretilin na frente armada. Como líder da resistência, a partir de meados dos anos 80, que construiu a sua aura mítica, reforçada após a sua prisão (1992-1999), um pouco à imagem de Mandela (que chegou a visitá-lo). Aura que perdeu em parte após o seu mandato como primeiro presidente pós-independência, ao entrar em rota de colisão com a Fretilin de Alkatiri. Foi ainda primeiro-ministro e lidera desde a fundação o partido CNRT.

EURICO GUTERRES

Líder da milícia Aitarak, financiada por Jacarta, foi acusado de ter cometido crimes contra a humanidade, além de responsável pela destruição de Díli e de várias aldeias após o referendo. Condenado em 2002, acabou por ser absolvido dos crimes que custaram a vida a 1400 pessoas em 2008 pelo Supremo indonésio. Mancha nas relações entre Timor e Indonésia, foi agraciado no ano passado pelo presidente Joko Widodo com uma das mais altas distinções.

MEGAWATI SUKARNOPUTRI

Quem melhor do que a filha de Sukarno, o fundador da Indonésia, para simbolizar a transferência de poder? Recém-chegada à presidência, Megawati Sukarnoputri reconhece a independência de Timor-Leste, assiste à cerimónia em Taci Tolo e dá as mãos a Xanana Gusmão, no que é o momento alto do seu consulado (2001-2004).

XIMENES BELO

Ao chamar a atenção da comunidade internacional dos crimes indonésios o bispo de Díli foi uma voz que furou o silêncio repressivo, tendo por isso sido agraciado com o Nobel da Paz. A história recente do território tem uma ligação estreita à Igreja Católica, que no fim da ocupação japonesa na Segunda Guerra, inicia uma campanha de evangelização. A vinda a Portugal, em 1985, de Carlos Ximenes Belo, que dá conta da repressão indonésia e do apoio popular à Fretilin, muda a perceção em Lisboa, a começar por Mário Soares. Mais tarde, já Presidente, convoca um Conselho de Estado para impedir um acordo que previa o reconhecimento da integração de Timor com a realização de eleições na Indonésia se não fosse perguntado aos timorenses sobre o seu estatuto.

cesar.avo@dn.pt

Diário de Notícias
www.dn.pt