Uma encruzilhada remota em África reabre para os migrantes que se dirigem para a Europa
Carmen Abd Ali/The New York Times

Uma encruzilhada remota em África reabre para os migrantes que se dirigem para a Europa

No verão após generais tomarem o poder num golpe, a UE suspendeu a ajuda financeira ao governo - e em resposta os generais cortaram o acordo de migração. Os portões estão de novo abertos, e vagas de migrantes cheios de esperança estão outra vez a passar por eles, para satisfação de muitos em Agadez.
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A estação de camionetas de Agadez, uma remota cidade de casas baixas de tijolo de taipa no Níger, uma nação no centro da África Ocidental, está novamente a fervilhar.

Todas as semanas, milhares de migrantes da África Ocidental e Central partem da estação desta cidade que é uma das portas do Sahara numa caravana de pick-ups, numa viagem de dias até ao norte de África onde depois tentarão atravessar o Mediterrâneo com o objetivo de alcançar a Europa.

Durante anos, esta porta esteve fechada, pelo menos oficialmente. O governo do país, amigável com a Europa, proibiu a migração a partir de Agadez e, em troca, a União Europeia despejou milhões de euros nos cofres do Níger e na economia local.

Mas no verão passado, após generais terem tomado o poder no Níger num golpe militar, a União Europeia suspendeu a ajuda financeira ao governo - e em resposta os generais cortaram em novembro o acordo de migração com a União Europeia. Os portões estão novamente abertos, e vagas frescas de migrantes cheios de esperança estão outra vez a passar por eles, para satisfação de muitos dos habitantes da cidade.

“É com a migração que equilibramos os nossos rendimentos”, diz Aicha Maman, uma mãe solteira que tem um negócio de ajuda aos migrantes e no ano passado esteve presa em Agadez acusada de tráfico.

A decisão do Níger, no entanto, inquieta os responsáveis europeus, que temem que o fim da parceria com aquele país leve muitas pessoas a tentar a traiçoeira viagem para norte.

A via terrestre do Níger através de Agadez é encarada por muitos migrantes como mais barata e menos perigosa do que a via marítima no Atlântico - partindo da costa Ocidental de África em frágeis embarcações em direção às Canárias. Mesmo com a via do Níger oficialmente encerrada, a migração em direção à Europa em 2022 atingiu o ponto mais alto desde 2016.

A migração está uma vez mais no topo da lista de prioridades de diversos governos europeus, e os partidos de extrema-direita que querem expulsar os imigrantes estão a subir meses antes de eleições cruciais para o Parlamento Europeu, um dos três pilares institucionais da União Europeia.

Emmanuela Del Re, a principal diplomata da União Europeia para a região de África que inclui o Níger, disse recentemente que a junta militar do Níger estava a retaliar contra a União Europeia por esta se recusar a reconhecê-la: “Estão a fazer chantagem contra a União Europeia com a imigração”.

Em Agadez, um posto avançado no deserto que há séculos é uma encruzilhada de rotas de comércio e migração, milhares de famílias dependem do transporte, do alojamento e da venda de bens aos migrantes.

Com a migração novamente legal, voltaram as oportunidades: Os jovens estão a comprar pick-ups novas para levar as pessoas para o norte. Negociantes cujo negócio era facilitar alojamento e transporte aos migrantes foram soltos da prisão.

Numa destas  manhãs, na sua casa de tijolos de taipa vermelha, Maman disse que tencionava recomeçar o seu negócio de alojar migrantes em casas a que os locais chamam “guetos” e pô-los em contacto com os camionistas - um negócio do qual depende há anos para sustentar os seus filhos e os seus pais.

“Achamos desde sempre que a migração é uma atividade económica”, diz Mohamed Anacko, o funcionário público mais importante da região de Agadez. “Não é tráfico, é transporte”.

Numa destas manhãs dois homens na casa dos 20 descansavam num abrigo nos arredores de Agadez. Os homens, que identificamos apenas com os nomes próprios para não serem detetados pelas autoridades, tinham chegado da vizinha Nigéria uns dias antes trazendo com eles cantis, óculos de sol e lenços para a cabeça necessários para a viagem de três dias até à Líbia.

Umas semanas antes a viagem teria sido ilegal pela lei anti-migração do Niger, mas agora podem ir livremente para o norte. Um deles, Abubakar, disse que ia em busca de um emprego na construção na Líbia, mas já que era fã do Real Madrid tencionava no futuro ir para Espanha. O outro, Adamou, disse que tinha os olhos em Paris mas que primeiro quaisquer pequenos trabalhos na Líbia serviriam.

Amadou veio da Nigéria com os olhos em Paris. À direita, Mabinty Conteh, de 23 anos, com a sobrinha de 9 meses, tenta chegar a Itália. -
Carmen Abd Ali/The New York Times

Atualmente, todas as semanas saem de Agadez cerca de 100 pick-ups com 30 passageiros encafuados em cada uma, com escolta militar como protecção contra bandidos. Antes do governo do Níger ter revogado a lei no ano passado, umas poucas dezenas de camiões saiam ilegalmente, dizem as autoridades locais e investigadores.

Há poucos incentivos para manter baixo o número destas caravanas: quando o Níger começou a aplicar a legislação anti-migração em 2016, milhares de locais perderam a sua única fonte de rendimento. Agadez tornou-se essencialmente no posto fronteiriço da União Europeia, a milhares de quilómetros das fronteiras europeias.

Um número incontável de pessoas que transitam pelo Níger nunca tentam chegar à Europa; muitos trabalham em países do Norte de África durante alguns anos antes de regressarem a casa.

Ainda assim, assustada com a crise migratória de 2015 quando mais de um milhão de pessoas chegou à Europa vinda sobretudo do Médio Oriente e de África, a União Europeia apressou-se a manter os imigrantes à distância, dando apoio financeiro a alguns países chave para a travessia em troca de controlos fronteiriços mais apertados.

Para o Níger, foi uma troca apetecível

Desce 2014 até ao golpe do verão passado, a União Europeia forneceu quase mil milhões de euros em ajuda bilateral ao governo do Níger, segundo números oficiais da UE, além das centenas de milhares gastos por diversos países europeus.

A União Europeia prometeu também ajudar a encontrar novos empregos àqueles cujo modo de vida vinha da migração na região de Agadez. Mas funcionários locais na cidade dizem que os prometidos fundos beneficiaram apenas cerca de 900 das 6 500 pessoas envolvidas no negócio da migração.

“Aos que estavam a fazer milhões com a migração foi-lhes oferecido muito menos”, diz Rhoumour Ahmet Tchilouta, um investigador em questões de imigração de Agadez, referindo-se aos milhões na moeda local, equivalentes a milhares de euros que havia quem ganhasse num mês.

Mesmo assim, mais de 4 milhões de migrantes transitaram por Agadez desde 2016, segundo a Agência para as Migrações das Nações Unidas.

Os que procuram partir escondem-se nas casas do “gueto” ocultadas atrás de altos portões metálicos em zonas residenciais. Ou passam ao lado da cidade escapando à vigilância policial através de trilhos desconhecidos, com o resultado que milhares desaparecem ou morrem, segundo as organizações humanitárias.

“O Sahara engole um número incontável de migrantes, tal como o Mediterrâneo”, diz Azizou CheChou, dirigente do Telefone de Alarme do Sahara, uma organização sem fins lucrativos que resgata migrantes perdidos no deserto.

Dezenas de milhares de outros passam por Agadez na direção oposta: de regresso do Norte de África, escorraçados por milícias na Líbia ou forças de segurança na Argélia. Em Agadez, a Agência das Nações Unidas para as Migrações repatria-os para os seus países de origem com a ajuda financeira da União Europeia.

Agadez tornou-se numa encruzilhada onde os que procuram atingir o Norte de África se cruzam com os que regressam a casa nos seus países da África Central ou Ocidental, e onde colidem as suas histórias de esperança e sofrimento.

Uma manhã no mês passado, numa dessas casas delapidadas, uns quantos homens da Serra Leoa que esperavam por serem repatriados conversavam com outros migrantes do seu país que se dirigiam para norte.

Mabinty Conteh, de 23 anos, com a sobrinha de 9 meses, tenta chegar a Itália.
- Carmen Abd Ali/The New York Times

Entre eles estava Mabinty Conteh, de 23 anos, que transportava a sua sobrinha de nove meses. Conteh disse que a sua irmã, a mãe do bebé, tinha morrido no ano passado, e que os seus pais tinham morrido de ébola há anos. Ela queria chegar a Itália através da Líbia mas estava a ficar sem dinheiro.

“Já não tenho nenhuma família”, disse Conteh, que vendia roupas na Serra Leoa. “Não tenho nada”.

Os seus compatriotas tentaram dissuadi-la, partilhando histórias de violência sexual e agressões por guardas fronteiriços na Argélia, e escravatura sexual na Líbia. Mais de uma dúzia de migrantes descreveram em entrevistas as suas detenções em condições horrendas nas prisões argelinas, e terem sido forçados a caminhar durante horas pelo deserto antes de terem sido trazidos para Agadez.

Alfred Conteh, um camionista de 29 anos da Serra Leoa (nenhuma relação familiar com Mabinty Conteh), descreveu como os detidos numa prisão argelina estavam com tanta sede que vendiam uns aos outros garrafas de urina. Conteh disse que estava há meses para ser repatriado.

“Estou cansado disto tudo e só quero ir para casa”, disse.

Mas nem leis nem histórias de atrocidades desencorajam os migrantes.

“As pessoas querem sair, por muito que sejam impedidas”, diz Dembla Abalo, um migrante senegalês que se instalou em Agadez e agora faz a ligação entre migrantes e camionistas. “Não encorajamos, não desencorajamos. Só facilitamos.”

Com Omar Hama Saley

c.2024 The New York Times Company

 Este artigo foi publicado originalmente em The New York Times

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