A vitória de Donald Trump acabou por ser mais fácil do que aquilo que as sondagens previam. Ficou surpreendido? Parcialmente surpreendido. Porque as sondagens apontavam todas no mesmo sentido, para uma corrida um bocadinho mais renhida. Sendo certo, por outro lado, que a dinâmica verificada nas últimas semanas apontava claramente para Trump..Acha que foi uma vitória de Trump ou foi uma derrota de Kamala Harris? As duas coisas. Foi uma vitória estrondosa da parte de Trump quando se considera os últimos anos. Os problemas que lhe foram causados e, em alguns casos, que ele causou. Com os tribunais, com os procuradores... Pelo menos o caso de Nova Iorque foi claramente politicamente motivado. Até podemos discutir os outros, mas não há dúvida nesse, até porque o próprio procurador admitiu que foi, claramente, politicamente motivado. Portanto, considerando esses casos e a hostilidade da comunicação social... 98%, ou quase, das notícias eram-lhe desfavoráveis. Considerando isso tudo e a derrota que teve há quatro anos, é um comeback espantoso. Isto só aconteceu uma outra vez na História dos EUA: o presidente regressar depois de uma pausa, digamos assim. É, claramente, uma vitória indiscutível..E Harris? Ela é, e eu sempre achei que era, uma má candidata. Que teve uma oportunidade, sobretudo ali depois da Convenção, para articular uma visão, para explicar as suas políticas e optou por ir aos programas de entretenimento. E, portanto, revelou-se inautêntica, não inspirou. É claramente uma derrota dela. Mas irei mais longe. É uma derrota do Partido Democrata, que tem agora de avaliar esta deriva esquerdista, wokista. Precisa claramente de ser revista, se querem ser viáveis no futuro. E depois acho que há aqui uma questão que foi absolutamente essencial, que foi a escolha do vice-presidente..Harris falhou ao escolher o governador do Minnesota, Tim Walz? Sim, porque se tivesse escolhido Josh Shapiro [governador da Pensilvânia] dava outro sinal, um sinal de moderação, para além de ter uma maior probabilidade de ganhar a Pensilvânia. E isso dava outra dinâmica. E também porque o escolhido, Tim Walz, mostrou ser alguém que tinha dificuldades com a verdade e enfraqueceu a candidatura. E isso vê-se, por exemplo, no voto masculino. Claramente. A aposta em Tim Walz não surtiu efeito. .Mas não terá sido só no voto masculino. Foi ficando claro, ao longo da madrugada, que Trump estava a fazer melhor do que há quatro anos e Harris estava a fazer pior do que Joe Biden em 2020. Nas mulheres, no voto latino, dos afro-americanos, dos jovens... Eleitorado onde Harris precisava de se sair especialmente bem. Sim, claramente. Talvez o mais surpreendente seja o voto das minorias. Isto tendo em conta as sondagens à boca das urnas - é preciso depois ter uma noção mais fina disto. Mas a penetração aparente que Trump teve junto das minorias, em termos republicanos, é uma coisa fantástica. Isto aponta para a erosão significativa, séria da base de apoio do Partido Democrata. Estas minorias, de uma forma geral, são relativamente conservadoras. Eu acho que, mais uma vez, a agenda woke, esta coisa do que é ou não uma mulher, este tipo de posicionamento não é popular junto de católicos, de minorias. Os latinos e mesmo a comunidade afro-americana é muito conservadora em muitas coisas. Mais uma vez, acho que foi a derrota das elites e de toda esta agenda que não está sincronizada com o mainstream da sociedade americana..Ainda para mais quando o que parece ter influenciado mais o voto foi a economia. Terá sido esse o grande tema. Num certo ponto de vista. Acho que quando as pessoas respondiam às sondagens que era a economia, em bom rigor o que queriam dizer era o custo de vida. Porque, vamos lá ver, a economia não está assim tão mal. O problema era o custo de vida resultante da inflação galopante que, em larga medida, foi criada pela Administração com os vários pacotes legislativos que custaram triliões de dólares. As pessoas culparam a Administração pelo custo de vida. Por cá, quando as pessoas dizem que estão preocupadas com a economia, muitas vezes referem-se à conta do supermercado, à habitação. .Ainda não estão contados todos os votos, mas parece que Trump também vai ganhar o voto popular, que não tinha ganho em 2016. Isso não significa que os EUA estão menos divididos, mas que leitura se pode fazer? Pelo menos retira aquele argumento de que não teve voto popular. Absolutamente indiferente, porque as regras são as do Colégio Eleitoral e perder o voto popular não lhe retira a legitimidade política. É como é. Em Portugal, um partido que tenha 44 ou 45% tem a maioria absoluta, ninguém questiona que são as regras. Mas se esse mesmo partido tiver 51%, retira-se aquele argumento de que não teve a maioria do voto popular. Nesse sentido, é positivo..O castigar do Partido Democrata também se vê no facto de os republicanos terem reconquistado a maioria no Senado e, tudo indica, manterem a da Câmara dos Representantes. O que significa isso para a América nos próximos dois anos? Significa que vamos ter uma agenda muito acelerada, porque é provável que daqui a dois anos os republicanos percam essa maioria. Pelo menos, historicamente, costuma acontecer. Nas Eleições Intercalares o partido que tem este tipo de maioria acaba sempre por a perder. Logo, há aqui uma janela de dois anos em que a política vai acelerar, quer dizer as iniciativas republicanas vão ser constantes, vai ser um tsunami de atividade nos próximos tempos para aproveitar esta janela. Porque nos dois anos seguintes, uma vez que Trump já não se pode recandidatar, arrisca ser um lame duck, como eles dizem. Um presidente com menos poder. E aí já se está a falar de J. D. Vance como um sucessor..Acha que o futuro vice-presidente vai lançar a candidatura à Presidência em quatro anos? Acho que será candidato, porque o vice-presidente invariavelmente é. Ele está na pole position. Haverá outros, com certeza que sim, porque os republicanos têm boas alternativas. Mas Vance é um sucessor que já vislumbra um trumpismo sem Trump..A dúvida é se pode haver esse trumpismo com um Trump. Há anos chegou a falar-se que a filha poderia ser a sucessora, apesar de ela ter estado muito menos presente nesta campanha do que tinha estado nas outras. Sim, isso pode acontecer, mas o vice-presidente será sempre alguém que está ali. Acho que o ponto essencial é que, quando Biden ganhou há quatro anos, as pessoas, sobretudo na Europa, pensaram que Trump tinha sido um acidente de percurso. Agora talvez tenhamos de reavaliar essa análise. Se calhar estes quatro anos de Biden é que foram um acidente de percurso. E a nova normalidade é isto. É o Partido Republicano com uma nova base de apoio, com uma nova agenda política e relativamente bem-sucedida. É nesse sentido que Vance garante já esse trumpismo sem Trump..E do lado de Harris. Acha que a carreira política dela está acabada com esta derrota ou poderá voltar a ser candidata em 2028? Acho que acabou, não porque foi derrotada, mas porque mostrou que era uma má candidata. Os democratas terão de encontrar uma linha política mais... Nós falamos sobre isto todos os dias. Que há uma descolagem entre as elites, as instituições, e o país real. E há. O Partido Democrata tem de voltar a entender o país. Acho que essa mensagem parece muito clara..Já o Partido Republicano está hoje feito à imagem de Trump e do movimento MAGA de uma forma que não estava há oito anos. Trump estava então rodeado de alguns moderados que poderiam, de alguma forma, suavizar o seu discurso. Agora já não existem esses moderados à volta dele, ele está rodeado de pessoas como ele. Como é que pode ser agora a Presidência? Não sei se concordo com a expressão moderados. Quer dizer, estava rodeado de pessoas que não estavam sincronizadas com ele, com a rutura que Trump queria fazer. Se eram moderados ou não... algumas daquelas pessoas eram doidos [risos]..Certo, mas agora ele terá muito mais margem de manobra para, na realidade, implementar aquilo que quer. Certo, por alguma razão. O que acho que há agora é calo, é experiência. Trump já sabe agora como é que funciona, como é que se governa. Ele, quando chegou à Casa Branca, nunca tinha governado nem o condomínio dele, provavelmente [risos]. Portanto, agora há outra experiência e há, ou pelo menos eu acho que há, um maior sentido da responsabilidade. Porque sabe que o legado dele, que neste momento é misto, estará em jogo. E provavelmente haverá um esforço de escolher melhor a sua equipa. Provavelmente, porque com Trump também nunca se sabe. Mas o facto de ele se ter rodeado de Elon Musk, de Tulsi Gabbard e esta gente é um sinal interessante. Porque foi um sinal de que tencionava ir para além do próprio partido e verdadeiramente reconfigurar a política americana..E a nível internacional? Há coisas que vão chocar muita gente, sobretudo na Europa. Acho que a questão da Ucrânia provavelmente irá chocar muita gente, porque apresentou-se a questão da Ucrânia como um combate de vida e de morte, a democracia e a ditadura, etc. Mas nunca verdadeiramente se ofereceu uma estratégia para como é que se punha termo à guerra, como é que se resolve..E acha que o Trump vai conseguir cumprir a promessa de acabar com a guerra? Até agora não foi oferecida uma saída, uma estratégia real. A estratégia era aberta. Mas vamos lá estar 100 anos? Mil anos? Ninguém sabe. O tempo necessário em política não existe e uma guerra é um problema político. Os militares estão ali para dar tempo aos políticos para encontrarem uma solução. E essa solução nunca foi apresentada. Agora vai ser necessário, porque há uma saturação notável nos EUA e na Europa há uma desorientação muito grande sobre o que fazer. Isso vai ter de ser resolvido. E a forma como o conflito foi apresentado, quase como uma guerra existencial, como uma cruzada moral, toda essa visão vai embater com a realidade. Porque há realidades no terreno. E acho que vai haver uma tentação, como houve há oito anos, de culpabilizar os EUA, especificamente Trump, pelos problemas europeus. O problema da fraqueza da Europa não é um problema dos americanos, é um problema dos europeus, que não conseguem resolver os problemas da Europa. Mas é mais fácil culpar Trump..Vamos ver o que fará em relação à NATO, em relação ao protecionismo económico... Mas o protecionismo está dos dois lados. A Europa também tem posições protecionistas. Veja o que está a acontecer com a China e os EUA. A política comercial de Biden não foi menos protecionista. Aliás, algumas das tarifas que foram impostas por Trump, Biden nunca as eliminou. É uma tendência mais global do que outra coisa qualquer. Não era só de Trump - essa tendência, na prática, é bipartidária nos EUA. E como a China também faz exatamente a mesma coisa, esse é o mundo que está à nossa frente..Alguma mensagem que pense ser importante em relação às Presidenciais americanas? O que eu acho importante é que haja alguma calma e não se enverede por visões catastróficas. É a escolha dos americanos. Pode revelar-se uma boa escolha ou uma má escolha. Não sabemos. .susana.f.salvador@dn.pt