Um ano depois, Brasil lambe feridas, ainda abertas, da tentativa de golpe

Um ano depois, Brasil lambe feridas, ainda abertas, da tentativa de golpe

Na data que assinala a tentativa de golpe de 2023, que já gerou 30 condenações em tribunal, Lula convocou todos os governadores para celebração da democracia. Mas os mais próximos de Bolsonaro não vão comparecer.
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O muito português “onde é que estavas no 25 de Abril?” tem desde o ano passado uma versão brasileira: “onde é que você estava no 8 de Janeiro?”. Os dois protagonistas, indiretos, dos atos de vandalismo que depredaram as sedes dos três poderes, em Brasília, a pedir um golpe militar no país estavam longe da capital federal. O candidato dos golpistas, Jair Bolsonaro, em Orlando, nos Estados Unidos, e o alvo da ira deles, o recém-empossado presidente Lula da Silva, em Araraquara, cidade paulista a 800 km do Planalto, do Congresso e da sede do Supremo Tribunal Federal (STF).

Bolsonaro publicara por aqueles dias nas redes sociais um vídeo que levou, meses depois, 79 procuradores do Ministério Público a assinarem uma representação acusando o ex-presidente de ter cometido o crime de incitação, previsto no artigo 286 do Código Penal, com pena de até seis meses de prisão e multa. Na peça, o ex-presidente defendia que Lula não tinha sido eleito pelo povo e sim pelos juízes do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mais tarde, em depoimento à polícia, Bolsonaro disse que publicou o vídeo sem querer, por estar sob efeito de medicação em virtude de ter sido internado com crise intestinal.

Já Lula decidira, um dia antes dos ataques, juntar-se a dois ministros em Araraquara, cidade sob um temporal que matou seis pessoas e derrubou uma ponte. Foi o prefeito local, Edinho Silva, que lhe mostrou no telemóvel as primeiras imagens da destruição em Brasília. De um momento para o outro, Araraquara tornou-se a capital do Brasil e a sala do prefeito, como conta o próprio no livro Uma Cidade em Luta pela Vida, da Pandemia ao 8 de Janeiro, um gabinete de crise. Lula quis regressar a Brasília imediatamente mas foi parado por haver risco real de atentado nos aeroportos, à partida ou à chegada.

Um ano depois do maior stress que a república brasileira viveu desde a redemocratização de 1985, Bolsonaro está em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, de férias na casa de praia. Lula, pelo contrário, estará em Brasília presidindo a um evento no Congresso com 500 autoridades. “Convido todos os governadores a um ato aqui em Brasília para lembrar o povo que no dia 8 de Janeiro se tentou dar um golpe mas que ele foi debelado pela democracia deste país”, convocou o presidente.

Mas mesmo que a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 tenha sido debelada, a 8 de janeiro de 2024 a divisão no Brasil segue profunda. Tarcísio de Freitas, governador do estado mais populoso, São Paulo, e tido como sucessor de Bolsonaro como candidato presidencial, alega estar na Europa para não comparecer. Romeu Zema, governador do segundo estado mais populoso, Minas Gerais, também apontado como delfim do ex-presidente, ainda não confirmou a presença. E outros governadores de direita alegam férias marcadas, compromissos inadiáveis e até a realização de check-ups médicos para falharem o evento.

“Esse evento é uma chanchada do governo Lula”, disse, a propósito, o senador Hamilton Mourão, que foi vice-presidente de Bolsonaro, em entrevista à Rádio Gaúcha na terça-feira passada, num sinal claro de que o 8 de janeiro ainda provoca divisão acalorada na política e na sociedade brasileiras. Essa divisão acalorada atingiu proporções ainda mais dramáticas em entrevista de Alexandre de Moraes, juiz do STF que presidia ao TSE à época das eleições e é, desde então, o principal alvo do bolsonarismo, depois de Lula, ao jornal O Globo. “Um dos planos dos golpistas era prender-me e enforcar-me”, afirmou.   

Por essas e por outras, Ricardo Capelli, secretário de Justiça e de Segurança Pública do Brasil (o país está sem ministro da área depois da nomeação de Flávio Dino, o titular, para o STF), diz que vem sendo feito “um trabalho para vigiar ameaças de ataques às instituições democráticas”. “Até ao momento, não há nada que gere maior preocupação”, continuou Capelli, antes de reforçar que manifestações contrárias ou a favor do governo são “sempre bem-vindas e absolutamente naturais” desde que não haja “movimentação atípica relacionada a atos que ameacem os poderes”.

Segundo a imprensa brasileira, os movimentos sociais de esquerda devem dar prioridade às manifestações de rua e não ao ato institucional, em Brasília. Entretanto, a oposição não deve organizar protestos significativos – segundo o site Metrópoles, a inteligência dos órgãos de segurança do Distrito Federal identificou algumas convocações isoladas para manifestações mas que não preocuparam, até o momento, as autoridades,

O 8 de janeiro de 2023 ocorreu exatamente uma semana após a posse de Lula. Bolsonaristas romperam barreiras de proteção e invadiram o Planalto, o STF e o Congresso, causando danos em bens públicos históricos. Necessitado de reconstrução completa, o STF foi o edifício mais afetado até porque, ao longo do governo Bolsonaro, os juízes estiveram, como nenhum outro poder, na mira do então presidente.

Até ao momento o Ministério Público denunciou 1413 pessoas: 1156 incitadores, 248 executores, oito agentes públicos e um financiador. O STF já condenou 30, a partir de denúncias apresentadas pela Procuradoria-Geral, cujas penas vão de três a 17 anos. O grupo, que responde pelos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e deterioração de património tombado, foi condenado a pagar multa coletiva equivalente a seis milhões de euros.

Entrevista a Gilmar Mendes, juiz decano do STF

MAURO PIMENTEL / AFP

“No dia da infâmia estava em Lisboa”

O 8/1 foi o momento mais baixo da república desde a redemocratização?
Os ataques criminosos do 8/1 são reflexo do recrudescimento do populismo global no Brasil e uma das mais graves afrontas às nossas instituições desde a redemocratização. O “dia da infâmia”, como ficou conhecido, levou à instauração de mais de 1300 processos no STF, o que demonstra a gravidade do episódio. Os ataques, clara investida contra a democracia, foram concebidos, planeados e executados por simpatizantes de regimes de exceção, na expectativa da adesão das Forças Armadas tornando insubsistentes as alegações de que as invasões foram fruto de breve momento de desequilíbrio emocional.

Onde estava no 8/1?
De férias, em Lisboa. Almoçava com Nuno Piçarra, juiz da Corte Europeia no Luxemburgo, e comentávamos exatamente como a transição democrática havia sido pacífica. Logo em seguida, recebi a notícia da destruição. Quando voltei, fui ao STF e, diante do estrago, fiz duas perguntas: “O que fizemos de errado para chegarmos aqui?”, dado o ódio, refletido nos danos, muito maior sobre o tribunal do que sobre Congresso e Planalto, e “o que devemos fazer para evitar que se repita?”, e neste ponto entra um dever de todos que têm responsabilidade na vida pública, de tentarmos pensar em formas de fortalecermos a democracia. Devemos ser receptivos às críticas, embora muitas não sejam lastreadas em factos ou animadas por propósitos políticos, e explicar por que nós fazemos determinadas coisas.

E há risco dessa repetição?
Um mês depois do “dia da infâmia” fomos testemunhas da resiliência do STF na garantia de que nada seria capaz de constranger, obstruir ou demover o Poder Judicial. Apesar de todos esses graves acontecimentos sugerirem uma tendência de crise, seria um exagero afirmar a existência de um desmantelamento estrutural da ordem democrática. A democracia sobreviveu, mas, como alertava a juíza Rosa Weber, "os factos ocorridos no 'dia da infâmia' ficarão gravados indelevelmente na memória institucional do STF, e a eles voltaremos sempre, para que jamais se repitam”. A luta não está ganha e cabe aos defensores da democracia manterem-se vigilantes para que esse lamentável acontecimento jamais se repita.

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