Um português em Nagasáqui. Gambarimasu!

Foi-me dada a responsabilidade, privilegiada, de fazer convergir estórias do Japão. São estórias na primeira pessoa, que pretendi descontínuas, acaso impressionistas porque me autorizaram o afeto. De resto, estas estórias de vivência no país são resultado de uma espécie de peregrinação, por vezes aleatória, ao longo de mais de vinte e cinco anos.

Desde já, um preâmbulo: mudar para um país estrangeiro, sobretudo se voluntariamente, implica um atrevimento. Ao partirmos, impomos a nós próprios (e também aos outros) um limiar de expectativas e objetivos que pretendemos cumprir.

Estava prestes a entrar num espaço "reinventado" porque a literatura, o cinema, os relatos de outrem e os testemunhos da história me tinham deixado conhecer um certo Japão. E todos eles me tinham igualmente imposto expectativas, que ulteriormente pretendia vivenciar e confirmar.

Havia, porém, um problema: eu já partia apaixonado. O meu primeiro contacto com a língua e cultura japonesas, longínquo e quase clandestino, tinha sido em meados da década de oitenta, no ambiente boémio da Cité Internationale Universitaire de Paris. Prossegui esses estudos de forma intermitente em uma outra capital europeia, até finalmente os tentar formalizar em Lisboa, antes da partida para o Japão. Contudo, descobriria mais tarde que, a não ser pelo despertar do gosto pela cultura, todos esses estudos de pouco me valeram.

Cronologicamente, a minha estória japonesa começa em agosto de 1995, em Nagasáqui, nas vésperas da cerimónia de aniversário do lançamento da bomba atómica. Era quase um estigma da cidade, mas era um momento profundamente sentido e de grande solenidade. Acompanhei-o já emocionalmente em bastidores.

No primeiro semestre desse ano, tinha sido aceite para participar num programa de intercâmbio do governo japonês (programa JET). Iria integrar um gabinete de Relações Internacionais da Prefeitura de Nagasáqui, desempenhando funções de Coordenador de Relações Internacionais (CIR, na sigla inglesa), sob a égide da internacionalização.

Tudo parecia funcionar, mas começavam alguns anseios, proporcionais à responsabilidade e ao lugar da representação.

Por um lado, integrava o primeiro grupo de Portugal a participar nesse programa e, por outro, iria ser colocado em Nagasáqui. Sendo português, não era uma cidade qualquer. Apesar da classificação de província, pela posição periférica que ocupa e pela população, era uma cidade assumidamente histórica, de mérito interno reconhecido, se considerada a sua relação com o exterior.

Nagasáqui tinha deixado escapar o Japão ao mundo e, sobretudo, tinha-o deixado entrar pelas suas portas. Portugal assumia parte dessa responsabilidade, pelo que para mim viver nessa cidade seria um atrevimento adicional. Era uma cidade que eu já tinha visto representada num biombo namban, onde a "história" se iria cruzar com as minhas estórias.

Ademais, havia flagrantes analogias que a aproximavam de Lisboa: no imediato, a orografia da cidade! As colinas e calçadas tornam a cidade fisicamente única no contexto urbano japonês. Tudo era especial e a gastronomia facilmente entrevia essa influência ancestral.

Revelar-se-ia igualmente fácil descobrir os registos físicos da presença portuguesa de outrora. Ainda que se tenha perdido imenso com a catástrofe atómica, mantinha-se algum património.

À medida que eu descobria a cidade, surgiam pessoas, as quais, já sabendo a minha nacionalidade, se aproximavam para me sussurrarem ao ouvido que eram cristãs. Ao dizerem-no, faziam discretamente o sinal da cruz. Julgava esse "desabafo" inexplicável, se considerado o Japão contemporâneo, profundamente secular, onde qualquer cidadão poderá exercer o seu direito à liberdade religiosa. O que dizer dessas pessoas, convictamente católicas, que numa confissão mais tardia me diziam saber partes da missa em latim? Uma reminiscência da tradição de sobrevivência silenciosa da comunidade cristã, após o banimento do cristianismo? Tinha lido sobre isso em tempos idos, o que reduzia a possibilidade de verosimilhança. Nunca imaginei ser testemunha direta desse processo em "95, logo após a minha chegada.

A amálgama desses princípios religiosos da matriz cristã com o carácter endógeno japonês dar-lhes-ia, sem dúvida, uma resistência estoica invejável para qualquer pretensão missionária ocidental. Percebia agora um dos resultados do excesso de proselitismo religioso do passado, que também fazia parte da responsabilidade portuguesa. O Museu dos Mártires, na altura dirigido pelo saudoso Padre Yuki, igualmente um historiador dedicado à cultura portuguesa e com quem tive a honra de socializar, oficializa e reconhece a provação dos Mártires Cristãos executados no século XVII. Em 1987, o Pe. Yuki leva o Papa João Paulo II a Nagasáqui para a canonização. Esta seria uma "história", não meramente proselitista, mas também política e social que, naturalmente, não cabe nesta estória.

Uma revelação

Um dos momentos de máximo orgulho, associados ao facto de ser português em Nagasáqui, foi a participação no desfile de um dos maiores festivais, considerado património cultural a nível nacional: o Okunchi.

Ultrapassar-me-ia neste espaço a explicação pormenorizada do festival, fundado em 1642, e que tinha como um dos propósitos encontrar cristãos escondidos pelos jardins da cidade, após o banimento do cristianismo. Daí o ritual do garden showing (庭見せ, niwamise). O nosso orgulho justifica-se quando um dos bairros denominado

Douza-machi desfila com uma caravela portuguesa, fazendo referência ao universo namban. Foi meu privilégio (mais um) poder participar no desfile em 1996, como capitão, pelo que não posso deixar de partilhar convosco esse momento fotograficamente. O Festival decorre sempre em outubro e cada bairro (machi) apresenta-se de 7 em 7 anos. A próxima apresentação para Portugal será em 2027.

Igualmente impressionante foi a minha deslocação a aldeias remotas da prefeitura, para a convivência direta com locais que reduziam o contacto com Portugal apenas aos livros de história. Era recebido em festa e com a exibição da nossa bandeira. Ouvi muitas narrativas.

Nagasáqui exibe muitos registos da nossa presença, os quais desconhecemos. E nem sempre a religião foi um elemento unificador. Mantenho a intenção, quase uma obrigatoriedade, de os dar a conhecer em Portugal.

Mais um desafio que o Japão me apresenta!

Falei-vos há pouco da descontinuidade da minha escrita, como um alibi para me perder no tempo, sem preconceitos. Sinto-me, por isso, à vontade para voltar ao dia 07 de agosto, porque nesse dia surgiu o meu primeiro dilema em relação ao Japão: foi-me dado a conhecer o meu apartamento.

Um T0 de 15m2, que me dava 15 razões para começar a (re)pensar a minha sobrevivência no Japão.

Ao entrar, uma enorme surpresa: não havia uma mesa, não havia uma única cadeira, não havia uma cama. Na cozinha, nem um garfo, nem uma colher e muito menos um prato. Em vez disso, umas portas de correr de madeira (que separavam a cozinha da sala/quarto), um tatami, um futon, vários pauzinhos (para comer e cozinhar) e objetos que, por não os conhecer, me faziam sentir desconfortável.

Vi, de relance, uma porta do outro lado da cozinha e achei genuinamente que seria o resto do meu apartamento. Uma das pessoas que me acompanhava, disse-me em tom hesitante: «Não há resto do apartamento. Aquela é a porta da sua casa de banho.» Dentro da casa de banho só cabia uma pessoa de pé. Senti-me um presidiário! Uma vez mais, eu era uma testemunha direta (aparentemente sem culpa formada) do famoso espaço doméstico japonês, em contexto urbano, de que também tanto ouvira falar.

Todavia, o que nesse momento se tornava num motivo consciente de quase arrependimento, tornar-se-ia mais tarde num dos momentos mais poéticos da minha presença no Japão, e até da vida, com assumido orgulho.

O mais grave de todo o processo era que eu não encontrava "referências". Eram as minhas referências portuguesas e, em última instância, ocidentais, que me garantiam a segurança e o conforto físico e mental. O pior é que essa ausência de referências começava precisamente na esfera do privado: na minha casa, no espaço de maior sacralização.

E....foi assim com quase tudo. A partir desse momento foi um processo de desaprendizagem: perder ou reequacionar grande parte das minhas referências, considerando o novo contexto cultural, a língua, os gestos, a postura, o olhar; tudo fazia parte do mesmo universo.

Descontinuamente, mais um flashback até ao dia 8 de agosto, aquando do início formal das minhas funções no Gabinete de Relações Internacionais da Prefeitura. Aqui as razões para me assustar com o Japão seriam mais numerosas e secretamente comecei a comedir o meu entusiasmo.

Entrava num espaço de grande convicção, num espírito resoluto de funcionalismo público, o qual só mais tarde percebi tratar-se de um microcosmo no Japão. Cometi, assim, um erro relativamente comum: tomar o todo pela parte e a parte pelo todo.

Para começar, o problema do meu "individualismo" e a total inadequação da minha linguagem. Pouco ou nada conseguia verbalizar e os meus gestos ou atitude (também fisicamente considerada) ainda não eram compensatórios. Havia, então, a fuga para o sorriso ou para o silêncio. E aqui começava outro problema: uma quase inversão de valores.

Descobri (sempre mais tarde) que o sorriso não era necessariamente universal. Existia um contexto cultural que o definia, de forma mais ou menos explícita, e o silêncio poderia ser afinal, inadvertidamente, uma excelente forma de comunicação.

Por desconhecimento, acabei por fazer más escolhas.

Entretanto, descobri, e ao contrário do sorriso, a universalidade de comportamentos humanos que, com maior ou menor veleidade, se sobrepõem à cultura: ciúme, inveja, desprezo, aversão, hostilidade, constrangimento, vulnerabilidade e egoísmo (este último apenas meu).

Ninguém estava preparado para ninguém e, como sempre, esta era mais uma descoberta obviamente tardia. Havia poucos fatores a contribuir para o sucesso. Por um lado, muitos japoneses avisavam-me da reputação do escritório que me esperava: "Olhe os três kapas", diziam. Ou seja: kiken, kitanai e kitsui (aproximadamente, algo como: perigoso, mesquinho e duro).

Por outro, o meu individualismo e desconhecimento do contexto em que me inseria conduziam-me ao egoísmo social.

Em poucos dias tinha de conhecer e apresentar-me a largas dezenas de pessoas, submeter-me a rigores institucionalmente burocráticos, fazer discursos sem opinião, sem nunca conhecer o protocolo.

Eu já não era um turista ou visitante, nem sequer um viajante, estava a caminho de me tornar mentalmente num cidadão de Nagasáqui.

À medida que a tensão aumentava, e a natural pressão social se exercia, já não havia a fuga para o silêncio e o sorriso já era mais codificado.

Decidi que, não podendo verbalizar as minhas intenções (linguisticamente mantinha-me deficiente), poderia compensá-las com o estudo da cultura, que eu prontamente começava a admirar. Passei a ser mais moderado nos gestos e no meu individualismo, o qual era percecionado, não raras vezes, como uma forma agressiva de poder.

Mas eu tinha de fazer alguma coisa que mostrasse ao "meu grupo" que também lhes pertencia. Em poucos dias, a partir de umas notas deixadas pela minha predecessora (nacional de um outro continente) numa gaveta quase abandonada, conseguia fazer o inesperado: conceber, editar e imprimir uma newsletter para toda a comunidade estrangeira residente na cidade.

Construir um cinecartaz, estar a par de todos os eventos culturais da cidade, desenvolver várias secções temáticas era, para quem não falava e muito menos sabia ler japonês, uma tarefa incomportável. Ademais, era uma tarefa que exigia "contactos locais" que pareciam inatingíveis a alguém acabado de chegar à cidade. Consegui! E talvez o tenha conseguido por ter feito um pacto com a divindade. Não houve reação no escritório, mas alguns olhares pareciam de estímulo e motivação.

Se em casa me sentia prisioneiro, aqui pressentia o purgatório. Esta era uma categoria intermédia (ainda reversível) que, com otimismo, me podia trazer a redenção: a esperança de me devolverem o paraíso, sem nunca abdicar das minhas expectativas iniciais. E a espera valeu a pena!

A pouco e pouco, algo começava a acontecer e, em muitos casos, era a magia do afeto. De mim para os outros e no sentido inverso. Comecei a perceber que o Japão não se limitava àquele corpus demasiado pequeno que era o meu escritório. Embora não o pudesse ignorar, como uma parte integrante dessa realidade, não era, de todo, abrangente. Insisti na descoberta de uma atmosfera circundante, exterior a esse presídio, o que tornou o Japão admirável e dignificante. Finalmente, nessa descoberta, fui muito bem-sucedido.

Impõe-se agora (infelizmente a posteriori) uma verdade: esse gabinete foi a experiência mais totalizante, mais transformadora, catalisadora da minha mudança.

Reitero o parágrafo anterior: apesar de ter sido difícil lidar com esse círculo mais restrito do poder local, representativo suponho de uma parte profunda do Japão, hoje sou capaz de agradecer a todas essas pessoas por me terem obrigado a redefinir os meus limites, tendo interferido positivamente com o autoconhecimento.

Ainda neste contexto, um episódio talvez curioso, que põe em contraste os valores de dois mundos: se inicialmente o meu individualismo e franqueza eram penalizantes, servia agora um propósito "público".

No meu escritório (já falo dele com orgulho!) sempre que havia uma dúvida sobre um determinado tópico e pretendiam uma opinião mais sincera dirigiam-se a mim, na esperança do meu barómetro de frontalidade estar a funcionar.

«Acha que isto está bem e se adequa ao que pretendemos fazer?» E eu era realmente honesto na minha apreciação: «Não! Acho que deveria reformular». A minha quase agressividade era uma garantia adicional de confiança e, afinal, reconhecida. A facilidade de dizer um "não" explícito, fazia de mim uma pessoa com um superpoder. E o meu elogio era igualmente sentido. Claro que todas estas "ocorrências", já no final da minha presença (dois anos), decorreram naturalmente em segredo. Um sigilo que vejo agora quebrado e com o vosso testemunho.

A partir de um determinado ponto, tudo começou, então, a mudar: comecei a sentir a cidade e a usar a língua mais espontaneamente. Já o fazia com algum carinho, sentindo a rima, por exemplo, o que facilitava a "compreensão" do humor, eminentemente cultural!

A língua era de igual modo o que se revelava mais melindroso e até obscuro: sendo um reflexo cultural, perpetuava proporcionalmente um mundo de hierarquias, cheio de binómios e contrastes. Não eram apenas os caracteres (kanji) que se interpunham na comunicação. Tinha, afinal, várias formas de me apresentar dependendo do meu interlocutor. Até os automatismos da linguagem obedeciam a formas de cortesia, existia o pormenor das partículas honoríficas, no eterno respeito pelo interlocutor. O uso consciente de um registo de (in)formalidade seria, aliás, um dos indicadores do à-vontade perante a língua e, quantas vezes, testemunhava a impossibilidade de tradução, sem um suporte cultural. Aparentemente, o desafio da língua não era só um problema de conteúdo.

Este fascínio pela língua tornava mais íntima a minha relação com o Japão!

O mesmo acontecia com a vénia. O protocolo nunca me indicou os graus de inclinação, apenas me referindo vagos indicadores. A observação aproximava-me das situações, mas sem a devida exatidão.

Mais óbvio, mas controverso, surge agora o contacto físico. Absolutamente proibitivo como forma de cumprimento, e muito menos como exibição de emoções, foram muitos os constrangimentos que presenciei. Exceto nas festas de trabalho (as Enkai) onde depois de acabarem nada se tinha passado, porque um pouco de sake tornava o nosso comportamento mais permissivo e nos ajudava a esquecer.

Não imaginam, com certeza, o meu primeiro abraço a um grande amigo japonês. No mundo ocidental, pelo menos como o perceciono, o contacto físico é um elemento de desinibição de relações, sobretudo entre familiares ou amigos mais próximos. Sendo este amigo (ainda hoje) o meu irmão japonês, decidi, de repente, dar-lhe um abraço. E foi um abraço muito apertado, proporcional ao meu afeto.

Por sermos muito próximos, senti mais do que embaraço, um pânico na sua reação.

Aquilo que foi um gesto espontâneo de um qualquer europeu/ocidental, mas sobretudo de um mediterrânico, sugeriu no depositário do meu abraço um gesto algo sexualizado. Depois de esclarecido o contexto, e perante a confirmação da nossa eterna amizade, pediu-me que o abraçasse de novo porque nunca um familiar o tinha abraçado dessa maneira. Palavra passa palavra e tinha gente em fila para sentir um abraço português.

A representação da minha experiência ainda não terminava. Após dois anos na Prefeitura, prolonguei a minha presença no Japão com outras funções: dava apoio ao Consulado Honorário de Portugal em Nagasaki e dava aulas na Universidade Católica. Era um leitorado diplomático que congregava não só alunos da universidade, como também de uma comunidade apoiante de Portugal, alguns de uma declarada elite sociocultural, que viam agora uma excelente oportunidade para aprofundar a língua.

Essa elite jamais me abandonou. Deu-me a conhecer outras partes e realidades do Japão que fizeram de mim um estrangeiro privilegiado. Na verdade, tive acesso a imensos eventos para os quais era convidado apenas por ser português.

Bilhetes para a estreia do Kabuki e do teatro Nô, em Kyoto (na primeira fila), para o Sumo, em Tóquio (uma demonstração de cultura, que a transmissão televisa não deixa passar). Fiz programas televisivos em direto e um documentário sobre um famoso capitão do século XVII que se suicidara ao largo da baía de Nagasaki. Por ironia, ou por vontade cósmica, um dos primeiros capitães a chegar ao Japão nesse século chamava-se Pedro Almeida. Foi o padre Yuki que me chamou a atenção para esse aparente "fait divers", ainda assim marcante no acréscimo de responsabilidade.

Entretanto, ao sair da prefeitura, mudava-me para uma casa em perfeito antagonismo com o meu apartamento inicial: no cimo de uma das colinas de Nagasáqui, com três pisos, feita de madeira importada da Finlândia (daí uma sauna), dois jardins, com paredes rasgadas a vidro, que ao acordar me permitiam, em simultâneo, ter uma vista para o mar, as montanhas e a cidade.

Novamente, uma experiência contrastante que o Japão me proporcionava. Agora até com alguma excentricidade.

Justificações

Aquela experiência inicialmente desagradável no escritório, muito se deveu, reitero, à minha parca preparação. Apesar de estarmos num espaço que pressupunha a internacionalização, para o qual me tinham chamado, impunha-se um compromisso de 50%. Isto é, a tolerância perante a minha incompreensão, mas sobretudo um esforço da minha parte para facilitar a integração.

Percebi a muito custo o significado da conceito de harmonia japonês (wa), da amigabilidade e da união, como princípios standard nas relações humanas japonesas.

O evitar conflitos, a discórdia harmoniosa, a dificuldade em dizer não, tudo fazia parte dos mesmos princípios que eu não reconhecia. Aliás, só muito mais tarde me apercebi do significado dos gestos que no início me faziam.

Repetidamente, era o individualismo versus grupo, a frontalidade versus a relação coesa de um grupo que interage em harmonia, apesar de manifestas divergências.

Um indivíduo só existe na relação com os outros, num espaço onde as relações humanas aparecem em primeiro plano, depois do indivíduo. Eu próprio, enquanto professor, senti essa verdade.

Tendo já ensinado dezenas de nacionalidades do mundo ocidental todos estão prontamente disponíveis para responderem a uma questão, levantado o braço para o efeito.

No Japão, ao fazer uma pergunta, confrontava-me com o silêncio do meu grupo. Nenhum aluno, por melhor que fosse, ousava esticar a mão no ar porque ao fazê-lo corria o risco de se destacar do grupo ao qual pertencia. No início, tive de questionar a reitoria sobre a situação. Depois, tornou-se claro.

É neste sentido que Hara Satoshi enfatiza a forma como a sociedade japonesa se baseia nas relações humanas, em contraste com o individualismo ocidental, criando um novo conceito de contextualismo. Em vez do princípio cartesiano do "penso, logo existo" ele sugere "estou unido, logo existo" com base nos valores japoneses da interação humana. 1

O escritório da Prefeitura tinha-me ensinado tudo isso. Não era um pedaço de purgatório, mas sim um bom espaço de expiação de pecados.

Entretanto, a minha diáspora pela cultura japonesa continuava. Os conflitos minimizavam-se, a admiração aumentava perante a descoberta e, de facto, devolveram-me o paraíso. Isto porque, no código dos 50% de que havia falado, eu estava liberto da pressão social de que um nativo podia ser alvo. Cumpria os códigos locais e não só respeitava a diferença como a tolerava e me agradava.

Comecei a "entender" e nesse momento, sim, começou uma aprendizagem consciente.

Porém, o conhecimento de códigos culturais originava outros problemas. Por exemplo, quando me ofereciam alguma coisa, soube demasiado tarde que a deveria ter recusado, em nome das boas regras de cortesia. E devia ter recusado, no mínimo, duas vezes, sob pena de me acharem mal-educado. Efetivamente, sempre que isso me acontecia, eu agradecia e aceitava "à primeira". Claro, era um estrangeiro! Imaginava um japonês a dizer: "Yappari gai(koku)jin da!"

À medida que ia identificando códigos e rituais, seguia-os piamente: perante um novo convite, dizia "Não, muito obrigado", esperando uma segunda ou terceira investida, para finalmente poder aceitar um delicioso banquete.

Contudo, era comum um japonês não esperar, nem imaginar que um estrangeiro dominasse esses códigos, pelo que desistia à segunda vez que me convidava. O conhecimento começava a trazer-me desvantagens: comecei a perder oportunidades!

Tudo no Japão se mostrava minucioso, harmonioso e os conflitos e contrastes extremos eram entendidos como parte integrante da cultura, adicionando-lhe sentido. Eram esses binómios que criavam uma tensão permanente com um dinamismo próprio, um pulsar perfeitamente individualizado. Comecemos pelos clichés que qualquer país projeta.

Penso que não será difícil, ao falar no Japão, nos surgir, por um lado, a Geisha e o Samurai, por outro, marcas industriais e tecnológicas.

A meu ver, isso é o Japão na forma como consegue conciliar padrões da sensibilidade estética tradicional com níveis de tecnologia. Trata-se de manter valores tradicionais que (in)conscientemente sobrevivem às investidas da contemporaneidade.

Imagine-se a beleza da espontaneidade de tantos rituais do quotidiano rural por oposição à excentricidade urbana. Essa tensão entre binómios, aparentemente sem grande desconforto, entre o antigo e o moderno, o sénior e o júnior, o individual e o coletivo, o público e o privado, perfaz o Japão.

Novamente, a tolerância no espaço público leva à coexistência pacífica de representações sociais que se antagonizam: uma elegante idosa de quimono e bengala não desvia o olhar perante a aproximação de um jovem punk, de visual singular, que se senta ao seu lado numa carruagem de metro.

Acima de tudo, comecei a sentir que o Japão "agia" de forma profundamente personalizada em qualquer espaço, mesmo nos mais globais de tipologia urbana, quase subvertendo o conceito de "Não-lugar" 2. Isto é, mesmo os não-lugares se individualizam, assumem identidade própria, se "japonizam" como uma possível boa contribuição para o resto do mundo.

O regresso ao ocidente

Começava, ao fim de alguns anos, um novo processo de desaprendizagem que se revelava agora ainda mais angustiante. Tecnicamente experienciava o "choque cultural inverso".

Já tinha vivido fora do país, mas nunca numa cultura que me desse esta amplitude de diferencial.

Teria de redefinir referências, reequacioná-las (porque já não eram ocidentais) e esta adaptação fazia com que não pudesse olhar para a minha cultura da mesma forma.

Foi um processo doloroso voltar à realidade da sociedade ocidental, e não necessariamente portuguesa, porque parte da minha ressaca foi curada em Nova Iorque. Iniciei, quase de imediato, um projeto com a igualmente saudosa Professora Paula Escarameia, responsável pela Missão Permanente de Portugal nas Nações Unidas. Uma das vantagens foi ter transportado para lá esse sentido de depressão social, o que pouparia Lisboa.

Quando afirmei que o Japão me tinha transformado, foi ao ponto de evitar situações de egoísmo social: tentar ocupar o mínimo de espaço possível num transporte público, atravessar fora de uma passadeira ou de um sinal e, mais vergonhoso ainda, fazê-lo com um sinal vermelho para os peões. Eram pecados que já não podia cometer, por impossível expiação. Era o respeito e a disciplina que o Japão me exigira e que o ocidente espontaneamente nunca observará.

Mas fui mais longe: tendo sido um fumador (muito feliz) durante quase 40 anos (o Japão era muito civilizado com os fumadores), a partir de "95 jamais ousei deitar uma beata para o chão. Adquiri um cinzeiro portátil, o qual mantenho como recordação, e tinha o zelo de despejar esse cinzeiro ao fim de umas horas num espaço adequado ou na minha própria casa, ao final do dia.

Lembro-me vividamente de um nova-iorquino me ter interpelado na rua, quando me viu encostado a um pilar a fumar e a deitar a cinza para o meu cinzeiro. Perguntou-me com curiosidade a nacionalidade e questionou-me ingenuamente se em Portugal todos faziam a mesma coisa. Este tinha sido sempre o meu dilema: representava 10 milhões de pessoas, o que me deixava pouco espaço para grandes irreverências.

Mas não resisti. Respondi-lhe que sim, que todos os portugueses faziam a mesma coisa e, aparentemente, não entendeu a ironia do mesmo registo. Prosseguiu a marcha boquiaberto.

Este foi um dos muitos contributos do Japão na interação em espaços de serviço público, no respeito pelo outro, em harmonia: não comer em público, não atender o telefone quando se está fechado numa carruagem, por exemplo.

O Japão tinha-me tornado num cidadão quase modelar.

De volta a Lisboa

Uma nova inversão de valores, atropelava o meu quotidiano.

Em 1998 estive ao serviço do Pavilhão do Japão na Expo "98, como relações públicas, e liaison entre dois universos culturais que Lisboa conseguiu unir.

O pavilhão do Japão protegia-me porque era outro microcosmo, onde havia partilha e reconhecimento de códigos.

Apesar de passar temporadas no Japão, já não o fazia enquanto residente, já me sentia um marginal. Ao voltar para Lisboa (ou para outro ponto do mundo), sentia-me uma personagem das fábulas proibidas de Alberto Moravia 3. Desta feita, um cavalo marinho que vivia num lugar distante e tão gélido que os pensamentos congelavam no ar. Desse modo, via-se obrigado, tal como os seus conterrâneos, a pensar coisas simpáticas sobre os outros. Ao mínimo deslize, num pensamento mais ousado, tipo "Que camisola tão feia!" lá aparecia a frase num balão escrita a gelo.

O cavalo marinho entrou em profunda depressão e decide migrar para os trópicos, na esperança de conseguir a grande liberdade de pensamento. À medida que desce sente os pensamentos a derreterem-se no ar. Finalmente diz: "Que camisola tão feia!" e nada aparecia escrito. Era a garantia da sua liberdade e atrevia-se até a pensar outras coisas sobre os novos companheiros. O pensamento escalava e um novo problema surgia: a insegurança de não saber aquilo que os outros pensavam sobre ele, mesmo dando uma opinião falsa. É então que decide voltar para o Ártico e "ver" o que os outros pensam, mesmo não sendo um pensamento genuíno, apenas um pensamento que permita viver em harmonia.

Por um processo metafórico, evoco essa analogia. Eu próprio queria voltar ao Japão. Tinha penalizado a minha sinceridade, franqueza e frontalidade em nome da harmonia e do bem geral e agora precisava disso.

A cortesia na interação social, o respeito pelo outro, o silêncio ao esperar pelo meu interlocutor, a profunda lealdade, o altruísmo genuíno que só uma amizade japonesa pode entrever. Mesmo sob acusação de lirismo, todos estas palavras marcaram a minha interação com o Japão. E isso fazia-me querer voltar.

Se mudar para o Japão tinha sido um ato de coragem, tornou-se igualmente válido ao voltar para o ocidente.

Mais uma indecisão

De novo, a perceção precipitada sobre tudo o que vemos e ouvimos.

Achava que o facto de os japoneses irem massivamente aos templos no dia de Ano Novo fazia deles pessoas muito religiosas. Os meus amigos sempre o negaram e contra-argumentavam: «Todas as pessoas no ocidente que celebram o Natal e têm uma árvore de Natal em casa, são igualmente religiosas?».

Pensei, mas não retorqui. Com efeito, os japoneses nunca foram capazes de me responder qual era a religião que professavam, sem hesitação. Parecia-me ambígua a relação desembaraçada entre o Budismo e o Xintoísmo. Na realidade, muitos teóricos confirmam que os japoneses não são religiosos, pelo menos não no sentido em que as religiões monoteístas o definem.

Esta amálgama harmoniosa entre as duas religiões, absorve outros elementos ancestrais, o que a torna a questão religiosa algo eclética e me fez desistir.

Por fim, o pragmatismo

"Gambarimasu!" ou "Gambatte kudasai!" são inquestionavelmente palavras-chave da cultura japonesa (para o melhor ou para o pior).

Numa tradução livre: "dar o meu melhor", "esforçar-me ao máximo". Uma expressão do quotidiano japonês, que me foi dita precisamente quando cheguei ao escritório em "95, e que eu, de ânimo leve, interpretei apenas como "boa sorte". Novamente, mea culpa!

Naturalmente que essas expressões premeiam a forma como a sociedade japonesa pode criar pressão sobre o indivíduo, pressupondo um grupo dominante. Porém, apresentam-se igualmente como um conceito dinâmico e um elemento que pode ser transformador, passível de mudança, motivação e incentivo. Em última instância, traduz a importância da ação, dos desafios e, para os japoneses, a diligência da ação é fundamental. O pragmatismo na consecução de um objetivo deriva da mentalidade japonesa.

Apesar de, ao voltar, eu ter recuperado o meu individualismo, apliquei-lhe filtros pela "(de)formação" japonesa: a harmonia e a preocupação com os interesses do grupo, na relação com os outros, mantém-se relevante.

A expressão japonesa "Ikigai" (o significado e a razão da vida) equaciona os interesses individuais e reforça o nosso "gambarimasu".

Adenda

O meu discurso não pretende ser voluntariamente apologético, porque é igualmente crítico e realista, julgo, como garante da minha sinceridade.

O meu "atrevimento japonês" foi uma escolha consentida porque antes de partir já tinha algumas realizações académicas e experiência de trabalho em contexto internacional. O facto de ser mais velho era adjuvante dessa decisão. Talvez por isso a minha relação com o Japão tenha tido um impacto demasiado próprio, tendo-me marcado de forma diferente perante outras experiências do antes e depois. Foi a cultura japonesa que me acolheu, me magoou, me defendeu e eu defendi, em expressão de gratidão.

O património de memórias fez-me convergir estórias e promover a cultura japonesa. Contar mais estórias, será eternamente uma missão. Gambarimasu!

Diretor da LanguageCraft - Línguas, Artes e Cultura

1 HARA, Satoshi - Fall seven times, get up eight: aspects of Japanese values. [Londres] : Gilgamesh Publishing, 2019. 238 p. ISBN 978-1-908531-90-2.

2 AUGÉ, Marc - Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Trad. Lúcia Liba Mucznik. Venda Nova : Bertrand, 1994. 124, [3] p.

3 MORAVIA, Alberto - Fábulas proibidas: fábulas de escárnio, de amor e de maldizer. Trad. Manuel Martins de Sá. Lisboa : Editorial Notícias : Instituto Italiano de Cultura em Portugal, [D.L. 1982]. 92, [1] p.

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