"Tive colegas de escola cujos pais eram portugueses. Mas nunca os vi como uma comunidade. Eram amigos" 

Embaixadora de França em Portugal desde setembro, Hélène Farnaud-Defromont destaca em conversa com o DN o sentido de acolhimento dos portugueses. Fala da crescente comunidade francesa em Portugal e da importância da Temporada Cruzada para que os jovens de ambos os países "modernizem o olhar" sobre os seus contemporâneos. A diplomata destaca ainda a união da UE face à guerra na Ucrânia e a boa cooperação entre Paris e Lisboa.

Chegou a Lisboa no início de setembro como embaixadora de França. Já teve oportunidade de ver alguma coisa do país?
Visitei Lisboa, fui ao Porto rapidamente depois da minha chegada e estive em Guimarães para o Fórum Igualdade, que faz parte da Temporada Cruzada França-Portugal e fiz uma visita também a Braga.

Já conhecia Portugal, claro...
Sim, já tinha vindo várias vezes. Mas não tinha vivido cá.

Do que viu até agora o que mais a surpreendeu?
Não foi uma surpresa, foi uma confirmação do que já tinha observado nas minhas passagens por Portugal, fossem visitas privadas ou profissionais: que é um grande sentido do acolhimento dos portugueses. E interrogo-me - não tenho uma resposta - se não estará ligado ao facto de os portugueses terem tido a experiência do exílio, da emigração, do regresso. E isso leva-os a acolher bem aqueles que vêm instalar-se. Sejam turistas ou residentes. Isso marcou-me, esse sentido da generosidade e do acolhimento.

Foi embaixadora na Bélgica, antes serviu na Jordânia. Qual foi a sua reação ao saber que ia ser embaixadora em Lisboa?
Fiquei muito feliz. Foi um pedido meu. Nós podemos formular desejos, que nem sempre são atendidos. Mas neste caso fiquei muito feliz que acontecesse.

Cresceu em Lille e depois em Paris. Qual a sua experiência com a comunidade portuguesa?
Andei na escola pública e tive colegas na escola, no colégio, no liceu, depois também em Sciences Po, em Paris, cujos pais eram portugueses. Eles muitas vezes já tinham nascido em França, mas mantinham uma ligação bastante forte a Portugal. Voltavam nas férias de verão, etc. Mas nunca os vi como uma comunidade. Eram indivíduos, eram amigos, da mesma forma que tinha colegas de origem italiana, espanhola, magrebina. Tudo isto se mistura alegremente - é uma das funções da escola pública, permitir às crianças de todas as origens aprenderem juntas. Nunca foi um assunto. Era normal.

Há cada vez mais franceses a vir viver para Portugal. Esta comunidade em crescimento ajuda a mudar a ideia que os franceses têm dos portugueses, os velhos clichés da porteira e do pedreiro?
Estou convencida disso. Portugal é um país muito atrativo, muito na moda. E acredito que é uma moda que veio para durar. E não são só os turistas - apesar de haver cada vez mais franceses a vir de férias a Portugal. Em 2021, tivemos 1,5 milhões de franceses a visitar em 9,5 milhões de turistas ao todo. Somos agora a segunda nacionalidade, atrás dos espanhóis. Mostra um forte efeito de atração, de boca em boca, com muita gente a dizer que Portugal é ótimo. Isso é positivo. Temos também cada vez mais franceses que se instalam. É uma comunidade em crescimento..

Tem ideia dos números?
Estima-se que os franceses em Portugal, incluindo os binacionais - porque há este fenómeno de franceses de origem portuguesa que regressam para a reforma e também de jovens lusodescendentes, que nunca viveram em Portugal, mas que vêm instalar-se, criam um negócio, etc. - andem nos 50 mil, 60 mil grosso modo. Apenas uma parte se regista no consulado mas também temos fontes do lado português, no SEF. Portanto temos 17 mil inscritos no consulado, o SEF fala em 26 mil franceses instalados em Portugal, mas sabemos que são muitos mais . E a tendência, nos últimos anos, é para aumentar. Isto corresponde a uma nova imagem de Portugal no imaginário dos franceses. E o que noto é que temos muitos franceses sem qualquer origem familiar em Portugal que, ou vêm de França ou são jovens franceses que estavam expatriados fora da Europa, por exemplo na Ásia, e que viveram mal o período da pandemia, que desejam voltar à Europa e param em Portugal, de forma temporária ou permanente. Estes são jovens, muitas vezes com crianças pequenas, o que tem consequências para as escolas e liceus franceses, em Lisboa e no Porto, sobretudo. Há cada vez mais pedidos de inscrição. E para nós é importante acolher as crianças francesas que o desejem, mas continuar a ter alunos portugueses. É preciso que estas escolas continuem a ser locais de encontro entre alunos franceses e portugueses.

Neste momento deve ser complicado manter esse equilíbrio...
Estamos a 50/50 no liceu histórico Charles Lepierre em Lisboa, cujos 70 anos celebramos em novembro. Acho que posso dizer que se tornou numa instituição. Mas também o nosso liceu no Porto, que vai fazer 50 anos, começou como uma pequena escola francesa e cresceu, cresceu até hoje ter 1300 alunos. No Charles Lepierre são mais de dois mil. E há novas escolas francesas a surgir todos os anos para acolher tanto franceses como portugueses ou alunos de outras nacionalidades. E penso que a Temporada França-Portugal também permitiu modernizar o olhar dos portugueses sobre França e dos franceses sobre Portugal.

Esta comunidade de franceses em Portugal também contribuiu para mudar a forma de os portugueses olharem para os franceses?
Penso que sim. Havia, sobretudo entre os mais jovens, uma imagem um pouco datada, talvez transmitida pelos pais ou avós, que já não corresponde à realidade de nenhum dos lados, nem do francês, nem do português. O objetivo, quando a Temporada foi lançada pelo presidente, Emmanuel Macron, pelo primeiro-ministro, António Costa, e com o apoio total do Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, era atualizar este olhar cruzado. E é ótimo porque não é apenas uma Temporada Cultural, apesar de também o ser. A cultura, a língua, são essenciais para o conhecimento de um país, mas foi também científica, económica, social, falou-se muito dos oceanos, do ambiente. Cientificamente foram criadas ou relançadas inúmeras parcerias. Deste ponto de vista foi um grande sucesso. Tivemos três milhões de visitantes ou espectadores nos dois países, envolvemos 150 cidades portuguesas e francesas. É algo importante. Mas há outros eventos, como a Festa do Cinema Francês que vai agora começar, que permite mostrar em Portugal o cinema francês atual. Temos de continuar mas foi importante os jovens dos dois países se conhecerem melhor e terem uma visão mais justa e atual dos seus contemporâneos.

Com a cultura anglo-saxónica a dominar, em Portugal como no mundo, iniciativas como a Temporada Cruzada ajudam a reafirmar a cultura e a língua francesa?
Sim, já há algum tempo que o soft power americano, ou anglo-saxónico, domina. Vivemos num meio muito marcado pela língua e referências anglo-saxónicas. Dito isto, acho que Portugal ainda se mantém bastante francófono. Recentemente França recebeu dois prémios Nobel, o da Literatura para Annie Ernaux, e um científico, partilhado com outros dois galardoados, para um grande cientista francês. Isso mostra que as referências francesas continuam presentes. Depois é preciso ser voluntarista. Diria quase corajoso. E isso também se aplica à cultura lusófona. É mais fácil encolher os ombros e dizer que de qualquer maneira as referências são anglo-saxónicas, que todos falam inglês. Mas desde que digamos "Não" e façamos algo para diversificar as coisas, não é preciso esquecer o inglês. O facto de compreender e ser capaz de se exprimir em várias línguas, de ter referências culturalmente alargadas, no cinema, literatura, etc., pode exigir um esforço mas é perfeitamente possível. Diria mesmo que, com o desenvolvimento das redes sociais, com tudo o que está disponível online, até é mais fácil para os jovens que têm 20 anos hoje, do que para os que tinham 20 anos há 10 ou 20 anos. Há um acesso fácil, mas é preciso procurá-lo. E estamos aqui para despertar a vontade. Não podemos obrigar as pessoas a aprender francês, a ler livros de autores franceses. Temos de deixar as pessoas com vontade de o fazer. Depois cabe a cada um deixar a facilidade para trás e optar por algo apenas um pouco mais complicado.

A Temporada Cruzada teve três milhões de visitantes/espectadores nos dois países. Mas estando Portugal na moda, o sucesso dos eventos portugueses em França foi maior do que o dos eventos franceses em Portugal?
É certo que as iniciativas portuguesas em França tiveram um eco enorme. Só um exemplo, há umas semanas houve o Lisbonne sur Seine em Paris, com a iluminação do edifício da câmara de Paris, um DJ e durante todo o fim de semana houve no Carreau de Temple um fim de semana português, com comida, música... Foi um sucesso fenomenal. Milhares de jovens parisienses passaram por lá. Isso mostra como Portugal é atraente. Quanto à França em Portugal, houve muita coisa em várias áreas. Há umas semanas estive na universidade de Lisboa num colóquio com jovens cientistas franceses e portugueses sobre os oceanos. França e Portugal estão entre os países mais empenhados neste assunto na UE. Foi maravilhoso. E o importante agora é continuar. A Temporada encerra em Lisboa no final de outubro. A primeira-ministra, Élisabeth Borne virá para o evento, com a ministra da Cultura. Estará com António Costa. Mas as coisas não vão parar a 31 de outubro. Tanto as autoridades portuguesas como francesas querem prosseguir com este impulso. Em 2023 e além. Há muitas parcerias e encontros que se realizaram graças à Saison. E o nosso trabalho na embaixada é garantir que tudo isto se perpetua.

Chegou a Portugal num momento de crise na Europa - guerra na Ucrânia, crise energética, inflação. Neste momento de desafio para a União Europeia, a união dos 27 é ainda mais importante?
Sem dúvida. É um período muito difícil para a Europa e para a UE. Mas paradoxalmente, tal como na pandemia, o regresso da guerra - uma guerra de agressão da Rússia contra um país que não sendo membro da UE é geográfica e culturalmente europeu - serrou as fileiras dos 27. Com estas crises que vivemos há alguns anos na Europa, inéditas e recorrentes - a covid melhora e surge esta guerra, a inflação, problemas de segurança energética, etc. - parece-me que de cada vez a UE acaba por ser uma boa surpresa. De início é complicado, precisamos de uns dias, umas semanas, falta coordenação. É natural, cada país reage primeiro num plano nacional, para proteger a sua população. Mas rapidamente a razão mostra que juntos somos mais fortes, podemos coordenar-nos melhor e responder melhor à crise. Atualmente vivemos um momento de solidariedade e união muito forte. O que não impede que alguns países estejam menos convencidos do que outros, por exemplo nas sanções. Estamos no nono pacote de sanções contra a Rússia, que funcionam, são eficazes. E o que constato é que França e Portugal partilham da mesma visão - de uma Europa potência, unida, que tenha autonomia de decisão e de ação. A crise mostrou que temos de contar em primeiro lugar com nós próprios. Estamos conjugados, franceses e portugueses, quanto à melhor forma de responder a esta crise, de apoiar a Ucrânia. Não estamos em guerra com a Rússia, isso é claro. Mas temos de fazer tudo para apoiar a Ucrânia e garantir que sai vencedora desta guerra.

Falava da cooperação entre Portugal e França. Mas tem havido alguma tensão no que diz respeito ao gasoduto ibérico...
[Esta entrevista foi realizada no dia 18, antes do acordo alcançado ontem entre Macron, Costa e o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, para um "corredor de energia verde" que vai substituir o projeto do gasoduto Midcat - ver mais página 8]
Bom, diria que há um verdadeiro assunto para discutir entre franceses, espanhóis e portugueses. O MidCat não é para agora, é um projeto para os anos futuros, que exige grande investimento, que exige muita análise ambiental, entre outras. É normal que nos interroguemos sobre como responder à crise imediata, e estamos a tomar medidas como o estabelecimento de um teto no preço do gás, a organização de um mercado integrado da energia, a exceção ibérica que foi aceite e que nós franceses gostaríamos que fosse generalizada. Há o curto prazo, e depois há a forma como nos projetamos para o futuro e quais os investimentos a mais longo prazo. Aqui há diferentes situações de partida, por isso temos de ver como responder da melhor maneira de forma coletiva. O gasoduto é um projeto antigo, que foi afastado há uns anos e que regressa agora devido à situação ligada à guerra na Ucrânia. De momento, é verdade que a análise francesa não é a mesma dos portugueses e espanhóis. Dito isto há um bom processo de discussão, entre outros sobre os aspetos técnicos, que temos de avaliar. Percebemos que para Portugal é um assunto importante, que temos de tratar de forma seria. E é o que a França está a fazer. Há um grupo de trabalho de técnicos, além disso as nossas autoridades abordam o assunto sempre que se encontram. Não varremos o assunto para debaixo do tapete. E assim espero que cheguemos a uma solução que satisfaça todos.

França teve eleições este ano, o presidente Macron obteve um segundo mandato. Mas sem maioria absoluta na Assembleia Nacional e a contestação a crescer nas ruas os próximos cinco anos prometem ser mais complicados?
Há uma maioria que não é absoluta, é relativa, mas sólida. E esta situação exige que para cada texto apresentado na Assembleia Nacional a maioria presidencial tenha de procurar coligações com as oposições. Mais complicado não sei se será, mas é diferente. O funcionamento das instituições da V República - que são bastante maleáveis - permitiu sempre que França fosse governada. É o caso agora. Houve dois grandes textos, propostos pelo governo - o primeiro sobre o poder de compra e o segundo sobre a reforma do emprego - que foram aprovados. Sabemos que há casos em que pode ser mais complicado. Atualmente está a discutir-se o orçamento e não está excluído o governo ter de recorrer ao artigo 49-3 da Constituição. É uma ferramenta que permite que em caso de bloqueio após um determinado tempo de discussão, o governo pode usar o artigo para aprovar o orçamento [sem votação].

Mas a oposição pode apresentar uma moção de censura e o governo cair...
[Foram apresentadas duas até ontem após a primeira-ministra Borne recorrer ao 49-3 na quarta-feira]
Sim, mas objetivamente é pouco provável. Além disso o recurso ao 49-3 é limitado. É possível para o orçamento [e projetos de lei ligados ao orçamento] e para mais um projeto de lei por ano de legislatura. Voltando à pergunta, não é mais difícil, é diferente. É um funcionamento previsto pelas instituições. O cursor vira-se mais para o Parlamento, coração da vida democrática, e obriga os partidos, da maioria presidencial e da oposição, a falar e a encontrar compromissos. Pode demorar mais a aprovar os textos, mas funciona.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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